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Uma nova estruturação do Ensino Médio: a profissionalização compulsória

As reformas que incidiram sobre o ensino médio nos anos 30 e 40 foram reformas que organizaram e sistematizaram o ensino secundário, mas mantiveram a longa tradição do século XIX (formação de currículo humanista, educação geral, formação desinteressada). A reforma de 1971 (Lei 5.692) buscou quebrar essa hegemonia do currículo humanista estabelecendo a educação para o trabalho.

Piletti (1988), seguindo uma linha de interpretação, indica como um dos antecedentes da Reforma de 1971 a pressão social de estudantes, em 1967, que concluíam o nível médio e eram aprovados nos vestibulares, mas não entravam na faculdade por falta de vagas. Como resposta à essa pressão, o Conselho Federal de Educação (CFE) criou uma comissão, para discutir o assunto, tendo por relator Valmir Chagas. A comissão sugeriu uma reforma da escola média a fim de lhe acentuar o caráter de terminalidade (o que desestimularia a continuidade dos estudos), não atendendo, portanto, aos interesses diretos da pressão posta pelos estudantes, antes se colocando como uma manobra de contenção de acesso ao nível superior.

Em 1970, o presidente da República, Emílio Garrastazu Médice, criou, por Decreto, um Grupo de Trabalho no Ministério de Educação e Cultura para estudar e propor diretrizes para a educação primária e média no país. No Congresso Nacional, o Projeto de Lei foi apreciado em regime de urgência, num curto período de um ano, sem passar por discussões públicas com a

sociedade civil, silenciada, portanto, dentro dos limites impostos pelo autoritário regime militar (PILETTI, 1988; SAVIANI, 2002; SOUZA, 2008).

A Lei Federal 5.692 aprovada pelo Congresso Nacional em 11 de agosto de 1971, manteve as finalidades da educação expressas na LDB 4.024/61 e fixou Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º Graus que deveria desenvolver as potencialidades do educando, qualificá-lo para o trabalho e prepará-lo para o exercício consciente da cidadania.

Dentre as modificações mais importantes instituídas por essa reforma destacamos a extensão da escolaridade obrigatória, mediante a implantação de uma escola única de 1º e 2º Graus (Gráfico 04). A escola básica ganhou a seguinte configuração:

1º Grau: houve a junção do antigo ensino primário e o primeiro ciclo (ginasial) do antigo ensino médio. Era responsável pela formação da criança e do adolescente na faixa etária de 7 a 14 anos, apresentando uma escolaridade obrigatória de oito anos. 2º Grau: constituído do segundo ciclo (colegial) do antigo ensino médio. Era

responsável pela formação do adolescente e sua qualificação para o trabalho.

Gráfico 04 – Estrutura da Escola Básica: Lei 5.692/71

A Lei Federal, como bem descreve Minguili (1984) definiu ainda: diretrizes para o ensino especial;

suprimento de escolarização regular dos adolescentes e adultos, bem como os estudos de aperfeiçoamento e atualizações;

instituiu o ensino supletivo através de cursos e exames;

estabeleceu que docentes e especialistas da educação deviam ser habilitados de acordo com a legislação;

instituiu que as escolas particulares de Ensino Médio, antes vinculadas ao sistema federal passariam a ser vinculadas aos sistemas estaduais;

estabeleceu diretrizes para a organização curricular, administrativa e disciplinar de cada estabelecimento de ensino;

determinou os órgãos competentes para indicar as matérias do currículo pleno (Conselho Federal de Educação, Conselho Estadual de Educação, Conselho Municipal de Educação, Estabelecimentos de Ensino);

determinou a duração mínima dos períodos letivos;

vinculou a promoção do aluno à assiduidade e aproveitamento;

estabeleceu o regime de matrícula com dependência a partir da 7ª série do 1º Grau; dispôs sobre a transferência do aluno para outro estabelecimento de ensino ou

curso e a conseqüente adaptação e aproveitamento de estudos;

estipulou o regime de financiamento de educação pelos poderes público e privado; estabeleceu prazos e diretrizes para a implantação gradual e progressiva da

Reforma nos Estados;

permitiu à administração dos sistemas de ensino, bem como às pessoas jurídicas de direito privado que mantinham escolas, a instituição de um Regimento Comum para as escolas de 1º e 2º Grau, a fim de assegurar a unidade básica estrutural e funcional da Rede preservando a flexibilidade didática de cada escola.

Segundo Saviani (2002) a Lei 5.692 propôs uma integralização vertical dos graus, níveis e séries de ensino, das atividades e, uma integralização horizontal dos ramos de ensino (ensino de 1º e 2º Grau) – obrigatório dos 07 aos 14 anos. O currículo apresentava um núcleo comum proposto pelo Conselho Federal de Educação e uma parte diversificada proposta pelos Conselhos Estaduais de Educação.

A Lei caminhou numa primeira tentativa, de fato, de uma articulação curricular que ia desde a 1ª série do 1º Grau até o 3º ano do 2º Grau. Nas suas finalidades, destaca-se a pretensão de criar uma escola mais unificada na integração vertical. Até então a articulação entre os vários ramos e níveis de ensino no Brasil nunca tinha sido tratada de forma tão precisa, tão detalhada, desse modo, com a Lei 5.692 tinha-se de fato uma tentativa dessa articulação e um tratamento

explícito de que isso deveria acontecer desde a 1ª à 8ª série, sem perder a relação com o ensino de 2º Grau. (SOUZA, 2008).

O ensino de 2º Grau nascia da descaracterização tanto das escolas técnicas quanto das escolas secundárias. A Lei 5.692 propôs uma profissionalização compulsória do 2º Grau, que teria por finalidade a preparação para o trabalho, sobrepondo-se à prestigiosa e sedimentada concepção de escola secundária. Para os planejadores militares, tal medida resolveria problemas políticos no que diz respeito à qualificação profissional para o mercado de trabalho, porém, destacamos que essa profissionalização compulsória acabou por sucatear ainda mais a educação já que o excedente nos vestibulares que depois de aprovados esperavam vagas e o número de qualificados em nível técnico sem oportunidade de emprego aumentou consideravelmente.

Essa Lei só pôde ser estabelecida no regime de ditadura. A mudança era tão forte que se tivesse sido discutida com a sociedade ela dificilmente seria aprovada. Não queremos com isso, dizer que concordamos com o regime militar, mas precisamos entender que essa mudança só foi possível num momento de repressão, já que mudava uma estrutura secular da organização do ensino no Brasil. Apesar de todos os debates avançados na época proporem um ensino de 8 anos e a ampliação da escolaridade básica, além de proporem a questão da educação para o trabalho, de fato, a 5.692 só conseguiu se estabelecer minimamente porque estava em um regime autoritário.

Pela Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus a democratização do ensino secundário foi assegurada em parte pelo ensino de 1º Grau (junção do primário com o ginasial), e também pela eliminação de uma das maiores barreiras de acesso ao ensino secundário: o exame de admissão. Para o ingresso no ensino de 2º Grau exigia-se apenas a conclusão do ensino de 1º Grau, ou de estudos equivalentes, atendendo ao princípio de extensão da escolaridade.

Até 1971 a obrigatoriedade escolar esteve sobre o ensino de 1ª a 4ª série. A Lei 5.692 a ampliou para oito anos, desse modo, o Estado foi obrigado a oferecer além dos quatro anos do primário, mais quatro anos de escolaridade, criando uma necessidade de multiplicação de escolas inimaginável para aquele contexto.

As mudanças que a instituição dessa reforma implicou, demandou uma reestruturação substancial na rede de escolas públicas e privadas. A obrigatoriedade de oito anos de escolaridade, portanto, exigia dos poderes públicos iniciativas de ampliação de vagas. Quanto ao 2º Grau, era preciso, além da ampliação das matrículas, adaptar todos os antigos estabelecimentos

de ensino secundário para que pudessem oferecer a formação técnica-profissional, modificar, em alguns casos a estrutura física da escola, efetivar a compra de equipamentos ou até mesmo a capacitação de professores para as disciplinas de formação especial.

Sob a máxima racionalização dos recursos materiais e humanos para a implantação da reforma, a constituição da escola de 1º Grau decorreu da progressiva instalação das séries finais nas escolas de ensino primário, bem como a reunião de pequenos estabelecimentos em unidades maiores, aproveitamento da capacidade ociosa da rede escolar e a organização de centros interescolares, reunindo serviços e disciplinas comuns a vários estabelecimentos (Art. 3º). Segundo a interpretação de Souza (2008), a junção entre o antigo ensino primário e o antigo ensino ginasial representava a reunião, em uma única escola de culturas profissionais historicamente diferenciadas, com diversos níveis de formação e salários, status e modos próprios do exercício do magistério.

A organização curricular foi considerada fundamental para a consolidação da nova estrutura educacional. Para todas as escolas de 1º e 2º Graus a reforma fixou um núcleo comum, obrigatório em âmbito nacional (proposta pelo Conselho Federal de Educação), e uma parte diversificada (proposta pelos Conselhos Estaduais de Educação) a fim de atender às peculiaridades locais (Art. 4º).

Observadas as normas de cada sistema, o Artigo 5º estabeleceu que o currículo pleno teria uma parte de educação geral e outra de educação especial, sendo que, no ensino de 1º Grau a parte de educação geral seria exclusiva nas séries iniciais e predominantes nas finais (com o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho) e, no ensino de 2º Grau a parte de formação geral seria predominante (com o objetivo de habilitação profissional). A parte de formação especial deveria ser fixada em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, a partir de levantamentos periodicamente realizados.

O núcleo comum obrigatório nos currículos plenos do 1° e 2° Graus, determinado pela Resolução n.8 de 1/12/1971, deveria abranger as seguintes matérias:

Comunicação e Expressão (Língua Portuguesa); Estudos Sociais (Geografia, História e OSPB);

Ciências (Matemática e Ciências Físicas e Biológicas);

Práticas Educativas (Educação Física, Educação Artística, Educação Moral e Cívica, Programas de Saúde, Ensino Religioso – facultativo aos alunos);

Desse modo, a organização curricular proposta, como aponta Souza (2008) reforçava as tendências de simplificação do currículo da escolarização básica apresentando o mínimo necessário para o indivíduo adaptar-se às exigências da sociedade urbano-industrial e tecnológica.

O Conselho Federal de Educação deveria fixar além do núcleo comum, o mínimo a ser exigido em cada habilitação profissional ou conjunto de habilitações afins, assim feito no Parecer n. 45/72 (que estabeleceu os mínimos exigidos para 52 habilitações técnicas ou plenas e 78 outras habilitações ou habilitações parciais, perfazendo um total de 130 habilitações –subdivididas entre o setores primário, secundário e terciário – com forte predominância da formação especial sobre a formação geral), e no Parecer n. 75/76 (que tentou amenizar o caráter essencialmente profissionalizante do 2º Grau, estabelecendo os mínimos exigidos e a regulamentação de 10 habilitações básicas com um maior equilíbrio entre a formação especial dos currículos e a formação geral)14.

Segundo Souza (2008) apesar do tema da educação para o trabalho no ensino médio estar presente nas discussões da época, a compreensão dada na reforma à educação geral e à formação especial foi um dos aspectos mais inovadores e polêmicos. Na visão dos educadores que conceberam a reforma a noção de humanismo incorporava as referências do desenvolvimento científico e tecnológico e se traduzia no currículo como formação geral e formação especial. Enquanto a parte geral objetivava a continuidade, a parte especial objetivava a terminalidade. Desse modo, sendo para o 1º ou 2º Grau, a terminalidade estava pressuposta, e cabia, portanto, ao sistema educacional adequar-se à realidade do trabalho para oferecer habilitações condizentes.

A instalação da parte especial do currículo barrou-se na falta de recursos quer humanos, quer materiais. As escolas não conseguiam se adaptar às exigências necessárias para a implantação de uma habilitação técnica, tais como a compra de equipamentos, montagem de laboratórios, bem como a capacitação e contratação de professores especializados e aptos a ministrarem esses cursos. Outra dificuldade refere-se à necessidade de sondagem do mercado de trabalho para a formulação dos currículos, isso porque a dinâmica do mercado não pode ser acompanhada pela escola, que não parece ser a agência mais indicada de formação profissional, uma vez que ela não tem condições de se adaptar a ele. Outra questão que se punha referia-se à restrição do mercado que poderia ser facilmente saturado, implicando o cancelamento de ofertas,

pela escola, das habilitações não mais procuradas, além das empresas procurarem um pequeno número de técnicos preferindo a sistemática da formação em serviço.

Outro aspecto polêmico da reforma refere-se à avaliação do rendimento escolar. A Lei 5.692/71 institui uma concepção de avaliação mais qualitativa e flexível, propondo que a avaliação do rendimento escolar deveria ficar a cargo dos estabelecimentos e compreenderia: a avaliação do aproveitamento (devendo preponderar os aspectos qualitativos sobre os quantitativos, e os resultados obtidos durante o período letivo sobre os da prova final, substituindo as notas pelos conceitos), a apuração da assiduidade, além de uma proposta de recuperação para alunos com aprendizagem deficiente.

As medidas foram assumidas pelos professores com cautela e sem mudanças efetivas, buscando preservar a avaliação do rendimento como uma das referências da ação educativa e como elemento de validação da seriedade e da qualidade do ensino. Uma prática já cristalizada entre os professores e que, de certo modo, subsidiava a boa imagem da escola secundaria, teria muitas dificuldades de ser modificada na prática.

A expansão obrigatória da 5ª à 8ª série significou também a necessidade de captação de mão-de-obra rápida, aligeirada, valendo-se de licenciatura curta e da rede privada de ensino superior. Essa obrigatoriedade de 8 anos de escolarização implicou mudanças tanto na escola como também na docência, que se tornou o grande mercado de trabalho nos anos 1970. A mudança na representação do que é o professor mudou substancialmente nos anos 70: antes o professor do ensino secundário era visto num mesmo patamar de um professor do ensino universitário, mesmo não tendo formação.

Nesse sentido, a Lei quebrou com todas as hierarquias de representação de status. Toda a rede virou rede pública de ensino, não havia mais uma escola melhor do que outra, os Institutos de Educação, que desfrutavam de certa diferenciação, passaram a ser escolas de 1º Grau ou escolas de 2º Grau. Tudo foi igualado. Indubitavelmente, a tentativa de uma padronização da rede pública, implicou mudanças no âmbito do imaginário, intervindo diretamente sobre as representações da escola pública.

De acordo com o Artigo 72 da Lei 5.692/71, a implantação da reforma far-se-ia progressivamente, segundo as peculiaridades e possibilidades e legislação de cada sistema de ensino, com a observância do Plano Estadual de Implementação que seguiria um planejamento prévio e elaborado.

No Estado de São Paulo a efetiva implantação da reforma implicava reestruturações de grande impacto na rede como a sistemática de aproveitamento da estrutura física e o remanejamento de pessoal, o que foi feito apenas a partir de 1976.

Quanto à execução e aplicabilidade da Lei temos que:

(...) a torrente de mudanças que assolaram as escolas públicas em pouco tempo – o crescimento excepcional do número de alunos matriculados, a renovação e ampliação do quadro docente, as pressões para modificação nos métodos de ensino e as estratégias de redução dos índices de evasão e repetência aliados aos baixos salários dos professores, precárias condições de trabalho e da rede física – redesenharam o quadro da educação pública, anunciando a emergência de uma nova cultura escolar e reiterando a percepção de falência do ensino no país. (SOUZA, 2008, p. 282-283)

Ainda segundo esta autora, embora a educação para o trabalho tenha sido a grande vitoriosa, foi, no entanto, a inovação mais frágil e menos efetiva. Para Piletti (1988), em conseqüência da Lei 5.692, o ensino de 2º Grau havia se submetido a uma desorganização, uma vez que significou:

(...) o desmantelamento tanto do ensino técnico antes existente, pela exigência de enquadrar-se nos currículos mínimos estabelecidos pelo Parecer CFE n° 45/72, quanto do ensino secundário, pela imposição da profissionalização compulsória que, na impossibilidade de ser concretizada, acabou fazendo nem uma coisa, nem outra: não preparavam para o ensino superior e, muito menos, profissionalizavam. (PILETTI, 1988, p. 84)

Após inúmeros protestos e dificuldades de implementação, a profissionalização compulsória foi definitivamente eliminada em 1982 pela Lei Federal 7.044. A partir de então, o ensino de 2º Grau voltou a se constituir em escolas técnicas profissionalizantes e escolas de educação geral.

A cultura humanística presente por tanto tempo no ensino secundário significava uma distinção social, um símbolo de classe, disputada socialmente, abarcando status e privilégios. Porém, num contexto de democratização do ensino médio, essa cultura perdeu o seu valor, os conhecimentos técnicos e científicos ganharam proeminência e passaram a ser valorizados. A representação social da escola foi alterada.

Na década de 1970 vimos a consolidação no Brasil da supremacia da escola pública. Nas décadas que se seguiram a universalização do ensino de 1º Grau e a contínua expansão do 2º

Grau colocariam a educação escolar como uma experiência fundamental na vida da criança e do adolescente. “Uma escola dilacerada pela nostalgia do passado e as exigências do presente impelida à redefinição de sua cultura e de seus significados” (SOUZA, 2008, p. 285).