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1.3. UMA TIPOLOGIA DAS INICIATIVAS NA DEFINIÇÃO DO OBJETO

1.3.1. Uma opção metodológica

O que é a economia solidária? O que pode ser nomeado como parte do seu “conjunto”?

Em 1999 a Rede UNITRABALHO39 constituiu uma comissão encarregada de organizar o chamado “Programa Permanente – Economia Solidária”. Coordenada pelo Prof. Paul Singer, a comissão tinha por objetivo realizar um levantamento nacional acerca das iniciativas de economia solidária, o que efetivamente, por variados problemas, nunca se realizou40.

As discussões metodológicas acerca do projeto apontaram para um problema inicial e de difícil superação, a saber: se a pesquisa fosse realizada a partir de um recorte construído ideal-tipicamente, isto é, a partir de um conceito pré-discutido pelos investigadores, corria-se o risco de não incluir nas análises tipos de iniciativas realmente existentes, de caráter “solidário” (conceito ainda por discutir), mas embora ainda desconhecidas daquele conjunto de investigadores. Se, ao contrário, a pesquisa fosse realizada de maneira absolutamente “aberta”, isto é, sem uma delimitação do objeto, como se poderia focar as iniciativas solidárias, distinguindo-as, no campo de pesquisa, das iniciativas econômicas convencionais?

A inexistência de um marco jurídico delimitador era, é claro, o princípio do problema, mas a falta de acordo na comunidade científica sobre o que poderia ou não ser considerado “economia solidária” era muito mais importante ali, uma vez que o próprio marco legal, em verdade, poderia resultar – justamente – de uma ampla discussão da comunidade

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Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho, fundada em 1996, conta com a participação de 90 universidades brasileiras. Sua estrutura prevê o funcionamento, em cada universidade, de um núcleo interdisciplinar de investigadores que se dedicam às relações de trabalho. Sua missão manifesta é “integrar a universidade e os trabalhadores para o desenvolvimento de projetos que subsidiem suas lutas por melhores condições de vida e de trabalho”. www.unitrabalho.org.br

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Redimensionado posteriormente, o projeto original deu lugar a uma pesquisa qualitativa coordenada por Luís Ignácio Gaiger que resultou na publicação do volume “Sentidos e Experiências da Economia Solidária no Brasil” (Porto Alegre: UFRGS, 2004).

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científica e dos atores sociais, secundada pela devida mobilização dos agentes e pelas ações legislativas necessárias.

No livro organizado por Singer e Souza (2000), por exemplo, que buscava “mapear” o que havia ou o que poderia haver de economia solidária no Brasil, temos os seguintes capítulos: (1) relatos de cooperativas industriais; (2) empreendimentos autogestionários; (3) agências de fomento à economia solidária; (4) sistemas de crédito solidário; (5) redes de projetos comunitários; (6) experiências alternativas de comércios, habitação e crédito; (7) organizações econômicas fundamentadas em princípios éticos.

Já num outro texto publicado por Singer, numa coletânea organizada por Boaventura de Souza Santos (2002), em que procura apresentar um painel da economia solidária no Brasil, o espectro tratado já aparece mais restrito: ele aborda (1º) as empresas de autogestão originadas das experiências da ANTEAG41 e da UNISOL42; (2º) as cooperativas surgidas nos assentamentos de reforma agrária43, e (3º) aquelas do chamado “cooperativismo popular” – nascido através das ações da Cáritas Brasileira44, da Ação da Cidadania Contra Fome e a Miséria, e pela Vida45, e da Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares46.

A discussão conceitual sobre a economia solidária, em virtude da novidade de sua expansão, tem sido complexa.

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Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão, fundada em 1994, surgiu com o objetivo de articular as empresas de autogestão, especialmente aquelas originadas pela luta dos trabalhadores pelo controle de empresas falidas, com o fim de garantir e/ou recuperar seus empregos. Ver www.anteag.org.br.

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União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo surgiu 1999, por deliberação do 3º Congresso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, e foi uma das primeiras iniciativas sindicais dirigidas à economia solidária, com o objetivo construir um sistema cooperativo horizontal, com base nos “princípios da economia solidária”, para a região do ABC e para o Estado de São Paulo. Em 2004, seu encontro nacional decidiu torna-la uma entidade de âmbito nacional. Ver ODA: 2000.

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Especialmente aquelas vinculadas à CONCRAB (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), fundada e articulada pelo Movimento Nacional dos Agricultores Sem-Terra. Ver <http://www.mst.org.br/concrab>.

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Entidade de assistência social vinculada à Igreja Católica, presente em todas as regiões de todos os países do Cone Sul, e que progressivamente vem adotando o apoio à economia solidária como um dos seus principais eixos de ação.

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Também chamada “Campanha do Betinho”, a ACCMV foi coordenada pelo IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, que mobilizou milhares de comitês de solidariedade, especialmente em setores da classe média urbana, cujo objetivo era minimizar o problema da fome no Brasil. Ao longo da campanha a idéia de apoiar iniciativas de economia popular/solidária ganhou força em seu interior e vários comitês chegaram a realizar iniciativas nesse sentido. Os “comedores populares” que já existiam, mas que se alastraram pela Argentina logo após a crise de 2001, também tiveram uma trajetória semelhante. Ver www.ibase.org.br.

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Atualmente, a Rede de ITCPs, como é chamada, articula 14 (quatorze) incubadoras em diferentes universidades brasileiras. A primeira experiência surgiu na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1996. Ver GUIMARÃES (2000) e CRUZ (2004), e também os sítios: www.itcp.coppe.ufrj.br; www.itcp.unicamp.br; www.cecae.usp.br/itcp.

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Por exemplo, uma pergunta aparentemente singela que pode conter uma polêmica epistemológica de fundo: uma iniciativa econômica que não se define como “solidária” ou que não comporta um estatuto jurídico que faça qualquer referência a este termo ou similar pode ser considerada como uma iniciativa de economia solidária?

Tomemos um outro caso: uma serralheria de “fundo de quintal”, na qual cinco ou seis metalúrgicos dividem entre si o espaço, a demanda por trabalho, as despesas de manutenção do maquinário, de energia etc. e que tomam decisões em conjunto sobre sua iniciativa, que estão organizados legalmente sob outra forma de organização (micro-empresa ou trabalho autônomo etc.), e onde todos têm a mesma quota de propriedade etc., enfim, esta associação econômica pode ser considerada uma “iniciativa de economia solidária” (IES)?

Ainda, um outro exemplo: o núcleo da Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos, com sede em Bagé (RS), que articula seus associados para investimentos conjuntos – compra de insumos, cursos de qualificação, aquisição de serviços para melhoramento das matrizes etc. – e também realiza remates conjuntos que permitem facilidades de comercialização para seus associados. Cada um de seus sócios é dono de algumas centenas (ou milhares) de hectares de terra, e emprega uma dúzia de trabalhadores assalariados (em geral superexplorados). Isto é uma iniciativa de economia solidária?

E quanto às cooperativas? Existem cooperativas efetivamente autogestionárias, mas também existem cooperativas “empresas”, em que o número de associados é muito menor que o número de trabalhadores assalariados da cooperativa. E existem muitas cooperativas de trabalho, especialmente aquelas do setor de serviços, que sonegam de seus trabalhadores não apenas o direito às decisões internas no empreendimento, mas também à repartição de seus ganhos econômicos. É comum a existência de cooperativas de trabalho formadas por iniciativa de grandes empresas, com o objetivo de reduzir custos e ampliar a mais valia absoluta da mão de obra empregada.

Há casos, ainda, como das várias cooperativas de trabalho que operam no ramo de fabricação de calçados, no nordeste brasileiro, em que o dilema da classificação é ainda maior, pois embora sejam empresas faccionistas (que trabalham por facção, isto é, na montagem de

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peças moldadas e pré-fabricadas pela empresa líder)47, são diretamente dependentes de uma empresa convencional. Pode-se argumentar, neste caso, que esta seria uma alternativa transitória, ou seja, que pode ser “revolucionada” pela autogestão dos trabalhadores.

Recortar o objeto “economia solidária” exige, portanto, uma opção metodológica clara e explicitada, que permita estabelecer a devida consistência entre o referente e o significante que o nomeia.