• Nenhum resultado encontrado

Os Estados Unidos em 26 de janeiro de 1996 solicitaram consulta à União Europeia alegando que as medidas que proíbem a utilização na pecuária de certas substâncias de ação hormonal para crescimento e que restringem ou proíbem a importação de carnes e produtos derivados de carne de animais tratados com essas substâncias (seis substâncias específicas foram listadas, como a testosterona, estradiol 17-B e a progesterona e suas versões sintéticas) eram aparentemente incompatíveis com os artigos III e XI do GATT, com os artigos 2º, 3º e 5º do SPS, com o artigo 2 do TBT e com o artigo 4 do Acordo sobre a Agricultura.

Em 25 de abril de 1996 os Estados Unidos solicitaram a criação de um Painel, o que foi adiado pela reunião do OSC em 8 de maio de 1996. Na sequência os Estados Unidos apresentaram um segundo pedido para o estabelecimento de um Painel, o que aconteceu na reunião do OSC em 20 de Maio de 1996 (OMC, DS 26). O Canadá também reclamou das medidas, o que levou a adoção de um Painel único para solucionar ambas as reclamações (OMC, WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R).

O relatório do Painel foi distribuído em 18 de agosto de 1997 considerando que o embargo europeu às importações de carne e produtos à base de carne bovina tratados com qualquer dos seis hormônios utilizados para estimular o crescimento era incompatível com os artigos 3.1, 5.1 e 5.5 do Acordo SPS (OMC, WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R).

A União Europeia recorreu, e o Órgão de Apelação confirmou a apreciação do Painel de que a proibição de importação era incompatível com os artigos 3.3 e 5.1 do Acordo SPS, mas reverteu a conclusão do Painel de que a proibição de importação era incompatível com os artigos 3.1 e 5.5 do Acordo SPS. Para o OAp as medidas europeias afetavam o comércio internacional porque resultaram no banimento do comércio das carnes e derivados afetados e não se baseavam em padrões internacionais. Existiam padrões internacionais em relação a cinco dos seis hormônios abrangidos pela restrição, sem limite de resíduos para os naturais e com níveis de resíduos para dois dos artificiais. Portanto deve haver uma situação objetiva persistente e visível entre a medida sanitária e fitossanitária e a análise do risco. Se a análise

de risco der um suporte científico razoável à medida adotada, não haverá violação do Acordo SPS. No entanto no caso enfrentado, os estudos invocados pela União Europeia, qualificados como análise de risco, não teriam sido suficientes para demonstrar a necessidade da proibição estabelecida (OMC, WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R).

A decisão do OAp foi aprovada em 13 de fevereiro de 1998. A União Europeia, porém, em 8 de abril de 1998, solicitou que o período de tempo razoável para a implementação das recomendações e decisões do OSC fosse determinado por arbitragem obrigatória, nos termos do artigo 21.3 (c) do ESC. O prazo de execução foi fixado pelo árbitro que definiu como tempo razoável para a revisão das medidas, de forma a adequá-las à decisão do OSC, o período de 15 meses a contar da data de aprovação da decisão do OAp (13 de fevereiro de 1998), findando em 13 de maio de 1999.

A União Europeia comprometeu-se a cumprir as recomendações do OSC dentro do prazo de execução fixado. Todavia na reunião do OSC de 28 de abril de 1999 informou que consideraria oferecer uma compensação, pois talvez não fosse capaz de cumprir as recomendações no prazo fixado.

Em 3 de junho de 1999 os Estados Unidos e o Canadá, nos termos do artigo 22.2 do ESC, solicitaram autorização ao OSC para a suspensão de concessões para a União Europeia no valor de 202 milhões dólares para os Estados Unidos e de 75 milhões de dólares para o Canadá. A União Europeia, nos termos do artigo 22.6 do ESC, solicitou novamente a arbitragem para quantificação do nível de suspensão de concessões pedidas pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Os árbitros determinaram o nível de anulação sofrido pelos Estados Unidos em 116,8 milhões dólares e o do Canadá em 11,3 milhões de dólares, tendo o OSC em sua reunião de 26 de julho de 1999 autorizado a suspensão de concessões para a União Europeia (OMC, DS 26).

Na reunião do OSC em 7 de novembro de 2003 a União Europeia declarou que após a entrada em vigor de sua nova diretiva (2003/74/CE) sobre proibição do uso na pecuária de certos hormônios, não havia mais base jurídica para a manutenção das medidas de retaliação pelo Canadá e pelos Estados Unidos. Segundo a União Europeia, um dos motivos citados pelo Órgão de Apelação em sua decisão para condenar a medida adotada foi a insuficiência dos estudos utilizados para fundamentá-la, como exigem os arts. 5.1 e 5.2 do SPS. Para tanto, uma nova avaliação foi encomendada pela União Europeia a uma comissão científica independente, cujos resultados indicaram que os hormônios em questão representariam sim um risco para os consumidores. Desta forma, como a União Europeia tinha cumprido suas obrigações na OMC e encomendando a uma comissão científica a análise de risco exigida

pelo OAp, teria o direito, portanto, de exigir a eliminação imediata das sanções impostas pelo Canadá e os Estados Unidos em conformidade com as disposições do artigo 22.8 do ESC (OMC, DS 26).

Os Estados Unidos alegaram que não estavam em condições de aderir ao pedido da União Europeia, porque a nova diretiva ainda carecia de qualquer fundamento científico, já que uma série de estudos teria concluído não haver um aumento de risco para a saúde a partir do consumo de carne de animais tratados com hormônios promotores de crescimento e, como tal, não poderia ser justificada nos termos do Acordo SPS. O Canadá da mesma forma afirmou que não estava em condições de aderir ao pedido e que nas discussões com a União Europeia quanto à nova diretiva, teria discordado da avaliação de risco apresentada, pois não teria nenhuma base científica.

A União Europeia, em face do desacordo entre as Partes, solicitou que a questão fosse remetida para a negociação multilateral, a fim de determinar se a nova diretiva estava em conformidade com as decisões da OSC, como já havia ocorrido em casos semelhantes no passado, recorrendo ao art. 21.5 do ESC, e que estava pronta para iniciar os procedimentos multilaterais com os Estados Unidos e o Canadá. O Canadá declarou que, embora tenha apresentado uma sugestão para discussões bilaterais, a União Europeia não tinha respondido a sua sugestão, continuando aberto para discussões, mas que não haveria base para remoção de suas medidas de retaliação. Os Estados Unidos declararam que não havia uma forma de adequar a diretiva europeia às recomendações do OSC e, no que se refere à negociação multilateral, que estariam prontos para enfrentar a questão conjuntamente com outras questões pendentes relacionadas ao embargo à carne americana (OMC, DS 26).

Em 22 de dezembro de 2008, a União Europeia solicitou consultas ao abrigo do artigo 21.5 do ESC com os Estados Unidos e o Canadá; em 16 de janeiro de 2009, os Estados Unidos pediram para participar das consultas solicitadas pelo Canadá; e em 19 de janeiro de 2009 o Canadá pediu para participar das consultas solicitadas pelos Estados Unidos, não existindo ainda uma solução final para o litígio.

De qualquer forma, mesmo com a decisão do OSC contrária às medidas de proteção à saúde adotadas pela União Europeia, ficou claro que as mesmas seriam válidas, se estivessem fundamentadas em relatórios de risco e em padrões internacionais.

Este caso é emblemático porque foi o primeiro caso em que o princípio da precaução foi enfrentado pelo OSC e, ainda que a medida europeia tenha sido considerada carente de fundamentação científica, foi aceito como argumento do Membro em controvérsia. Conforme ressalva CRETELLA NETO (2003, p. 237-238), será preciso um número maior de

controvérsias submetidas ao OSC para que se possa estabelecer uma conclusão definitiva quanto ao acolhimento ou não do princípio da precaução pelo OSC. O que ocorreu no caso foi a condenação da União Europeia pela proibição à importação de carne bovina proveniente de plantel tratado com hormônios pelo fato de não ter sido capaz de produzir prova científica irrefutável dos danos causados pelos resíduos a seres humanos que a consumissem. Caso um único órgão científico de reputação internacional tivesse validado os argumentos da União Europeia, com grande probabilidade o resultado da controvérsia seria diferente, e o princípio da precaução poderia ser considerado como aceito pelo OSC.

Para NEUMAYER (2004, p. 6), a incorporação do princípio da precaução pelas regras da OMC é fundamentalmente insatisfatória, principalmente porque o princípio da precaução somente é encontrado em um acordo do ordenamento da OMC que é o acordo SPS, dificultando seriamente a atuação dos Membros quando as medidas restritivas ao comércio para a proteção do meio ambiente e da saúde humana precisam ser justificadas fora dos limites deste acordo. A consequência deste insatisfatório tratamento da incerteza científica perante os acordos da OMC é que sua jurisprudência tornou-se contaminada por decisões que parecem insensíveis ao meio ambiente e à saúde humana, tal como ocorreu neste caso julgado pelo Órgão de Apelação, ao decidir que a proibição à importação de carne tratada com hormônios incorreu em violação às regras da OMC, mesmo tendo a proibição sido estendida de maneira equânime aos produtores nacionais.