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1.4. O cinema de animação

1.4.2. Uma moeda e dois lados

Gomes e Santos (2007) afirmam que a existência da multiplicidade de códigos em uma narrativa fílmica não é pré-requisito para o entendimento global da obra. Ela pode

conter códigos direcionados às crianças e aos adultos, assim como pode selecionar o espectador de um filme com o uso de códigos específicos. Uma das estratégias narrativas, usada também nos filmes é aquela em que o produtor do texto vislumbra um padrão de espectador e, para isso, deixa lacunas no texto a serem preenchidas a partir de pistas orientadas, que permitam ao leitor desse texto fazer inferências para decodificá-lo e compreendê-lo.

Conforme Gomes e Santos (2007), o Double Coding é um recurso bem marcante nos desenhos atuais em que as narrativas seguem uma linha de desenvolvimento diferente da linha tradicional da Disney, os seja, elas acompanham o ritmo e o interesse das crianças e dos adultos, além de temáticas relacionadas aos acontecimentos da sociedade e do mundo. Essa estratégia parece visar à formação de um espectador ativo, que, em um primeiro momento, submete-se ao filme no campo do lazer, depois se distancia e reflete sobre o conteúdo do filme, para construir um sentido.

Cada público volta sua atenção para os códigos que lhe são fornecidos. A

narrativa apresenta sinais, “pegadas”, para que cada público trace seu próprio

caminho. No entanto, os sinais se convergem para um mesmo local, não prejudicando a compreensão final da obra (GOMES e SANTOS, 2007, p.07).

Assim, essas autoras reforçam a ideia de que um filme apresenta mais de um caminho para um mesmo fim, a escolha é feita de acordo com o nível de conhecimento prévio geral do espectador/leitor – classificação adotada por nós neste texto, significando aquele que assiste ao filme e faz uma leitura. Essa teoria do Double Coding quebra um estereótipo do senso comum de que o filme em desenho animado é fácil, não tem conteúdo, não tem desafios e só é direcionado para crianças; diferente do filme em live-action, mais elaborado, e direcionado para adolescentes e adultos.

Seguindo o pensamento de Gomes e Santos (2007), consideramos que, nas concepções fílmicas atuais, o desenho animado é um dos primeiros meios de interação da criança com o mundo das imagens e, por isso, deve cumprir a máxima primeira do cinema: o entretenimento e a diversão do espectador infantil, com narrativas lineares e personagens divertidos (primeiro código). É um momento de empatia entre o espectador e o(s) personagem (ns), em que o primeiro se identifica com o segundo e, no imaginário, participa da trama (nível menor de conhecimento). Isso ocorre porque,

dependendo do nível de percepção da criança, o olhar de espectador se volta mais para os personagens e seus feitos do que para a narrativa.

No contexto situacional real, essa identificação pode ser percebida quando o espectador quer ter o brinquedo que representa o personagem de quem ele mais gosta, ou seja, aquele com quem ele mais se identifica; em algumas festas, usa uma fantasia do personagem e/ou assume o papel deste em brincadeiras com os colegas. Nessa mesma projeção, percebemos que esse filme também atende ao leitor iniciante, que pode não adotar determinados comportamentos do espectador infantil, mas se encontra em um nível semelhante quanto à percepção, isto é, o que lhe desperta o interesse no filme é o enredo. Já com o leitor mais crítico encontramos uma situação diferente, pois, além do enredo, ele olha para a temática, a mensagem e os aspectos históricos, sociais e/ou culturais, na tentativa de construir um sentido (segundo código).

Azevedo (2006), em seu trabalho sobre estruturação da narrativa oral, afirma que em uma história há dois lados (domínios): o da narrativa (evento supostamente ocorrido ou imaginado) e o da narração (diz respeito à composição da narrativa: presença de narrador, ouvinte/leitor e os eventos narrados). Segundo a autora, subjacente à representatividade desse duplo universo, encontramos o princípio cognitivo da percepção – figura e fundo – proposto para o campo visual pela Psicologia Gestalt, considerado presente no texto narrativo. A figura corresponde aos fatos narrados na sequência cronológica em que supostamente ocorreram; enquanto o fundo contém os elementos que dão suporte à linha central: descrições, explicações, comentários, julgamentos.

No processo de leitura do filme, o que o leitor iniciante capta como figura é o mote principal (o enredo). Situação diferente ocorre com o leitor mais crítico que tem um nível maior de conhecimento, pois entra na malha do texto e vai além do mote principal6; ele percebe o que chamamos mote secundário ou fundo, pois identifica pistas deixadas pelo autor do texto nesse bosque da ficção e usa as ferramentas

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Para efeito de análise, dividiremos o filme em mote principal (o enredo da trama) e mote secundário

cognitivas adequadas para inferir sobre essas pistas, construindo um sentido para o filme.

Como se pode perceber, cada um desses enfoques referentes a um texto mostra uma moeda e dois lados, mas cada lado tem um referente diferente, que não se excluem, eles completam o todo do universo que constrói o texto e contribuem para a construção do sentido deste: o Double Coding versa sobre o tipo de espectador; o princípio cognitivo da percepção, sobre a direção da percepção do espectador (figura e/ou

fundo); e o domínio da narração e da narrativa, sobre o evento e o contexto situacional

do texto. Eles representam pontos a serem considerados na análise de uma leitura do gênero filme e os adotaremos nesta pesquisa, pois a partir de e com base neles podemos identificar a direção do olhar do leitor na prática de leitura. Nesse caso, averiguar se o leitor do filme A Era do Gelo desenvolve sua leitura pelo primeiro e/ou segundo código; por qual domínio (narração ou narrativa) está trilhando; e o que evidencia primeiro (figura ou fundo).

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