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Uma releitura da poética de Patativa a partir de um viés teológico: O Deus do

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Correspondência

Com o objetivo de ver e de fazer o que temos chamado de uma releitura da poética de Patativa em um viés teológico, dentro do chamado método da correspondência, assim denominado por Magalhães, julgamos importante considerar no preâmbulo de tal discussão a contribuição de Josef Kuschel.

Em seu livro Os escritores e as escrituras, Kuschel propõe um caminho para estudar Deus, denominado teopoética, concentrado na crítica estético-literária direcionada a Deus. Inicialmente Kuschel nos coloca as seguintes questões: “a literatura do século XX oferece

79MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. Religião e interpretação literária... In: Religião e Cultura, n◦6

(2004): 26.

critérios estilísticos para um discurso teológico dotado de credibilidade? A teologia pode encontrar na literatura critérios que dificultem ou facilitem seu próprio falar sobre Deus?”81

Ao falar sobre a teopoética, Kuschel apresenta o método da analogia estrutural através da busca de correspondências e analogias entre teologia e literatura. Com isso afirma: “com o pensamento em termos de correspondências almeja-se a conquista de uma teopoética, uma estilística do discurso adequado para falar de Deus nos dias de hoje.”82

Na percepção de Kuschel, teologia e literatura agregam um grande valor quando se busca a correspondência entre ambas, ou seja:

Ao ocupar-se de textos literários e respeitar-lhes a autonomia, percebendo os critérios formais que os conformam, a teologia pode tomar a sério um aspecto da literatura que lhe deve ser muito caro: é aguda nos textos literários a consciência de que não se dispõe do objeto de que se fala. E o mesmo vale para a teologia. Tampouco ela dispõe do objeto de sua reflexão, em favor do qual presta testemunho. Ela é apenas capaz de apontar, a partir de si, para o mistério inefável. E o discurso teológico só pode ter êxito no confronto com textos literários caso se conscientize da problemática de sua própria dicção: do desgaste de suas imagens e de sua linguagem, das fórmulas vazias em que pode incorrer sua expressão.83

Para Kuschel, sua proposta é válida porque a literatura nos dias atuais traz em seu âmago uma característica responsável por torná-la compreensível. Assim, ela ressignifica muitos conceitos da teologia, sobretudo quando a literatura imprime um novo significado e uma nova roupagem para símbolos tão desgastados da teologia. Conforme ele, “o discurso sobre Deus no âmbito da literatura contemporânea vem expressar uma crise espiritual da consciência moderna, na medida em que esta percebe as fantasias de auto-endeusamento.”84

Isto é possível porque os escritores podem ser vistos como uma espécie de profetas, os quais, munidos da perspicácia e da sensibilidade, são capazes de denunciar as falhas, as contradições e as repressões presentes no mundo religioso. Daí as perguntas colocadas por Kuschel em forma de defesa dos escritores:

81KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras, p. 31. 82Idem., p. 223.

83 Idem., p. 225. 84 Idem., p.217.

Quem contribuiu mais do que eles para o desmascaramento de projeções ilusórias no âmbito religioso? E quem, mais que eles, atacou de maneira incisiva os potenciais repressivos e regressivos da religião?”85

Respondendo a tais perguntas, Kuschel conclui que “o falar sobre Deus tem nos escritores a função de auto-esclarecimento realista do ser humano acerca de suas possibilidades e esperanças e acerca dos enganos que a ele mesmo se submete.86

A discussão teórica no campo da teologia e literatura, estabelecida por Kuschel sobretudo no contexto europeu, é um dos temas abordados na obra de Magalhães.87 No livro Deus no espelho das palavras, o autor menciona três contextos nos quais se localiza a discussão

entre teologia e literatura: 1) o contexto europeu, onde se pode perceber um certo conflito entre o artístico e o religioso; 2) o contexto norte-americano, com destaque para os críticos literários Jack Miles e Harold Bloom, responsáveis por uma leitura do texto bíblico como obra literária,e de Deus como personagem principal dessa obra e; 3) o contexto latino-americano, no qual o autor destaca os trabalhos de Pedro Trigo, Gustavo Gutiérrez, Antonio Mazatto e Luis N. Rivera Pagán.

Mas para o momento de nossa discussão, o que queremos observar e destacar na obra de Magalhães são as três possibilidades apresentadas pelo autor para o enriquecimento do diálogo entre teologia e literatura e, de forma mais especifíca, o que diz respeito ao método da correspondência.

A primeira possibilidade se refere ao modelo da realização: “no modelo da realização, parte-se do pressuposto de que a linguagem da literatura atualiza, concretiza e interpreta de uma forma própria as verdades estabelecidas pelo canône ocidental da Igreja”.88

A segunda possibilidade se refere ao modelo da teopoética. Neste caso, “reconhece-se no modelo da teopoética, tanto no contexto europeu, quanto nos escritos de Rubem Alves, um caminho a ser trilhado, refletido e aprofundado, pois isso incide sobre o próprio método teológico”.89

85KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras., p. 217. 86 Ibid., p. 217.

87MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas,

2001.

88 Ibid., p.148. 89 Ibid., p.150.

Por último, a terceira possibilidade, que Magalhães chama de método da

correspondência, sobre a qual desejamos nos ater de forma mais aprofundada. Antes de qualquer coisa, cabe atentar para o fato de que “o método se constrói sempre em diálogo com outros caminhos”.90 É preciso também lembrar a diferença existente entre o método da correlação e o da correspondência:

Se no método da correlação há uma dinâmica pressuposta entre pergunta e resposta, na correspondência parte-se do princípio de que essa relação precisa ser radicalmente superada na teologia e que precisamos encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual, seguindo o conceito de correspondência em matemática, a cada elemento de um conjunto são asociados um ou mais de outro.91

Visto de uma forma voltada para o ambiente e o mundo teológico, o método da correspondência pode ser definido nos seguintes termos:

Numa formulação mais voltada para o mundo da teologia, a cada elemento considerado da revelação na Bíblia e na tradição teológica, podem ser associados um ou mais na literatura mundial. A cada narrativa considerada compeensão da fé, há que associar outra dentro da literatura. A cada forma de anúncio de uma verdade considerada fonte da fé, há que se associar outra na experiência das pessoas e nas interpretações literárias. Com isso Bíblia e tradição mantêm-se como interlocutoras, sem elas não haveria correspondência; perdem, entretanto, seu lugar de normatividade única do saber teológico.92

O método da correspondência não é um método apenas marcado pela abertura do diálogo com outros caminhos. Também não é apenas aquele que opta pela não normatividade única da Bíblia e da tradição, respectivamente. Mas, muito além disso, pode também ser usado e aplicado a outros temas, tais como “na relação entre cristianismo e religiões não- cristãs, entre dogma e mito, religião oficial e religião popular e outros temas afins”.93

Outra característica do método aqui mencionado é que nele se permite rconhecer as diferentes motivações contidas, segundo Magalhães, tanto nos textos religiosos confessionais como nos textos literários. Essa perspectiva nos permite a compreensão da constante abertura e das várias interpretações possíveis em um determinado texto, seja ele de caráter religioso ou literário.

90MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo., p.204 91 Ibid., p. 205.

92 Ibid., p. 205. 93 Ibid., p. 205.

Assim ocorre o surgimento de um desdobramento que permite que vejamos sempre algo novo a partir de um determinado texto, uma vez que um texto gerado, colocado no mundo e disponibilizado ao alcance de todos foge da idéia originária de seu autor ou autora. Logo, comportará várias interpretações em diferentes épocas e lugares.

No que se refere à experiência religiosa, para Magalhães a correspondência será algo com caráter de permanência, “visto que o crente se sente participando da dinâmica do texto, e este passa a ser parte integrante de sua vida”.94 Mas além disto, a correspondência também é “uma dinâmica textual na relação entre teologia e literatura, permitindo que ambas se pertençam na interpretação do mistério e do sentido mais profundo de nossas vidas”.95

Assim sendo, se Deus de fato tramita no espelho das palavras, utilizando uma expressão do próprio Magalhães, então é válido afirmar que é também um Deus que não apenas tramita, mas que se encontra presente na beleza e na riqueza de poemas e versos de muitos poetas. Ou, ainda que não esteja presente, pelo menos deixou seus rastros que, graças à sensibilidade e perspicácia dos poetas, foram registrados em poemas capazes de apontar certas faces de Deus. Neste sentido, a partir do contato com a religião, a literatura tem sido capaz de elaborar de forma peculiar e criativa “as faces de um deus literário” que, na maioria das vezes, contrapõe-se ao Deus institucionalizado e dogmático das religiões.

A exposição efetuada até o momento nos conduziu sobre a ponte do diálogo entre teologia e literatura, bem como sobre a aproximação feita entre esta ponte e a obra poética de Patativa. E nesta perspectiva consideramos as possibilidades e aproximações desta obra literária com a teologia.

Foram tecidas ainda as considerações sobre a literatura enquanto uma possível intérprete da religião e seus fenômenos. Somando-se a isto, foi apresentada também a exposição do chamado método da correspondência. Tais discussões servirão como ferramentas e nos ajudarão a continuar o desenvolvimento deste trabalho nos próximos capítulos.

94 MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo, p. 207. 95 Ibid., p. 207.

CAPÍTULO II – A RELIGIÃO NA POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ

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