• Nenhum resultado encontrado

2.1. Racismo estrutural:

No capítulo anterior, pudemos entender o contexto pelo qual surge a intenção de fazer esse trabalho. Comecei falando sobre o processo de criação das cotas para negros e indígenas do INCTI, do Encontro de Saberes em âmbito nacional e na UFF e, por fim, vimos como fui me envolvendo e percebendo este envolvimento nos dois últimos anos. Creio que pude criar um campo de percepção ao leitor que ficará mais acessível quando falarmos, neste capítulo, da noção de racismo estrutural (ALMEIDA, 2016), da produção do medo na sociedade e na academia e de como os sujeitos são embrutecidos12 pela estrutura e, claro, pelas pessoas que fazem parte dela.

Para compreender aquilo que vamos desenvolver mais a frente, percebo ser importante falar das noções de raça e racialização para, depois, entender como o racismo se apresenta enquanto estrutura e estruturante nas relações cotidianas13. Parece haver um consenso entre antropólogos e geneticistas “de que, do ponto de vista biológico, raças humanas não existem’’ (SANTOS, PALOMARES, NORMANDO e QUINTÃO, 2010, p. 121). Não existem por conta da necessidade do ser se apresentar geneticamente homogêneo, o que é impossível entre os humanos, onde ‘’as diferenças entre um negro africano e um nórdico compreendem apenas 0,005% do genoma humano’’ (idem). Desse modo, a cor da pele não define, a priori, a ancestralidade do indivíduo, ela é apenas a manifestação fenotípica do conjunto de heranças genéticas. O termo racialização, por sua vez, indica uma relação com os ‘’construtos sociais, formas de identidade baseadas numa ideia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios’’ (GUIMARÃES apud SCHUCMAN, 2014). Assim, a racialização ou raça social se define mais pelos lugares de poder ocupados pelos indivíduos, do que pelo aspecto genético. Schucman, ao estudar o racismo pela racialização do branco, a branquitude,

12 O conceito de embrutecimento, de Rancière (2015), ficará claro ao longo do texto.

13 Lembrando que ‘’raça’’ é um tema antigo nos estudos antropológicos e sobre o qual vários autores já se debruçaram, a partir de diferentes perspectivas e seguindo diversas linhas teóricas. Irei focalizar, porém, a abordagem de Schuman, Quijano, o filme de Dulce Queiróz e outras reflexões que se cruzam pelo caminho.

nos diz que, ‘’nesta definição, as categorias sociológicas de etnia, cor, cultura, raça se entrecruzam, colam e descolam uma das outras dependendo do país, região, história, interesses políticos e época investigados’’ (SHUCMAN, 2014, p. 84). Podemos dizer, então, que a racialização dos indivíduos e a prática racista é um movimento contextual. Ela se manifesta de diferentes maneiras dependendo da realidade histórica na relação entre os grupos sociais.

A ideia de raça, segundo Aníbal Quijano (2005), tem ‘’origem e caráter colonial’’ e, tal eixo ‘’provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido’’ (p. 227). Isso quer dizer que o contato com a América provocou não só uma nova legitimidade para a relação antiga de dominação estabelecida com outros povos, mas a auto nomeação identitária dos europeus enquanto brancos. Mesmo na colonização da África, essa ideia não era ainda presente: ela é fundada e se fundamenta no contato com os índios americanos, o que deixa claro que ‘’raça apareceu muito antes que cor na história da classificação social da população mundial’’ (2005, p. 229). O contexto do racismo na América é fruto desse mal encontro: A associação entre os ambos fenômenos, o etnocentrismo colonial e a classificação racial universal, ajuda a explicar porque europeus foram levados a sentir-se não só superiores a todos os demais povos do mundo, mas, além disso, naturalmente superiores. Essa instância histórica expressou-se numa operação mental de fundamental importância para todo o poder mundial [...]. (2005, p. 237)

Ao percebermos a estreita relação entre o racismo e a hierarquia social, fica mais fácil a compreensão daquilo que vamos chamar de racismo estrutural, pois pensar o racismo enquanto estrutura, é pensar em uma configuração colonial estável na legitimação de uma ‘’racionalidade específica, o eurocentrismo’’ (2005, p. 227).

Opto, nesse momento, por retomar aquilo que o professor de Pensamento Negro na UNB, Sales Augusto, nos diz no filme ‘’Raça Humana’’ (2009), comentado no primeiro capítulo: ‘’Se essa sociedade é racista, em todas as esferas, esse racismo vai aparecer’’14. É nesse sentido que quero pensar o racismo estrutural: se ele é presente na

sociedade, será também presente na universidade, pois, mesmo que a branquitude acadêmica tente criar uma bolha em sua volta, ela é parte integrante daquilo que foi

14 Aqui podemos também dialogar com a noção de poder simbólico de Bourdieu (2014): ‘’esse poder que se exerce de maneira tão invisível que até nos esquecemos de sua existência e que aqueles que o sofrem são os primeiros a ignorar sua existência já que ele só se exerce por se ignorar sua existência’’ (p. 303)

construído fora dela15 – afinal, a produção científica é uma arma de produção de verdade e legitimação de certos conhecimentos que circulam na sociedade. Ainda é possível ser pensado, a partir dessa frase do professor, que, no Brasil, o racismo não pode aparecer. Ele é escondido por trás da tão declarada ‘’democracia racial’’, o que já era de se ‘’esperar num país marcado pelo ideário do modernismo político onde se trata igualmente seres desiguais’’ (TABORDA, 2009).

Fanon define ‘’povo colonizado’’ como ‘’todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural’’ (2008, p.34). Essa definição é ampla justamente para dar conta das diversas experiências e estratégias que o colonizador, em diferentes contextos, utilizou e utiliza para incutir a ideia de inferioridade no colonizado. Falar de racismo, segundo Silvio Almeida16, ‘’não é algo anormal, é algo normal. Não no sentido de que a gente deva aceitar. Mas é que o racismo constitui as relações no seu padrão de normalidade’’. Essa ideia não só desmistifica uma suposta ‘’democracia racial’’ brasileira, mas também propõe uma ‘’forma de racionalidade’’ impregnada nas ações conscientes e inconscientes no indivíduo e na sociedade. Em suma, ele é estrutural por operar na compreensão de mundo, nas relações consigo e na relação com o outro. Para o filósofo, o racismo enquanto estrutura não pode ser visto como uma patologia, pois, nessa concepção, se perde o sentido rotineiro, frequente e operador de relações que ele supõe.

Taborda, ao discutir ‘’O Mito da Democracia Racial’’, traz o discurso do ‘’branqueamento’’, que foi imprescindível para sustentar essa teoria. Quanto mais branco, mais privilégios e possibilidades de ascensão tem o indivíduo. A ideia da miscigenação produz uma relação de escala evolutiva na relação de poder entre as pessoas e os lugares que devem ocupar na sociedade, ao mesmo tempo em que permite surgir discursos que ocultam o conflito racial e afirmam uma harmonia social.

No texto de Taborda, são apresentadas duas derivações do discurso de ‘’democracia racial’’ no contexto em que surgem: (1) no sentido igualitário e (2) no sentido hierárquico. Na década de 30, intelectuais começam a murmurar tal expressão que só iria virar consenso em 1950 e se fortaleceria na década de 60. O Movimento Negro aderiu o termo para reivindicar suas pautas, ou seja, aderiu o termo no primeiro sentido, não como fato, mas como busca, enxergando no horizonte uma possibilidade de

15 Vamos abordar melhor a questão mais à frente na linha de Pierre Bourdieu (1997). 16 Vídeo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU&t=268s

real democracia na relação inter-racial. Por mais que a autora chame atenção para o fato de não ter sido Gilberto Freyre quem anunciou pela primeira vez o termo, e de inclusive ter sido contrário a ele, diz que o autor ‘’contribuiu muito para a legitimação científica da afirmação de que no Brasil não havia preconceitos e discriminações raciais’’ (TABORDA, 2009).

Em 1964, com o golpe militar, o termo é adotado no sentido hierárquico e vira consenso no mundo acadêmico e na sociedade como um todo. Daí para frente, o Brasil começa a vender uma ideia construída pelas elites brancas de que o racismo tinha sido superado; tinha deixado de ser uma questão. O fato de termos mais de 70% da população negra vivendo abaixo da linha da pobreza17; o fato de populações indígenas estarem sistematicamente perdendo suas terras para empresários e latifundiários em cima do discurso de ‘’não produzirem’’18; o fato de termos a força policial que mais

matam corpos negros do mundo19; o fato de 97% dos professores universitários no país serem brancos20; entre outros dados, deixou de ser uma questão racial. Nada disso foi, por muito tempo, discutido. Tudo se passava como se vivêssemos em paz, em um grande paraíso miscigenado.

Foi só a partir da década de 80, principalmente em 1988, com a constituição brasileira, que o país deu vários passos à frente com aquela que ficou conhecida como uma das constituições mais avançadas do mundo. Foi aí que se reconheceu, oficialmente, o racismo, ao declará-lo um crime inafiançável. Se não fosse o gigante abismo entre a teoria e a prática das leis pró grupos minoritários, nós poderíamos ter avançado enormemente na superação de problemas sociais, raciais e políticos. Nessa importante data, depois de um período sangrento e repressivo do período militar e de uma consequente redemocratização, o país se comprometia, não apenas na palavra, mas no papel, no acordo mais alto das leis, que assumiria uma postura afirmativa na solução de antigos problemas. Isso aconteceu devido a intensa e árdua luta de movimentos minoritários.

17 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da-populacao-do-

pais-mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm

18 Relacionei o discurso já antigo da ‘’não produção’’ presente em Pierre Clastres (2012) com os recentes

(que são também antigos) ataques às terras indígenas:

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/13/opinion/1428933225_013931.html 19https://www.geledes.org.br/policial-brasileira-e-a-que-mais-mata-no-mundo/ 20 Para saber mais, ver Carvalho (2005-2006)

Almeida nos traz três dimensões fundamentais de atuação do racismo estrutural: na política, na economia e na subjetividade. De forma sucinta e voltada para entender um pouco do contexto de ação do racismo enquanto estrutura, desenvolverei um pouco sobre esses três aspectos, entendendo que não são separados entre si, mas sim que se atravessam o tempo todo.

2.1.2. Racismo – política:

Bourdieu se pergunta: ‘’como é possível que os dominados obedeçam?’’ (2014, p. 303). Se quem ocupa os cargos de poder são bem menos numerosos que os que se submetem à ordem, como isso é possível? Para o autor, não é proveitoso centrar a análise apenas na coerção direta sob a população, mas como o Estado, de diversas maneiras, produz e reproduz uma naturalização para legitimar seu poder e, assim a ordem se exerça de forma quase mágica. Para que isso aconteça, é preciso a construção e o aperfeiçoamento de estruturas cognitivas aos quais os dominados se submetem: ‘’o dominado conhece e reconhece: o ato de obediência supõe um ato de conhecimento, que é ao mesmo tempo um ato de reconhecimento’’. Logo, aquele que obedece ou mesmo aquele que ocupa um lugar de poder, não é simplesmente um alienado, mas um conhecedor dotado de uma estrutura cognitiva construída, produzida e reproduzida. Isso se diz importantíssimo no sentido que queremos pensar aqui, pois nos põe a problematizar o lugar de produção e reprodução de poder do Estado e, assim, a violência física e simbólica que gera, de maneira não naturalizada, mas como parte de uma estrutura cognitiva na construção de um modo de pensamento público. Essa ideia se expressa na reflexão de Almeida, citada anteriormente, de que o racismo opera em uma normalidade, e se fortalece quando Bourdieu afirma que: ‘’é preciso se interrogar sobre as estruturas cognitivas e sobre a contribuição do Estado para sua produção’’ (2014, p. 306).

Ailton Krenak, famoso líder e intelectual indígena, quando concede o célebre discurso no congresso nacional21 (1987), reclama justamente o desprezo e a violência histórica praticada por pessoas que ocuparam e ainda ocupam lugares de decisão. A sua performance de indignação e luto, ao pintar seu rosto de jenipapo, junto às suas fortes

palavras, é a argumentação de que, quando forem pensar os indígenas no território- nação, que os pensem levando em conta sua multiplicidade, suas diferenças. Na prática, os povos indígenas e a população negra sabem que isso nunca aconteceu por inteiro. Em um momento de redemocratização e questionamentos políticos, as minorias começam a ganhar uma escala de visibilidade nunca antes experimentada. Para entender melhor essa relação com o Estado, trago Kastrup e Passos (2013) que, ao pensarem uma pesquisa cartográfica, distinguem, na linha de François Julien, três conceitos: universal, homogêneo e o comum. Basicamente, eles são definidos assim:

 Universal: dentro de uma perspectiva lógica, racional e, consequentemente, ocidental, esse conceito é operado enquanto um ideal regulador, percebido enquanto totalidade. Sua materialização está sempre porvir, nunca realizado por completo. Consegue aliar práticas de inclusão, juntamente com a violência institucional. Pode ser uma noção chave para regimes autoritários e também pode suscitar a revolta do particular, do individual22

Homogêneo: respondendo aos interesses de produção e economia, ele tem uma função de uniformizar os modos de vida. É fundado na semelhança, na aparência e na série, sendo assim, capaz de produzir ditaduras silenciosas e eficazes. O homogêneo, se aliando a rotina, adormece a resistência, naturaliza violências e padroniza corpos23.

 Comum: esse conceito é um conceito político, enraizado na experiência. Não é dado, é processual, pensado enquanto partilha e pertencimento. É um conceito territorial, transversal e heterogêneo. Ele atua de forma corporeificada nos modos de fazer: é a processualidade do coletivo. É um lugar de ausência de propriedade, em uma relação de co-produção. O comum é traçar um plano de composição das diferenças, de ação de forças.

Podemos dizer que Krenak luta pela construção do comum e contra o homogêneo e o universal. É de terno, gravata e jenipapo que quer construir esse comum.

22 Como exemplo, podemos pensar a concepção de Homem no mundo ocidental no período iluminista: o homem universal. O indígena, nessa concepção, está incluído na concepção de Homem, porém, no lugar mais distante da escala evolutiva. O europeu está localizado no outro extremo: o homem civilizado e consequentemente mais próximo do Homem iluminista, o homem iluminado, racional e divinizado. Lugar, segundo essa teoria, onde todos os povos iriam um dia chegar. Ver autores evolucionistas: Morgan (1877) e Tylor (1871).

23 Para ver mais sobre homogeneidade e heterogeneidade na experiência histórica da América, ver Quijano (2005, p. 250-52).

É o Brasil assumindo sua matriz indígena e assumindo a violência sob essas populações que pode perceber a importância delas em espaços nacionais de poder, sem retirar delas sua experiência, sua heterogeneidade. É uma luta contra a violência do Estado, nos espaços do Estado abertos pelas populações violentadas. É uma luta pela legitimidade de sua diferença nos espaços tradicionalmente homogeneizadores. É uma luta pela real presença do múltiplo em espaços racionais de uma lógica universalista.

Para Ailton, ‘’é preciso mudar o tipo de representação política dos índios, deixar de passar pela FUNAI para ser direta’’ (2015, p. 226). É nesse sentido que cogita a possibilidade da existência de um Estado plurinacional, o que faria com que o país aceitasse a diversidade de nações existentes no seu território. Ainda diz que a existência de um partido político ‘’iria obrigar a plasmar todos nós numa coisa única’’ (Idem). É essa a concepção de política que o Estado sempre aderiu: passar por cima (genocídio) daqueles que não condizem com o projeto de progresso da nação ou incluir (etnocídio) enquanto cidadãos aqueles que foram sujeitados ao mesmo.

Sem perder de vista as concepções de Kastrup e Passos, nem tão pouco as reflexões de Ailton, sugiro nesse momento o texto ‘’Do Etnocídio’’ de Pierre Clastres. O autor trabalha mais com o conceito de etnia, do que de raça, no entanto, como veremos melhor mais a frente, esses conceitos se confundem, principalmente no caso brasileiro, onde temos 305 etnias indígenas24 e diversas heranças étnicas africanas. Logo, entender o primeiro é uma ponte para entender melhor o segundo. Creio, então, que abordar o texto de Clastres é oportuno para ligar os pontos da produção do racismo no âmbito político e abrir para discussões do racismo no âmbito econômico.

Em 1946, no processo de Nuremberg, pós-segunda guerra mundial, o mundo conheceu um conceito jurídico para designar o que tinha acontecido naquele momento: o genocídio. Diferente do caso mencionado, quando esse termo se relacionava com os povos indígenas da América ‘’nunca houve processos judiciais’’ (CLASTRES, 1974, p. 82). Os povos indígenas, desde 1492 foram sistematicamente exterminados de diversas maneiras e, até então, há uma quantidade enorme de discursos que insistentemente inferiorizaram essas populações. O genocídio se caracteriza, enfim, pela destruição física dos povos, uma ação sob seus corpos. O termo se remete à ideia de raça: ‘’o extermínio de uma minoria racial’’ (1974, p. 83).

24 ver site: http://www.brasil.gov.br/governo/2012/08/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-etnias-e-

O etnocídio opera de maneira diferente: é a morte cultural de um povo. O espírito, ou melhor, a sua expressão no mundo é assassinada. Está presente aí o discurso da salvação: sente-se pena de uma condição supostamente inferior para enaltecer a sua própria e, assim, criar discursos para lhe tirar da condição horrível a que julgam estar entregue. Enquanto o genocida arranja motivos para matar, o etnocida arranja motivos para salvar, melhorar o outro. É a ação do discurso do selvagem e do civilizado a qual a antropologia evolucionista do século XIX tanto se comprometeu a desenvolver:

Para o presente propósito, parece tanto possível quanto desejável eliminar considerações de variedades hereditárias, ou raças humanas, e tratar a humanidade como homogênea em natureza, embora situada em diferentes graus de civilização. (TYLOR, 1871, p. 76)

O discurso daqueles que são contrários às cotas chega a se aproximar quando afirmam a inexistência de raças humanas, mas sim de apenas uma raça. Veja, dizer que existe uma só raça aqui, é um exercício de homogeneizar o ser humano: a existência de uma única raça é também a existência de apenas um modo de humanidade. E esse homem verdadeiro é o homem europeu: ‘’o índio selvagem não é um ser humano’’ (CLASTRES, 1974, p. 83). Na linha da evolução, o indígena, um dia, chegará a ser o que somos. Não é do nada que surge ora o discurso de que estão atrapalhando o progresso dos homens civilizados e, assim, teriam que tirá-los do caminho, ora o discurso de que podem ser salvos (‘’negação positiva’’) (1974, p. 85) e, assim, torná-los aquilo que somos e construir ‘’juntos’’ o que chamam de nação. Repare que construir ‘’junto’’ é o mesmo que sujeitar o interesse do outro ao seu próprio interesse. É a ideia da desigualdade: a diferença dominada.

Como nos ensina Levy-Strauss (1952, p. 334), ‘’a humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, às vezes mesmo da aldeia’’, ou seja, é a ação da noção de etnocentrismo fazendo com que alguém olhe o diferente pela sua própria lente cultural. Isso é um processo natural, formal e milenar com os quais os povos sempre se relacionaram: entre guerras e alianças. A questão é: ‘’o que faz com que a civilização ocidental seja etnocida’’ (CLASTRES, 1974, p.86) e não apenas etnocêntrica, como os povos não-ocidentais?

Em um primeiro momento, Clastres sugere a ação evangelizadora dos missionários da igreja católica: substituir as crenças bárbaras pela religião do ocidente é uma missão de salvação de almas abandonadas à Natureza. O autor chega a enunciar essa forte expressão: ‘’a espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo’’ (1974, p.

84). A produção ideológica de bem-estar é arraigada na visão cristã de se conceber o mundo. A ética católica é a representação da perfeição, é ali que alguém se realiza enquanto ser humano:

Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou terceira categoria. Eles também devem ser inscritos no muro, distribuídos pelo branco. Devem ser cristianizados, isto é, rostificados. (DELEUZE e GUATARRI, 1996).

Mas até o momento não encaramos o funcionamento completo dessa máquina etnocida que é a sociedade ocidental. Clastres sugere a nós que encaremos a história para entender essa vocação para o assassinato cultural de outros povos. Um caminho é aberto: ‘’as sociedades primitivas podem ser etnocêntricas sem no entanto serem etnocidas, já que são precisamente sociedades sem Estado’’ (1974. P. 87). O funcionamento da máquina estatal ‘’procede por uniformização da relação que mantém com os indivíduos: o Estado conhece apenas cidadãos iguais perante a lei’’ (1974, p. 89). É nessa linha de pensamento que o autor afirma a semelhança da prática etnocida com a prática do Estado: ‘’funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos

Documentos relacionados