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(1)UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA. DE. P Ó S -G R A D U A Ç Ã O. EM. CIÊNCIAS. DA. RELIGIÃO. OZEAS DA SILVA NUNES. INSPIRAÇÃO NORDESTINA: UMA LEITURA TEOLÓGICA NA POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ NA PONTE DO DIÁLOGO ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2008.

(2) OZEAS DA SILVA NUNES. INSPIRAÇÃO NORDESTINA: UMA LEITURA TEOLÓGICA NA POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ NA PONTE DO DIÁLOGO ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA. Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães.. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2008.

(3) Aos meus pais Alcides Nunes e Maria das Graças, exemplos de fé, esperança e simplicidade..

(4) O sentimento de gratidão é inevitável ao chegar ao término dessa pesquisa, por isso expresso meus sinceros agradecimentos.... Ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pela seriedade dispensada aos seus bolsistas. Ao professor e amigo Antonio Carlos Magalhães, pelo apoio constante e pelas preciosas orientações concedidas ao longo dos meses. Aos professores da UMESP, pela rica oportunidade de crescimento e aprendizagem, desfrutados no decorrer dessa pesquisa. Aos amigos Pedro e Kênia, pelos agradáveis momentos compartilhados, pelo excelente “café cubano” tantas vezes saboreado e pela preciosa amizade. Aos novos e velhos (porque sempre tenho a impressão que já nos conhecemos há anos) amigos Thiago e Márcia, vocês foram uma das melhores surpresas que a vida revelou-me em 2007. Aos moradores da Casa de estudantes Prócoro Velasquez Filho com os quais convivi nesses dois anos: Antonio Almeida, Cristina Kelly, Fernanda Rocha, Fernanda Lemos, Jorge Amilcar, Rogério Migliorini, Rogério Pires, Adriana Souza, Luciana Soares (minha baiana predileta). Aos funcionários da biblioteca central da UMESP, em especial à Camila, pela presteza e eficiência no serviço e pela gentileza sempre presente no atendimento. À Rosemary Andrade pelo apoio sempre concedido e pela generosidade sempre demonstrada. Ao amigo Maurício Silva Pereira, meu mais sincero sentimento de gratidão pelo apoio e amizade. Ao meu amigo e irmão Toninho, pela rica convivência e pela preciosa amizade desfrutadas ao longo desses meses na casa de estudantes. À Eliz, pela imensa gentileza em revisar este trabalho e pela amizade, a qual infelizmente só comecei a desfrutar nos últimos dias em que estive em São Paulo. À família Ramos Correa pela acolhida e hospedagem concedidas nos períodos de férias em Macapá, e ao meu amigo Edson pelos tantos socorros concedidos nesse período. Aos meus pais e irmãos, mesmo distantes geograficamente, mas tão próximos do meu coração, esta conquista não é apenas minha, é nossa..

(5) Poeta, cantô da rua, Que na cidade nasceu, Cante a cidade que é sua, Que eu canto o sertão que é meu. Se aí você teve estudo, Aqui, Deus me ensinou tudo, Sem livro precisá Por favô, não mexa aqui , Que eu também não mêxo aí, Cante lá, que eu canto cá. ... Sua rima, inda que seja Bordada de prata e de ôro, Para a gente sertaneja É perdido este tesôro. Com o seu verso bem feito, Não canta o sertão dereito, Porque você não conhece Nossa vida aperreada. E a dô só é bem cantada, Cantada por quem padece. ... Repare que a minha vida É deferente da sua. A sua rima pulida Nasceu no salão da rua. Já eu sou bem deferente, Meu verso é como a simente Que nasce inriba do chão; Não tenho estudo nem arte, A minha rima faz parte Das obra da criação. ... Sua vida é divirtida E a minha é grande pená. Só uma parte de vida Nóis dois samo bem iguá: É no dereito sagrado , Por Jesus abençoado Pra consolá nosso pranto, Conheço e não me confundo Da coisa mió do mundo Nóis goza do mesmo tanto.. Patativa do Assaré.

(6) INSPIRAÇÃO NORDESTINA: UMA LEITURA TEOLÓGICA NA POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ NA POENTE DO DIÁLOGO ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA RESUMO Este trabalho se propõe estudar a obra do poeta cearense Antonio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré. O estudo de tal obra encontra-se alicerçado na crítica literária, sobretudo no conceito de textos histórica e socialmente ancorados elaborado por Antonio Cândido, e na discussão do diálogo entre teologia e literatura, a partir da idéia de reescritura de um texto literário a partir de textos sagrados, de Eli Brandão. Dessa forma objetiva-se localizar, no contexto brasileiro, a partir do diálogo entre teologia e literatura, a plausibilidade de nossa pesquisa, ou seja: ao longo da produção literária de Patativa do Assaré, encontramos questões existenciais provocadoras de diversas aflições percebidas no cotidiano do povo sertanejo, as quais nos remetem a questionamentos e temas de cunho teológico, notados através da obra de um poeta, reveladora não somente da dura realidade do nordestino, mas também da fé e esperança deste em um Deus, visto ao longo da poética de Patativa do Assaré não como fonte de castigo, mas percebido como um Deus sensível aos sofrimentos, mazelas e marginalização dos nordestinos desamparados. Assim, acreditamos na proposta de estudar a poética patativana sob a perspectiva de “um olhar teológico”, a partir do qual se percebe “temas teológicos nordestinos”, elaborados a partir do contato do poeta com o catolicismo do sertão, mas que, na percepção e compreensão de mundo de Patativa assumem novos significados e novas interpretações.. Palavras-chave: Patativa do Assaré, teologia, literatura, diálogo, crítica literária, poesia..

(7) Northeastern Inspiration: An approach to the Patativa de Asare’s poetry as a bridge to the dialogue between theology and literature.. ABSTRACT. This thesis analyses the poetry of a famous writer from Ceara, Antonio Gonçalves da Silva, best known as Patativa do Assaré. This research is based on a literary criticism, specifically of those texts elaborated by Antonio Cândido that deal with issues related to history and society, and on a discussion about the establishment of a dialogue between theology and literature. The perspective of Eli Brandão points out the need of rewriting a literary text taking as reference sacred texts, will be useful for the achievement of this very purpose. With these two approaches, Cândido’s and Brandão’s, this investigation aims to find out its plausibility through out the dialogue between theology and literature. In other words, in Assare’s writings it is possible to perceive existential questions regarding the everyday problems in the lives of those who live in the sertão. The aspects highlighted in his poems lead to several theological questions and themes revealing, not only the hard reality of the northeastern Brazilian people, but also their faith, hopes and beliefs. The God presented by Pataiva do Assaré is not a God that repays you for the bad things you have done to others, but a God that sees the sufferings, exclusions and illnesses of those who are abandoned in the sertão. Therefore, we believe that the proposal to study Assare’s poetry from a theological point of view could be a good way to bring out those “northeastern theological themes” that came out as a result of the contact between the poet and Catholicism; topics that according to Assare’s thought bring out new meanings and interpretations.. Keywords: Patativa do Assaré, theology, literature, dialogue, literary criticism, poetry..

(8) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10. CAPÍTULO I - SOBRE O VÔO DE UM POETA: QUEM FOI PATATIVA DO ASSARÉ...................................................................................................................................12 1.1. Notas biográficas de um poeta..........................................................................................12 1.1.1. Patativa do Assaré: o poeta da justiça social................................................................14 1.1.2. O poeta da militância política.......................................................................................16 1.2. A percepção do canto de Patativa a partir dos Estudos de Sua Obra.................................18 1.3. A percepção do canto de Patativa a partir da ponte do diálogo entre Teologia e Literatura: aproximações e possibilidades..................................................................................................25 1.3.1. Aproximações.................................................................................................................25 1.3.2. Possibilidades..................................................................................................................29 1.4. O retrato literário de Deus na poética de Patativa do Assaré.............................................33 1.4.1. A Literatura vista como intérprete da religião...............................................................33 1.5. Uma releitura da poética de Patativa a partir de um viés teológico: O Deus do Cristianismo refletido em Patativa do Assaré em diálogo com o Método da Correspondência........................................................................................................................35. CAPÍTULO II – A RELIGIÃO NA POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ PERCEBIDA EM TEMAS TEOLÓGICOS NORDESTINOS CONSTRUÍDOS EM VERSOS A PARTIR DA ARIDEZ DO NORDESTE: O CRISTIANISMO REESCRITO...........................................................................................................................40 2.1. O Canto de Patativa do Assaré sobre Juízo Divino...........................................................50 2.2. O Canto de Patativa do Assaré sobre a Imagem de Cristo em um nordeste de “santos”.....................................................................................................................................58 2.3. O Canto de Patativa sobre sua percepção de Justiça Social ..............................................65 2.4. Imagens de Personagens de um Cristianismo Nordestino.................................................72 2.4.1. Dom Hélder Câmara.......................................................................................................72 2.4.4. Antonio Vicente Mendes Maciel (Antonio Conselheiro)...............................................79.

(9) CAPÍTULO III – A PLAUSIBILIDADE DE UMA TEOLOGIA VERSEJADA EM UMA POÉTICA SERTANEJA: IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS A PARTIR DA OBRA DE PATATIVA DO ASSARÉ...................................................................................84 3.1. A poética de Patativa do Assaré enquanto um “exercício de fé”.......................................85 3.2. A poética de Patativa enquanto reinterpretação da religião e seus símbolos.....................94 3.3. O percurso poético da teologia em Patativa do Assaré....................................................109. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................113. BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................119.

(10) INTRODUÇÃO. O estudo da teologia em diálogo com a literatura dispõe hoje de uma bibliografia considerável, resultado de variadas pesquisas elaboradas nas últimas décadas. São investigações sobre os mais diversos temas, nos quais se analisa as obras de muitos autores brasileiros. Assim, a partir do exame das obras de romancistas e poetas surgem trabalhos diversos e criativos. Nesta pesquisa propomos fazer uma “leitura teológica” da obra poética de Patativa do Assaré e, através de tal leitura, compreender até que ponto a influência da religião é presente na construção de poesias que foram pensadas ao longo de toda uma vida – as quais foram elaboradas em contato permanente com a terra, lugar de onde Patativa do Assaré sempre retirou o necessário para a sua subsistência e sua inspiração.. Além disto, objetivamos ainda demonstrar na produção literária de Patativa a possibilidade de se fazer uma leitura de “temas teológicos nordestinos”, bem como encontrar uma percepção e uma busca por Deus, a partir de uma concepção herdada do catolicismo, como meio de proporcionar esperança e de aliviar o sofrimento do nordestino marginalizado – o que motivou o poeta ao engajamento em uma luta permanente pela igualdade e pela dignidade do sertanejo, que na maioria das vezes sempre se viu abandonado à própria sorte. Nesta pesquisa procuramos traçar o seguinte roteiro: no primeiro capítulo apresentaremos uma vista panorâmica da vida do poeta Patativa, sua infância, sua dedicação no cultivo da roça e toda a inspiração na construção de uma obra poética elaborada desde o contato permanente com o sertão. Consideramos importante oferecer no capítulo introdutório um resumo dos trabalhos acadêmicos já elaborados sobre a obra de Patativa. Ademais, apresentamos esta obra a partir do diálogo entre teologia e literatura, onde consideraremos as aproximações e suas possibilidades aplicadas de forma particular a esta poética. Faremos uma releitura da poética patativana numa perspectiva teológica, através da qual esperamos chegar à constatação de que de fato é plausível a idéia de se perceber nas linhas e nas rimas das poesias de Patativa o que temos denominado de temas teológicos..

(11) No segundo capítulo, procuraremos extrair os chamados “temas teológicos nordestinos” da obra de Patativa do Assaré. Todavia, para chegar a esta constatação, partiremos de dois referenciais: o primeiro é aquele que defende a idéia de se ler um texto que foi escrito a partir do contato com outro texto dito sagrado; o segundo referencial apresenta a idéia dos textos social e historicamente ancorados, através dos quais se podem constatar fatos e acontecimentos históricos relatados na obra de determinados autores. Tomando estes referenciais, acreditamos que seja possível perceber os diversos “temas teológicos” captados ao longo da poética patativana, temas estes em que perceberemos a forma como o poeta Patativa trata de determinados aspectos ligados à religião. Além do mais, é a oportunidade de constatar também os temas e as preocupações mais relevantes do poeta retratados em suas poesias. Em seguida, caminharemos para o último capítulo desta pesquisa, no qual analisaremos a plausibilidade de se encontrar ou não uma “teologia versejada” na obra poética de Patativa do Assaré. De fato, é neste capítulo que defenderemos três questões que consideramos importantes. A primeira questão é aquela na qual defendemos a possibilidade de se ver a poética patativana enquanto um exercício de fé que não está restrito apenas aos domínios de uma instituição religiosa. A segunda procura olhar para a poética de Patativa enquanto possibilitadora de reinterpretação da religião e seus símbolos, uma vez que o poeta capta temas do catolicismo e os apresenta de acordo com sua visão e interpretação a respeito da religião. E finalmente, a terceira questão apresenta de forma sucinta o percurso poético da teologia em Patativa do Assaré, uma vez que a literatura não pode ser vista apenas como portadora de aspectos da religião, mas pode também ser vista e percebida como intérprete coerente dos mais variados fenômenos religiosos..

(12) CAPÍTULO I - SOBRE O VÔO DE UM POETA: QUEM FOI PATATIVA DO ASSARÉ. 1.1. Notas biográficas de um poeta. Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como o poeta Patativa do Assaré, nasceu no dia 5 de março de 1909, na Serra de Santana, situada a 18 quilômetros do pequeno município de Assaré, localizado cerca de 600 km de Fortaleza. O cenário da vida e da produção poética de Patativa sempre foi o sertão cearense, mais especificamente a micro-região serrana de Caririaçu, onde está localizada Assaré, que “situa-se entre as secas terras dos Inhamuns, zona do semi-árido, e as terras mais férteis e favorecidas pela chuva do chamado Cariri cearense.”1 O poeta Patativa do Assaré nasceu em um ambiente muito pobre, filho dos agricultores Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva. Teve quatro irmãos: José, Joaquim, Pedro e Maria. Aos nove anos ficou órfão do pai e a dura realidade do campo o levou a enfrentar precocemente a vida de agricultor juntamente com a mãe e os demais irmãos. Só conseguiu passar pela escola aos dozes anos de idade, ainda assim uma passagem extremamente rápida, já que estudou somente por seis meses. Além da brevidade do tempo passado na escola, o poeta ainda teve que lidar com um professor cuja formação era precária. Todavia, foi tempo suficiente para aprender a ler, mesmo que “sem ponto, sem vírgula, sem nada.”2 É também com a idade de doze anos que inicia o ofício de fazer verso. Contudo, isto jamais impediu que deixasse a vida de agricultor, à qual dedicou cerca de sete décadas de sua vida. Com a idade de 16 anos, comprou uma viola de dez cordas e começou a cantar de improviso. Para Patativa, o cantar era um esporte através do qual atendia a convites diversos, como festa de renovação de santo, casamentos, aniversários de pessoas amigas. Quando completou vinte anos de idade, um primo de sua mãe o convidou para visitar Belém. Em seguida, passou dois meses em Macapá, onde conheceu o escritor cearense José Carvalho de Brito, correspondente do Correio do Ceará e autor do livro O matuto ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção – capítulos de uma poética sertaneja. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000 (Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira), p. 126. 2 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô (poesia). Petrópolis: Vozes, 1990, pp. 8-13. 1.

(13) cearense e o caboclo do Pará. Neste livro o escritor dedicou um capítulo ao poeta, falando que a espontaneidade da sua poesia assemelhava-se ao canto sonoro de uma ave típica do nordeste – a patativa. Assim, a partir dos vinte anos o poeta Antônio passou a ser chamado de Patativa. Sobre o poeta, José Carvalho tece o seguinte comentário: “é um cantador e tocador de viola, autêntico e dos bons, apesar de ter apenas 20 anos de idade. É o Antônio Gonçalves, já crismado por ‘Patativa”’3. O talento já era evidente, apesar de Patativa ser ainda muito novo e saber ler muito pouco. Mais tarde, como foram surgindo outros artistas com o mesmo nome, acresceu-se a esta alcunha o nome de Assaré, numa identificação com sua terra natal. Ao retornar ao Ceará, Patativa traz consigo uma carta de recomendação redigida por José Carvalho de Brito, endereçada à Dra. Henriqueta Galeno, filha do famoso poeta cearense Juvenal Galeno. Por intermédio dela, faz algumas apresentações em Fortaleza e, em seguida, retorna para Assaré. Ao longo de sua trajetória (que durou mais de nove décadas), Patativa do Assaré, o homem e poeta do campo que começou a ganhar notoriedade nas feiras de agricultores que se realizavam na cidade do Crato, teve a oportunidade de publicar quatro livros. Segundo Carvalho, foram os seguintes: O Patativa impresso em livro, primeiramente com o Inspiração Nordestina, de 1956, ganha segunda edição, onze anos depois, Cante lá que eu canto cá, com selo editorial de Vozes, de Petrópolis, de 1978, é seu grande sucesso de vendas, com sucessivas reedições. Ispinho e Fulô, de 1988, e Aqui tem coisa, de 1994, completam a sua bibliografia, que não pode excluir a coleção Balceiro, que organizou em parceria com Geraldo Gonçalves, em 1991.4. Quando Patativa do Assaré completou 86 anos de idade, a Secretaria de Cultura do Estado do Ceará publicou uma coletânea de textos em homenagem ao poeta intitulada Aqui tem coisa, procurando salientar a criatividade de Patativa na elaboração de suas poesias. Assim, “Patativa do Assaré, como mestre da poesia oral, nunca tentou publicar um texto com seus próprios meios, mas foi sempre publicado pelos admiradores de sua obra”.5 Em março de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso rendeu uma homenagem ao poeta, já cego, conferindo-lhe a “Medalha José de Alencar”, quando foi à Fortaleza para a celebração de seu 3. CARVALHO, José. O matuto cearense e o caboclo do Pará: contribuição ao folclore nacional. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1973, p. 133. 4. CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto. Disponível em: http/www.overmundo.com.br. Acesso em 15 de março 2007. 5 CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto, p. 20..

(14) octogésimo sexto aniversário. Nesta ocasião foi lançado o disco Patativa do Assaré: 85 anos de poesia. Ainda em vida, Patativa recebeu o título de doutor honoris causa em diversas universidades: Universidade Regional do Cariri (URCA) em 1989, Universidade Estadual do Ceará (UECE) por ocasião de seus 90 anos, Universidade Federal do Ceará (UFC). Tem sido estudado em dissertações e teses, despertando diversas reflexões acadêmicas. Faleceu no dia 8 de julho de 2002, aos 93 anos. O poeta deixou uma obra poética riquíssima e um exemplo de vida admirável, marcado por uma voz de denúncia que sempre apontou as mazelas e injustiças sofridas pelos nordestinos. Um poeta que “versejou sobre política e literatura, sobre fome e sede; sobre seca e enchente, sobre amor e dor; sobre ganância e ingenuidade, sobre beatos e cangaceiros, sobre Deus e o diabo”.6. 1.1.2. Patativa do Assaré: o poeta da justiça social. Patativa do Assaré, homem e poeta do campo, adquiriu ao longo de sua existência uma aguçada visão crítica da dura realidade social do povo sertanejo. Esta visão fez com que o poeta mantivesse na vida sempre uma postura de combate e nunca de omissão, uma posição política muito bem esclarecida e nunca de alienação em relação aos problemas sociais em que vivia seu povo – uma realidade cruel e brutal, ora marcada pelas constantes secas que castigavam e ainda castigam o nordeste brasileiro, ora marcada pela invariável exploração a que o nordestino sempre foi submetido, quer seja por uma classe política que sempre lucrou com a rentável indústria da seca, quer seja pela exploração de patrões que nunca respeitaram os direitos do trabalhador, sobretudo nos campos do nordeste. Um dos títulos atribuídos a Patativa é o de poeta social, porque poucos como ele tiveram a sensibilidade, a perspicácia e a coragem de mostrar, através da beleza e do lirismo da poesia, as mazelas sociais mais profundas presentes na sociedade brasileira. Assim, “o poeta e cantor da roça capta e descreve, com aguda perspicácia, a realidade social em toda sua abrangência”.7. 6. ÂNGELO, ASSIS. Patativa bateu asas e voou. Disponível em: http://www.anovademocracia.com.br/02/28.htm. Acesso em 2 de março de 2007. 7 NUVENS, Plácido Cidade. Patativa do Assaré, poeta social. In: Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. Petrópolis/Crato: Vozes/Fundação Pe. Ibiapina, 1992, p. 13..

(15) Através da semente da poesia, Patativa plantou e depois distribuiu ao mundo muitos frutos. Um deles lhe rendeu o título de poeta social, porque soube perceber, de forma sutil, desde os mais explícitos até os mais camuflados mecanismos de injustiça social aos quais os nordestinos são submetidos. Daí o seguinte depoimento: “sua poesia, do ponto de vista social, reflete todo o mundo visionário e fantasmagórico do caboclo”8, visto como um espoliado até mesmo do direito básico e inalienável de possuir um pedaço de terra para plantar.. Muitas poesias de Patativa trazem em seu conteúdo o grito e a denúncia contra as injustiças sociais, mostrando a realidade de um Brasil marcado problemas sociais graves. Um exemplo pode ser encontrado no poema Brasi de cima e Brasi de baxo: Inquanto o Brasi de Cima / Fala de transformação / Industra, matéra prima / Descobertas e invenção, / No Brasi de Baxo isiste / O drama penoso e triste / Da negra necissidade; / É uma cousa sem jeito / E o povo não tem dereito / Nem de dizê a verdade. No Brasi de Baxo eu vejo / Nas ponta das pobre rua / o descontente cortejo / De criança quage nua. / Vai um grupo de garoto / Faminto, doente e roto / Mode caçá o que comê / Onde os carro põe o lixo, / Como se eles fosse bicho / Sem direito de vive.9. Patativa procura demonstrar a vida de um país em cujas fronteiras estão presentes tantas mazelas e contradições. Daí resulta a impressão de se lidar com dois Brasis, duas realidades contrastantes e contraditórias, absurdamente opostas, em que determinados grupos e classes desfrutam de bem-estar social e do desenvolvimento digno de um país de primeiro mundo, enquanto a maioria esmagadora vive na mais absoluta miséria e abandono no chamado “Brasi de Baxo”.. A denúncia contra a injustiça social é percebida também no poema O operário e o camponês. Para Patativa, “o operário e o camponês são os dois desvalidos [...] eu procuro unir os dois, mas vejo que há sempre uma dificuldade. O pobre do agregado, humilde, se sente mesmo que é menor do que o operário”.10 Entretanto, na percepção do poeta, ambos se encontram na mesma situação de abandono, marginalização e exploração: Vão no mesmo itinerário / sofrendo a mesma opressão / nas cidades o operário / e o camponês no sertão / embora um do outro ausente / o que um. 8 9. NUVENS, Plácido Cidade. Patativa do Assaré, poeta social. In: Patativa do Assaré: um poeta, p. 50.. ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. Petrópolis/Crato: Vozes/Fundação Pe. Ibiapina, 1992, p. 273. 10 ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo. São Paulo: Escrituras Editora, 2001, p. 43..

(16) sente o outro sente / se queimam na mesma brasa / e vivem na mesma guerra / os agregados sem terra / e os operários sem casa.11. O historiador Albuquerque Jr., em sua tese de doutorado em História, ao comentar sobre as obras de Jorge Amado e Graciliano Ramos, declara que a intenção de ambos visa à denúncia de algumas misérias e contradições do nordeste, já que “são obras que querem ser um reclamo, um brado de alerta, às vezes beirando até o panfleto”.12 Podemos, de forma semelhante, declarar que na obra de Patativa encontramos também um brado de alerta através do qual o poeta expressa sua indignação em relação às injustiças atrozes que dominam de forma acentuada a vida de nordestinos menos favorecidos.. 1.1.3. O poeta da militância política. Patativa do Assaré, conforme já mencionamos anteriormente, mesmo vivendo distante de um grande centro urbano, sempre esteve atento ao que acontecia no cenário político nacional e sempre atualizado com os principais fatos da política brasileira, pois entendia que sua poesia poderia ser também um instrumento eficiente para se manifestar (inclusive no período da chamada ditadura militar, marcado pela falta de expressão individual e coletiva) sua indignação e discordância perpetradas contra a falta de liberdade de expressão. Por conta disto é que se envolveu na Campanha das Diretas. Sobre este movimento escreveu o seguinte poema:. Bom camponês e operaro / a vida ta de amargá / o nosso estado precaro / não há quem possa agüentá / nesse espaço dos vinte ano / que a gente entrou pelo cano / a confusão é compreta / mode a coisa miorá / nós vamo bradar e gritar / pelas inleição direta. Camponês, meu bom irmão / e operaro da cidade / Vamo unir as nossas mão / e gritá por liberdade / levando na mesma pista / os estudante, os artista / e meus colega poeta / vamo todos reunido / fazer o maió alarido / pelas inleição direta [...] Cadê a democracia / que o pudê tanto irradia / nas terra nacioná? / Tudo isso é demagogia / quem já viu democracia / sem direito de votá?13. 11. ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo, p. 45. ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 3 ed. Recife/São Paulo: FJN/Ed. Massangana/Cortez, 2006. p. 209. 13 ASSARÉ, op.cit., pp. 57-59. 12.

(17) O envolvimento de Patativa do Assaré com a política ao longo de sua vida deixou marcas em sua produção literária, marcas que são resultado e fruto de uma consciência que não se calou diante de momentos cruciais de nossa trajetória política. Por exemplo, quando se iniciaram pelo país os comícios solicitando a anistia, o poeta não se eximiu de sua responsabilidade, uma vez que participou ativamente de tal movimento. Segundo Feitosa, Sua participação no movimento da Anistia mostrou mais o poeta, mas era impulsionada por um sentimento de justiça e liberdade, uma busca utópica da verdade presentes desde a mais tenra idade que o moveu e o levou a se encontrar no futuro com figuras como Darcy Ribeiro e Teotônio Vilela, num dos memoráveis eventos que a Praça do Ferreira, em Fortaleza, assistiu: o comício em prol da anistia.14. Para movimentos como este Patativa não deixou de dar sua contribuição. Através de sua poesia, procurou traduzir os anseios da sociedade da época e, ao pensar na anistia, produziu o poema Lição do pinto: Vamos meu irmão / a grande lição / vamos aprender, / é belo o instinto / do pequeno pinto / antes de nascer [...] Vamos minha gente / vamos para a frente / arrastando a cruz, / atrás da verdade / da fraternidade / que pregou Jesus [...] Se direito temos / todos nós queremos / liberdade e paz, / no direito humano / não existe engano / todos são iguais / O pinto dentro do ovo / aspirando um mundo novo / não deixa de beliscar, / bate o bico, bate o bico / bate o bico, tico, tico / pra poder se libertar.15. Patativa é também aquele que conhece os fatos que caracterizaram de forma conturbada a política brasileira em 1992. Desta forma, faz menção aos acontecimentos que “levaram ao afastamento de um Presidente da República e a toda a conjuntura que cercou o fato”.16 Mais uma vez, por meio de seus versos, Patativa apresenta sua opinião sobre o que estava ocorrendo com o poema Encontro de Patativa do Assaré com a alma de Zé Limeira o poeta do absurdo: A tua resposta eu achei excelente / sucessivamente tudo está mudando / o chefe dos chefes já foi afastado / O Brasil agora está bem diferente / nós temos agora novo presidente / saiu o Fernando entrou Itamar, / porém continua sem nada mudar / campeia a miséria que tudo consome / o rico roubando e o pobre com fome / nos dez de galope da beira do mar.17. 14. FEITOSA, Luis Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras Editora, 2003, p. 129. 15. ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa. São Paulo: Hedra, 2004, p. 125. ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção, pp. 109-110. 17 ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa, p. 75. 16.

(18) Na obra do poeta do sertão cearense se encontram presentes suas impressões e conceitos a respeito de tudo o que outrora ocorria no mundo da política na capital do poder, no planalto central. Pois é a impressão de alguém que está percebendo o caos e a desorganização social pelos quais passa o país naquele momento, por ocasião do afastamento do primeiro presidente eleito pelo voto direto após a queda do regime militar. De tal fato decorrem as seguintes impressões do poeta: Nós estamos dentro de um caos da miséria / é tudo piléria e semente do mal / cresceu a malícia e morreu a moral / se envolveram todos na baixa matéria, / a crise presente é séria e bem séria / vem plano e mais plano e sem plano acertar, / é que a maioria não quer trabalhar / do campo à cidade da pista ao asfalto / reina a violência o roubo e o assalto / nos dez de galope da beira do mar.18. Patativa, na qualidade de um atento observador dos fatos que ocorriam na sociedade brasileira no início da década de 1990, traça o perfil de uma sociedade agonizada por várias e sérias denúncias de corrupção que grassavam na política brasileira. Apresenta também o quadro de uma inflação crescente e mostra com nitidez o desencanto da sociedade com sucessivos planos econômicos, que insistiam em naufragar, um após o outro. É a visão nítida de um poeta do campo, que estava atento a tudo quanto estava acontecendo no âmbito político, não apenas em seu Estado, mas no Brasil.. 1.2. A percepção do canto de Patativa a partir dos Estudos sobre sua Obra. Vários pesquisadores têm procurado estudar de forma sistemática a vida e a obra de Antônio Gonçalves da Silva (O Patativa do Assaré). Um deles é Sylvie Debs, que acredita que a concepção de mundo do poeta cearense corresponde “a uma realidade cultural nordestina”.19 Patativa do Assaré abordou com propriedade, paixão e sensibilidade a vida nordestina, a qual é transformada na síntese e no vínculo entre a dura realidade sertaneja e o mundo exterior. Daí a constatação: “o que faz a força e o sabor da poesia de Patativa do Assaré é, sem dúvida, esse vínculo indestrutível entre o poeta, o sertão e o público”.20. 18. ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa, p. 75.. 19 20. DEBS, Sylvie. Patativa do Assaré: uma voz do Nordeste. São Paulo, 2000. p. 27. Ibid., p.35..

(19) O vínculo de Patativa com o sertão lhe permitiu falar e descrever um sertão por ele conhecido por mais de nove décadas. Este conhecimento o credenciou para falar e versejar sobre um sertão de desigualdade social, de abandono, de exploração e de seca, e esta realidade é evidenciada por diversos escritores e estudiosos do legado poético do poeta cearense. Patativa do Assaré surge não apenas como o poeta, mas também como o porta-voz credenciado do nordeste, conhecedor na prática do significado de “ser sertanejo”. Este sertanejo sabe e conhece o drama da exploração econômica presente na vida do nordestino pobre, porque desde cedo aprendeu a seguinte lição: “a seca só prejudica ao pequeno agricultor que é obrigado a deixar suas terras e entregá-las quase de graça para o rico fazendeiro que a falta de chuva não atingiu”.21 Vê-se, assim, como o poeta perspicaz, denunciador da exploração política, revela uma aguçada visão sobre o monopólio de determinados e inescrupulosos políticos, donos de uma riqueza construída em detrimento do bem-estar do caboclo nordestino; é o poeta de uma límpida “visão sobre o voto de cabresto, a ludibriação, o clientelismo, o apadrinhamento e outras várias mazelas implantadas pelo ‘homem civilizado’, para deteriorar a vida do matuto”.22 Temos uma obra poética responsável pelo eco de um canto de liberdade, liberdade esta que, segundo Gilmar de Carvalho, é traduzida através de um Patativa que “espalhou seu canto, mavioso, como se fosse um vento que soprasse no final da tarde ou uma chuva que tudo fertilizasse, terra molhada em sua serra, paraíso particular, onde deixou a mais valiosa de todas as sementes: a da poesia”.23 Do ponto de vista da academia, hoje dispomos de alguns trabalhos sobre Patativa do Assaré, elaborados nos anos recentes, uma vez que o poeta cearense tem sido sujeito de pesquisas em algumas áreas, passando pela sociologia, literatura brasileira e também no campo das ciências da religião.. 21. ROCHA, Jesus. Patativa do Assaré: um poeta popular. Fortaleza: Apex, 2000, p. 19. Ibid., p. 21. 23 CARVALHO, Gilmar de. Poesia e liberdade: canto de trabalho. In: Patativa do Assaré: um poeta popular, p. 46. 22.

(20) Um dos trabalhos realizados sobre Patativa do Assaré é a tese de doutorado em sociologia, de Luiz Tadeu Feitosa.24 O caminho de pesquisa seguido por este autor, como ele mesmo define, é “o entrelaçamento entre poesia, história e sociologia”.25 Após essas observações do autor, cabe aqui analisar de forma mais detalhada a sua tese, cuja área de concentração passa principalmente pelo crivo sociológico. Uma das constatações de Feitosa sobre a poesia patativana se deve ao fato de tal poética estar ligada de forma indissociável à realidade do nordeste e, de forma mais específica, ao sertão: Os versos de Patativa que cantam a seca, a terra e o sertão são unidades mnemônicas que se completam para a construção imaginária do Sertão. Um ser-Tão. Ser tão grandioso que instaura na memória coletiva uma marca, um sinal de existência, a pertença a uma categoria social: o sertanejo. Os versos do poeta de Assaré são narrativas que dizem este ser.26. O sertão é visto na poesia patativana como o local de onde brotam versos produzidos em um universo a partir do qual Patativa do Assaré construiu sua visão de mundo. O sertão para o próprio poeta é descrito assim: - Ah! O sertão é. O sertão é a riqueza natural, que nós temos, não é? É o ponto melhor da vida para quem sabe ver é o sertão, pois ali está tudo o que a natureza cria, o tudo que é belo, que é bom, que é puro nós temos pelo sertão, não é? Principalmente a passarada cantando, não é? É. Justamente.27. Feitosa também faz a seguinte constatação sobre a obra de Patativa: “do processo de escolha e de exclusão de que é constituída a memória coletiva e individual, Patativa escolheu a matriz paterna. Pai e avô sob um pano de fundo não menos ‘masculino’ ou paternal: Deus”.28 Para Feitosa, existe uma matriz a partir da qual Patativa elabora toda a sua obra poética. Pode-se falar de um princípio norteador: A matriz bíblica de nossa “caminhada” para a redenção está presente em várias passagens da obra patativana. Patativa entende que é a Natureza que nos oferece os caminhos e que eles foram previamente ditados por Deus, não obstante Ele tenha nos dado o “livre arbítrio” para fazer dessa caminhada o que quisermos [...] nossa arrancada para a vida parte guiada por uma promessa divina, na qual muitos percalços se nos apresentam como provação, os quais devemos enfrentar com fé e entusiasmo. Para a doutrina 24. FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras Editora, 2003. Idem., p. 13. 26 Idem., p. 169. 27 Idem., p. 174. 28 Idem, p. 105. 25.

(21) cristã, tentar trilhar esse caminho com fé e perseverança já é um bom sinal e, se sucumbirmos, teremos uma nova chance num plano superior.29. Todavia, além de observar essa “matriz bíblica” perpassando por muitos dos poemas patativanos, Feitosa defende a idéia de Patativa enquanto um mito, explicado desta forma pelo autor: O mito é definido pela função que cumpre nas sociedades humanas. Assindo sendo, o mito de que se fala aqui é a figura humana de Patativa, misto de herói e profeta, de oráculo e mediador, o que o aproxima ainda mais do universo mediador da mídia, que atualiza essas marcas míticas nos conteúdos de seus produtos midiáticos. Patativa se configura como mito porque busca seu caráter de permanência no imaginário das pessoas.30. Muito além de uma figura mitológica, Feitosa também percebe na vida e nos discursos de Patativa a personificação de mídia: Por outro lado, Patativa do Assaré é mídia porque é também a soma dos produtos poéticos que criou, estando essas marcas significativas de sua vida pontuadas nas narrativas que fazem sua poética. (...) Ele é mídia porque está atento às coisas do mundo, porque se coloca como tradutor e mediador desse mesmo mundo e porque se expõe, fazendo publicidade de si, de sua obra e de sua “missão” como poeta.31. Outra pesquisa acadêmica voltada para o estudo da poética de Patativa do Assaré é a dissertação de mestrado em literatura brasileira desenvolvida por Cláudio Andrade32 e defendida na Universidade de São Paulo. Nesta dissertação encontramos informações importantes, porque nos permitem ampliar nosso conhecimento sobre o poeta Patativa de forma muito mais especifica. No referido trabalho de Andrade, há também a preocupação em situar o poeta Patativa e seu mundo, para daí se passar para a influência e o alcance da poesia patativana. Assim, a primeira observação se deve ao fato de Patativa desenvolver e aprimorar sua habilidade poética a partir do contato com os chamados cantadores e seus desafios: Trata-se de uma disputa poética entre dois repentistas onde cada um procura superar o outro, ora pela criação de um verso mais inspirado, fecundo e contundente [...] ora por atirar ao adversário perguntas difíceis, enigmáticas, quase como adivinhas, a que o outro deve responder convincentemente ou dar-se por derrotado.33 29. FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto, p. 234. Idem., p. 249. 31 Idem., p. 250. 32 ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção... 33 Idem., pp. 47-48. 30.

(22) É importante situar o poeta neste contexto, dada à importância do papel que os cantadores desempenham, pois eles “fazem as vezes de cronistas do cotidiano, comentadores da política local e nacional, perpetuadores da tradição oral”34, características estas que, em maior ou menor escala, podem ser percebidas ao longo da poética de Patativa. Uma constatação importante elaborada por Cláudio Andrade se refere à identificação de Patativa com seu mundo sertanejo, tornando-se uma espécie de porta-voz do homem do campo. Esta função permite ao poeta perceber as desigualdades marcantes na vida sertaneja, mas também o leva para a elaboração de uma poética marcada por questões de caráter social:. O poeta ao representar o modo de vida e a visão de mundo do homem do campo, em particular do sertanejo nordestino, é levado a criar uma obra em que as questões sociais com suas implicações políticas acabam ganhando relevância particularmente intensa.35. A poesia de Patativa torna-se um meio, um veículo através do qual o poeta cearense fez ecoar durante décadas a dura realidade de um povo quase sempre esquecido, mas sempre lembrado por Patativa e sua poesia. Assim: O poeta e a poesia, cada um a seu modo colocam-se ao lado e a serviço da luta do oprimido. O poeta oferecendo a sua solidariedade “Se escuto o teu pranto...”. E a poesia realizando o milagre de com imagens, ritmo e sonoridade, se fazendo canto que move e comove, resgatar do plano subalterno da opressão e elevar um patamar de dignidade e altivez a situação do oprimido. A poesia se torna arma de luta e instrumento de elevação.36. Segundo Andrade, a poética de Patativa retrata a vida de um povo vivendo em um ambiente de opressão, onde muitas vezes só se escuta o pranto dos marginalizados. Neste ambiente surge uma poesia na qual são retratados homens e mulheres que, por se sentirem abandonados, recorrem “ora a um código político, ora a um código religioso para a formulação da denúncia de uma injustiça social, seguida do anseio de sua reparação”.37 Tal anseio de reparação, como bem frisa Andrade, dá-se também no campo religioso, mas mesmo no campo religioso o autor faz questão de ressaltar o significado desta atitude, que não representa alienação ou conformismo. Pelo contrário: 34. ANDRADE, Cláudio Henrique Sales, op.cit., p. 53. Idem., p. 121. 36 Idem., p.143. 37 Idem., p.178. 35.

(23) Não pode ser imputada a esta esperança no sobrenatural o ônus de engendrar conformismo ou desviar o agente de uma ação mais efetiva ou mesmo de paralisar a sua reação. Esta foi tentada dentro do possível e levando em consideração os recursos disponíveis. (...) Só depois de fracassarem as suas atitudes reativas é que aflora no personagem esse anseio por uma reparação numa outra vida.38. Da realidade descrita decorre a observação de Andrade: “Deus e natureza aparecem então como forças aliadas na luta pela libertação, inspirando o direito ao restabelecimento de uma situação de equilíbrio original que foi socialmente rompido”.39 O equilíbrio é rompido porque a natureza criada por Deus, logo universalizada a todos, passa a ser propriedade de poucos e gananciosos donos de terras. Esta visão norteadora está presente em muitas das poesias elaboradas pelo poeta Patativa. Outra obra sobre a poética de Patativa é a dissertação de mestrado de Cristiane Cobra40. Nesta obra a autora alicerça sua pesquisa da seguinte forma: “A interpretação analítica dos poemas tem como referência a teoria literária de Alfredo Bosi, a idéia de metamorfose identitária desenvolvida por Ciampa, bem como as análises da Cultura desenvolvidas por Renato Ortiz e Clifford Geertz”.41 Cristiane Cobra apresenta um panorama da literatura popular no Brasil, no qual a autora dá ênfase à oralidade poética, abordando desde a origem da literatura popular até sua chegada e consolidação no Brasil, sobretudo no nordeste. Neste sentido, procura apresentar Patativa dentro da chamada literatura de cordel. Todavia, o escritor Gilmar de Carvalho apresenta um ponto de vista diferente de Cobra, para ele, mesmo que Patativa seja alocado dentro da chamada literatura popular, pois “existe uma unanimidade em relação à sua importância para a chamada poesia popular”42, ainda assim o autor classifica Patativa como um dos representantes da literatura de cordel. Segundo Carvalho,. 38. ANDRADE, Cláudio Henrique Sales, op.cit., p. 177. Idem., p.177. 40 COBRA, Cristiane Moreira. Patativa do Assaré, uma hermenêutica criativa: reinvenção da religiosidade na nação semi-árida. São Paulo: Faculdade de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006 (Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião) 148p. 41 Idem., p. 8. 42 CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto, p. 5. Disponível em: http://www.overmundo.com.br. Acesso em 15 de março de 2007. 39. ,.

(24) A produção de Patativa para folhetos de cordel foi muito mais em decorrência de sua amizade com José Bernardo da Silva, a quem teria presenteado alguns originais. Ele faz a ressalva: Eu nunca me interessei porque cordel, aquilo ali é um comércio.43. A autora também nota a variedade de temas sobre os quais Patativa versejou, entre os quais se incluem o “cotidiano, sertão, política, progresso, humor, religiosidade, amor, cidadania, a própria poesia e a morte”.44 Outra questão importante no trabalho de Cristiane Cobra se refere ao conceito de divina providência defendido pela autora em diálogo com a poesia de Patativa. Este conceito, em sua compreensão, não é apenas ressignificado, mas assume uma nova dimensão em Patativa:. Apesar de sua base cristã católica e da enorme influência dos valores morais estabelecidos pela Instituição na obra do poeta, faz-se necessário ressaltar a originalidade de sua interpretação hermenêutica do conceito de providência, considerando ainda que a conceituação de um Deus pai, providente e totalmente responsável pelo destino da existência humana, não poderia coincidir com o discurso poético utópico e libertário como o de Patativa do Assaré.45. Para ela, a originalidade de Patativa sobre a idéia de providência divina repousa na seguinte habilidade: Reelabora e ressignifica, segundo elementos da cultura popular, a idéia de Providência vigente; a partir da percepção popular constitui uma concepção de Deus, como criador e pai amoroso, porém não responsável pelas condições injustas de nossa sociedade.46. Após tecer suas considerações sobre as várias questões mencionadas nesta pesquisa, a autora apresenta a principal conclusão a respeito da sua pesquisa sobre o poeta do Assaré: Patativa recorre ao imaginário religioso cristão católico como fonte de sentido e significado, revelando formas típicas à Cultura Popular de compreensão da religiosidade e da idéia de Divina Providência, não somente revela, mas recria, reelabora, reinventa e ressignifica essas maneiras populares de atribuir sentido e significado a realidade.47. 43. COBRA, Cristiane Moreira, op.cit., p. 18. Idem., p. 65. 45 Idem., p.134. 46 Idem., p. 139. 47 Idem., p. 8. 44.

(25) 1.3. A percepção do Canto de Patativa a partir da ponte do diálogo entre Teologia e Literatura: Aproximações e Possibilidades 1.3.1. Aproximações. Ao estudar a obra de Patativa do Assaré, nosso intuito é abordar um tema encontrado ao longo de todo o seu trabalho: aquele que diz respeito ao lado místico do poeta cearense, que evoca com bastante freqüência o Deus criador da natureza, sobre o qual se pode dizer também que é o inspirador, em grande, parte do trabalho desenvolvido por Patativa. Assim, encontramos em Patativa um poeta cuja criação literária é profundamente marcada pela constante menção ao Deus do cristianismo, sobretudo do Deus emoldurado a partir de uma percepção católica. Ao analisarmos os escritos de Patativa, inevitavelmente nos deparamos com os seguintes questionamentos: é possível encontrar nos seus escritos poéticos uma percepção teológica refletida ou não, uma compreensão sobre o papel exercido por Deus na vida do sertanejo marginalizado? Por que o poeta recorre reiteradas vezes a Deus diante dos problemas que surgem? Qual a razão da menção a Deus em tantas poesias? Ao refletir sobre tais perguntas, passamos a “desconfiar” de que uma “noção teológica” se faz presente nos textos produzidos por Patativa do Assaré, o que lhe permite colocar Deus como um dos alicerces de sua obra poética, posto que “a obra literária, pelo caráter plurissignificativo de sua referência metafórica, veicula temas teológicos”.48 Além disso, O texto escrito é o lugar, por excelência, onde as relações entre teologia e literatura se objetivam, onde seus textos se cruzam, num encontro que se traduz nos seguintes pontos: na temática, nos métodos de leitura e reescritura da linguagem.49. A construção da relação entre literatura e teologia nos escritos de Patativa do Assaré pode se concretizar devido ao fato de se tratar de um poeta que fala dos sofrimentos do povo, exatamente porque vive como o povo sofrido do nordeste e se encontra diante dos mesmos 48. COBRA, Cristiane Moreira, op.cit., p. 85. SILVA, Eli Brandão da. O nascimento de Jesus Severino no auto de natal pernambucano como revelação poético-teológica da esperança: hermenêutica transtexto-discursiva na ponte entre teologia e literatura. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001 (Tese de Doutorado em Ciências da Religião). 49.

(26) dilemas. Assim, não é descabido pensar e considerar seriamente uma leitura teológica da obra de Patativa, marcada por uma religiosidade vivenciada no cotidiano de um povo. Isto é possível graças a uma mentalidade religiosa presente em Patativa, uma vez que “a imagem que o menino tinha de Deus sempre obedeceu aos postulados católicos, herdados da família”.50 A obra patativana, quando vista no prisma do diálogo entre teologia e literatura, torna-se ainda mais clara quando levamos em consideração a afirmação de José Barcellos: A teologia não é apenas uma atividade crítica da fé em relação a seus próprios conteúdos e à sua linguagem, mas também pode ser uma reflexão sobre uma realidade humana qualquer a luz da fé. Nesse sentido, como a literatura é sempre o testemunho de uma realidade humana, pode se afirmar rigorosamente a possibilidade de uma leitura teológica de qualquer obra literária.51. Outro fator importante quando discutimos a relação entre teologia e literatura é que não devemos nos esquecer de que o próprio cristianismo é uma religião que, ao longo dos séculos, foi se construindo e se alicerçando também dentro de um contexto cultural, logo envolvido por uma realidade literária. Sendo literatura, o cristianismo não escapa a uma leitura que tenha em mente não somente os ditames dos interesses confessionais, mesmo reconhecendo sua importância, mas que se espraie também nos diversos âmbitos da cultura. Basta ver as diversas reinterpretações apresentadas pela história e pela arte e, especificamente, pela literatura, para perceber que a memória da salvação está escrita de diversas formas, com estilos variados, produzindo uma dinâmica significativa para sua existência e contundência nas culturas e nas Igrejas.52. Ainda é preciso lembrar que, nesta possibilidade de diálogo, ao longo do tempo a literatura construiu formas próprias, cuja recepção e representações de Deus têm sido mostradas de diferentes e ousadas maneiras. Não é exagero afirmar que assim como a filosofia e a teologia têm elaborado conceitos diferenciados sobre Deus, com a literatura também ocorre algo semelhante.. 50. FEITOSA, Luiz Tadeu, op.cit., p. 58. BARCELLOS, José Carlos. Literatura e teologia: aproximações. Disponível em: http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/liteologia.htm. Acesso em outubro 2005 . 52 MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000, p.21. 51.

(27) Além de tudo, é necessário levar em consideração que o fazer teológico não está resumido ao ambiente da academia e tampouco destinado somente aos religiosos “credenciados” a falar sobre Deus. Pelo contrário, “teologia, antes de ser da academia, pertence à vida, e esta se entrelaça na teia simbólica, formando as diversas relações que nos formam”.53 Portanto, as “relações que nos formam” influenciam nosso cotidiano, nossa vida, nossas expectativas, nossas emoções e, por que não dizer, nosso corpo. Daí a necessidade de atentarmos para o conceito tão apropriado de teologia elaborado por Rubem Alves:. Teologia é um jeito de falar sobre o corpo. O corpo dos sacrificados. São os corpos que pronunciam o nome sagrado: Deus... A teologia é um poema do corpo, o corpo orando, o corpo dizendo as suas esperanças, falando sobre o seu medo de morrer, sua ânsia de imortalidade, apontando para utopias, espadas transformadas em arados, lanças fundidas em podadeiras.54. Em Patativa encontramos um poeta que usou parte considerável de sua poética para, de forma criativa, fazer menção a Deus em diversos momentos e circunstâncias no que diz respeito à atuação divina não apenas na vida das pessoas, mas também em sua própria existência. Deste modo, segundo Alencar, “sua mentalidade mostra-se sadiamente cristã, enraizada na tradição religiosa da Bíblia que vê nos pobres e injustiçados, os prediletos de Deus, do Deus de Jesus Cristo Libertador”.55 A constatação feita por Alencar pode ser vista em muitos dos poemas patativanos, nos quais o poeta se apresenta como aquele que se preocupa com os desamparados, tal qual um profeta do Antigo Testamento sempre disposto a lembrar os direitos dos mais fracos. Na percepção de Patativa do Assaré, toda a natureza era obra de Deus, descrevendo-a da seguinte forma no poema A terra é nossa: Deus fez a grande natura / com tudo quanto ela tem, / Mas não passou escritura / Da terra para ninguém / Se a terra foi Deus quem fez / Se é obra da Criação / Deve cada camponês / Ter uma faixa de chão / Esta terra é desmedida / e com certeza é comum, / Precisa ser dividida / Um tanto pra cada um.56. 53. MAGALHÃES, Antonio Carlos de Melo. Deus no espelho das palavras, p. 145. ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-herético da teologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1985, p. 9. 55 ALENCAR, Francisco Salatiel de. In: Cante lá que eu canto cá: filosofia de trovador nordestino. Petrópolis: Vozes, 1978, p.22. 56 ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô, p. 116. 54.

(28) Quando analisamos alguns livros de Patativa do Assaré, percebemos sua nítida preocupação em transmitir ao seu povo a idéia de que as mazelas que sofrem não são frutos das ações de um Deus vingativo. É assim que podemos compreender a poesia Caboclo roceiro: Caboclo roceiro das plagas do norte / Que vives sem sorte, sem terras e sem lar / A tua desdita é tristonho canto / Se escuto o teu pranto, me ponho a chorar. / Ninguém te oferece um feliz lenitivo / És rude, cativo, não tens liberdade. / A roça é teu mundo e também tua escola / teu braço é a mola que move a cidade. / De noite tu vives na tua palhoça / De dia na roça, de enxada na mão, / Julgando que Deus é um pai vingativo / Não vês o motivo da tua opressão. / Tu pensas, amigo, que a vida que levas / De dores e trevas, debaixo da cruz / E as crises cortantes quais finas espadas / São penas mandadas por nosso Jesus. / Tu és, nesta vida, um fiel penitente, / Um pobre inocente do banco do réu. / Caboclo não guardes contigo esta crença / A tua sentença não parte do céu. / O Mestre Divino, que é Sábio Profundo, / Não fez neste mundo, teu fado infeliz. As tuas desgraças, com tuas desordens / Não nascem das ordens do Eterno Juiz.57. Patativa entende que as penúrias pelas quais passam os nordestinos não são resultado de um fatalismo religioso, através do qual Deus impõe castigo ao povo sofrido do nordeste. De certa maneira, é uma tentativa de “isentar” Deus face às aflições pelas quais o povo passa. Desta forma, procura informar a todos: Nunca diga nordestino / Que Deus lhe deu um destino / Causador do padecer, / Nunca diga que é o pecado / Que lhe deixa fracassado [...] Não é Deus que nos castiga,/ nem é a seca que obriga / Sofrermos dura sentença, / Não somos nordestinados, / Nós somos injustiçados / Tratados com indiferença [...] Mas não é o Pai celeste / Que faz sair do Nordeste / Legiões de retirantes, / Os grandes martírios seus / Não é permissão de Deus / É culpa dos governantes / Já sabemos muito bem / De onde nasce e de onde vem / A raiz do grande mal, / Vem da situação crítica / Desigualdade política / Econômica e social.58. É uma análise bem realista da situação social, política e econômica do nordeste. Em nenhum momento transparece na poesia de Patativa uma mentalidade religiosa eivada de idéias de se ver tanta injustiça econômica e social como sendo resultado da atuação e do castigo de um Deus cristão cruel, cujo prazer é encontrado no sofrimento de um povo que já fora submetido a tantas perdas e profundos infortúnios ao longo de sua história.. 57 58. ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô, pp. 99-100. Idem., p. 25..

(29) Tampouco se percebe o apego a uma religiosidade marcada pelo comodismo e alienação de quem não luta por seus direitos. Ao contrário, a menção ao Deus cristão percebido através do catolicismo, o pedido de socorro por ajuda divina, é feito a partir do momento em que já se esgotou todas as possibilidades para solucionar determinados problemas, bem como qualquer chama de esperança já se arrefeceu, uma vez que os personagens retratados por Patativa são indivíduos pobres, marginalizados, muitos desprovidos de uma educação mínima formal que lhes permita saber a dimensão de seus direitos. Dentro da dura realidade descrita por Patativa, a religião, a fé, a esperança, o apego a Deus não aparecem como fatores de alienação ou até mesmo de comodismo, mas sim como uma centelha de esperança de que se a vida neste mundo é marcada por profundas desigualdades, em uma outra dimensão, a sobrenatural, quem sabe a vida poderá ser menos sofrida e menos injusta.. 1.3.2. Possibilidades. Até o momento tentamos estabelecer as aproximações não apenas entre teologia e literatura, mas, sobretudo, ambicionamos ver tal aproximação a partir da obra de Patativa do Assaré enquanto trabalho literário, mas que também traz em seu cerne uma certa “noção teológica”. Todavia, além das possíveis aproximações nos perguntamos também: quais são de fato as possibilidades de que dispomos para empreender tal tarefa? Acreditamos ser mais fácil responder a esta pergunta se utilizarmos as contribuições de dois grandes críticos literários da atualidade. Um deles é Jack Miles, cuja célebre declaração diz que “a Bíblia é inquestionavelmente uma extraordinária obra de literatura, e o Senhor Deus um personagem dos mais extraordinários”.59 Para Miles, não apenas a Bíblia é vista como obra literária, mas também a religião é classificada nesta perspectiva, pois “a religião – a religião ocidental em particular – pode ser considerada como uma obra literária mais bem sucedida do que qualquer autor ousaria. 59. MILES, Jack. Deus – uma biografia. 3ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 27..

(30) sonhar”.60 Sendo a religião colocada neste prisma, seu personagem principal – Deus – certamente não ficará excluído da convivência, pelo menos no meio das famílias do ocidente, pois “no Ocidente, Deus é mais que um nome familiar; ele é, queira-se ou não, um membro virtual da família ocidental”.61 Com isso, vale afirmar que em um poeta como Patativa do Assaré, imerso em um ambiente no sertão cearense, marcado por uma forte influência do catolicismo romano, não é nenhum exagero perceber traços, noções ou conceitos religiosos perpassando sua obra. Equivale a afirmar que Deus, enquanto membro virtual da família ocidental, também tem a sua participação garantida na obra poética de Patativa do Assaré. O outro crítico literário a ser mencionado é Harold Bloom, segundo quem a literatura javista produzida é obra de uma mulher, que provavelmente teria vivido na aristocrática corte do rei Salomão, e cuja obra traz em si uma considerável mistura de sincretismo e ecletismo. Uma mulher inteligente e perspicaz, detentora de uma criatividade capaz de elaborar um personagem literário não-moldado ao culto israelita, portanto, um personagem não-maquiado e tampouco retrabalhado pela teologia judaica. Para Bloom, o Yahweh de J começa “como um fomentador de discórdias, um provedor de iniquidades, e se desenvolve como o líder intensamente nervoso de uma turba indisciplinada de errantes no deserto”.62 Na teoria defendida por Bloom percebemos a criação de Deus enquanto personagem literário oposto àquele apresentado na tradição judaico-cristã. O Yahweh de J é profundamente contraditório, um personagem muito mais próximo da realidade, das mazelas e, por que não afirmar, das paixões e contradições humanas. Para Bloom: O Javé de J é humano – humano demais: come e bebe, muitas vezes perde a paciência, delicia-se com suas travessuras, é ciumento e vingativo, proclama sua imparcialidade enquanto joga constantemente com favoritos, e desenvolve um considerável caso de ansiedade neurótica quando se permite transferir sua bênção de uma elite para toda a hoste israelita. Quando conduz essa malta enlouquecida e sofredora pelo deserto do Sinai, já se tornou tão insano e perigoso, para si mesmo e para os outros, que a escritora de J merece ser chamada de a mais blasfema de todos os autores que já existiram.63. MILES, Jack. Deus – uma biografia., p. 15. Idem., p. 15. 62 BLOOM, Harold. O livro de J. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 299. 63 BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995, p. 15. 60 61.

(31) E é neste aspecto do Deus e da Bíblia vistos numa perspectiva literária que se pode ver a poesia de Patativa do Assaré. Pois da mesma forma como “o judaísmo e o cristianismo transmitiram seu conhecimento de Deus de diversas maneiras”64, podemos afirmar que Patativa do Assaré também o faz em relação ao Deus do catolicismo que ele conhece, porque mesmo conhecendo um Deus “institucionalizado” dentro da estrutura do catolicismo, o poeta cearense habilmente consegue elaborar conceitos sobre Ele de acordo com sua percepção e visão de mundo, colocando-o como um Deus próximo dos menos favorecidos e dos excluídos. Dessa visão decorre a seguinte afirmação do poeta: “Deus é grande e tem bondade / Ele é o nosso Pai Celeste / Que defende a humanidade / De fome, de guerra e peste”.65 Para Bloom, a Bíblia, o livro por excelência do cristianismo, pode ser vista como o “DNA literário” de um povo. Já para Miles, a Bíblia é o livro que melhor retrata a história do personagem Deus. Esta perspectiva é interessante quando se leva em consideração a significativa influência da Bíblia sobre a própria cultura do ocidente. A constatação sobre o peso de tal influência é feita por Northrop Frye: “a literatura ocidental tem sido mais influenciada pela Bíblia do que por qualquer outro livro”.66 Nesta mesma linha de reflexão Frye defende a legítimidade de um olhar literário sobre a Bíblia, porque “a abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário não é de per si ilegítimo: nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir ele próprio, característica de obra literária”.67 Ao estudar literatura, e sobretudo ao nos voltarmos para a Bíblia enquanto obra literária, pode-se afirmar que o “DNA cultural” do ocidente tem sido plasmado pelo cristianismo, imprimindo, assim, uma visão de mundo profunda na história ocidental. Talvez desta razão também derive a afirmação de Jostein Gaarder: “o cristianismo é o pré-requisito para compreender a sociedade e a cultura em que vivemos”.68 De certa forma, com Gaarder concorda também o grande romancista português José Saramago ao declarar: “não sou crente,. 64. 65 66. MILES, Jack. Deus – uma biografia, p. 14. ASSARÉ, Patativa. Cante lá que eu canto cá, p. 30.. FRYE, Northrop. O código dos códigos: a Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 21. Idem., p. 14. 68 GAARDER, Jostein. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 23. 67.

Referências

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