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Uma nova Universidade para um novo mundo: a expansão universitária brasileira e suas adaptações à realidade contemporânea

2. JORNADA SOCIAL E UNIVERSITÁRIA: UMA EXPLORAÇÃO TEÓRICA 1 A socialização como elemento fundamental da jornada da vida social

2.3. Uma nova Universidade para um novo mundo: a expansão universitária brasileira e suas adaptações à realidade contemporânea

As instituições universitárias e o próprio conhecimento nos tempos atuais passam por modificações em sua natureza pelo impacto das transformações tecnológicas sobre o saber (LYOTARD, 1986) e também pelo impacto do contexto econômico, “O saber é e será produzido para ser vendido” (LYOTARD, 1986, p. 5).

Nessa dinâmica, a Universidade, instituição para qual o saber é objeto de ação primordial, põe-se num movimento flutuante entre o conservador e o vanguardista. Até mesmo a própria convivência entre estudantes mais experientes e os calouros contribua para a intensificação desse cenário dinâmico. E talvez todo esse contexto não salte aos olhos daqueles que vivem e fazem diariamente as

Às vezes é preciso se desacostumar um pouco com as práticas diárias e ter um olhar mais afastado para perceber o impacto dessas questões na vivência universitária.

Assim, trago o terceiro relato impressionista da minha experiência na UL - Nancy, que me fez notar, distante de minhas práticas diárias, o quanto a Universidade está posta para o mundo e como a expansão universitária brasileira diferencia-se da francesa e adapta-se à realidade contemporânea nacional.

Quando entrei a primeira vez para a observação de uma aula de graduação na UL, fiquei um pouco chocada com o ambiente. Era uma aula sobre educação especial e a turma era composta por pessoas de diversos cursos, distribuídas num auditório com mesas e cadeiras fixas no chão. Eram 324 cadeiras, quase 200 alunos presentes e um alto palco com um birô, cadeira e microfone para a professora. Ela, a adorável Anaelle, chegou, montou seu computador com o slide da aula, testou o microfone e começou a falar. A partir daquele instante, fiquei perplexa com o que veio a acontecer: o silêncio tomou conta da sala e como que uma onda do mar ou uma chuva repentina… a esmagadora maioria dos estudantes começou a digitar o que a professora estava falando. O ambiente sonoro daqueles teclados frenéticos foi, simplesmente, surpreendente! Bem como muitas outras histórias de situações, para mim, “bizarras” que acontecem na universidade francesa com o seu grande número de estudantes. Ouvi relatos de que os cursos de psicologia na UL, por exemplo, começavam com 1000 estudantes! As aulas eram dadas para os 500 primeiros alunos e depois repetidas para os 500 restantes. Vi aulas em que, basicamente, uma professora leu um artigo e os alunos ouviam e copiavam. Ouvi ainda que dentro desse sistema de se copiar, praticamente, tudo do que é dito na aula pelo professor, alguns alunos vendem uns aos outros cópias do que foi dito nas aulas, em caso de faltas. Alguns, diante do clima de competição, vendem até mesmo cópias com informações erradas para que o colega se prejudique, obtenha nota menor e seja uma concorrência a menos. Afinal, no curso de psicologia, por exemplo, apenas 25 vão alcançar o mestrado na UL, dos 1000 que entraram. E isso é porque o mestrado é, praticamente, uma formação “complementar obrigatória” para esses profissionais. Além disso, professores e estudantes me disseram que na área biomédica, nas turmas precedentes às de medicina, algumas aulas eram dadas nos anfiteatros, mas os alunos nem viam o professor, pois ele estava rodeado de luzes, microfones e câmeras, para que o que ele falasse pudesse ser transmitido, ao vivo para outros anfiteatros lotados, de estudantes completamente atentos. Nesses anfiteatros teriam inclusive seguranças que tirariam de sala os estudantes que resolvessem

incomodar os demais. Confesso que fiquei chocada com os relatos e com o que vi com meus próprios olhos. Uma forma totalmente diferente de vivenciar as aulas, mesmo nas áreas de humanas. Bom, isso foi o que precisava para entender o que o professor Saeed falou na nossa última orientação individual: “o Brasil não conheceu a expansão universitária como muitos outros países conheceram”. E sim… é verdade, para nós é imaginável uma situação dessas em cursos de humanas. Se já achamos um absurdo nas exatas… mas, enfim, diante de tudo isso, fiquei muito pensativa sobre o que é, afinal, a Universidade… instrumento para alimentar o mercado de trabalho? Entidade desconectada do mundo capitalista? Uma tentativa de equilíbrio? Uma tentativa de ser mais?... Não sei ao certo, eu só contemplei o belo som dos teclados todos juntos e pensei como existem muitos universos dentro da ideia geral de Universidade.

A formação de diplomados em massa, a espera de profissionais mais bem qualificados no mundo do trabalho, as tecnologias avançando abruptamente, o conhecimento sendo um “[...] um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder” (LYOTARD, 1986, p. 5), a Universidade na tentativa de se manter templo e propulsora de conhecimentos e o estudante, no meio disso tudo, tentando inserir-se nesse contexto, um pouco perdido diante de tantas variáveis e construindo, aos poucos, o seu próprio percurso, construindo um pouco o percurso do mundo, é um trecho das faces da realidade complexa da vida universitária.

Mesmo que tenha sido fundada no século XI, a Universidade e, mais especificamente, a noção de ensino superior vem ganhando uma importância ímpar não, simplesmente, na vida das pessoas que por ela passam, mas também na vida das sociedades contemporâneas.

O ensino superior, diante da atual dinâmica mundial de globalização e de organização dos países “desenvolvidos”, “em desenvolvimento” e “subdesenvolvidos”, ganha um papel fundamental na empreitada desenvolvimentista. A condição pós-moderna, a qual “Designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX” (LYOTARD, 1986, p. xv), “[...] vem mostrando que sem saber científico e técnico não se tem riqueza” (LYOTARD, 1986, p. xi).

Em Paris, em 1998, na Conferência Mundial de Ensino Superior, organizada pela UNESCO, o papel dessa instância educacional para o desenvolvimento dos países foi posto em evidência. Ao se pensar sobre a educação superior no século XXI, documentos da UNESCO deixaram bem claro que sem instituições de pesquisa e de ensino superior, as nações não conseguem, de fato, construir um desenvolvimento genuíno(BARBALHO; CASTRO, 2010).

Essas reflexões e orientações, que não eclodiram somente na década de 1990, revelaram o fenômeno global de uma nova onda social, com grandes consequências sobre a economia e a cultura dos países, ligada às mudanças educacionais advindas do crescimento demográfico da população estudantil nas instituições de ensino superior. Na França, por exemplo, em 1968 existiam 300 mil estudantes matriculados no ensino superior, no ano 2000 esse número já era de 1,5 milhão e em 2017, 2,6 milhões de matrículas (PAIVANDI, 2019).

Na realidade brasileira, esse maior crescimento vem mesmo no século XXI, afinal somente no fim do século XX que grande parte das crianças e jovens brasileiros puderam ter acesso à escolarização (FERREIRA, 2019). Portanto, a maior ampliação do acesso ao ensino superior no Brasil aconteceu nas duas últimas décadas.

Contudo, ainda será um grande desafio equiparar o Brasil com outros países cujas condições de educação superior são mais avançadas. Isso “[...] exigirá um enorme esforço governamental e, especialmente, dos trabalhadores da educação superior: professores, técnicos e gestores” (SAMPAIO; SANTOS, 2015, p. 204). Esses precisarão olhar para as instituições de ensino também com atenção aos aspectos pedagógicos, buscando compreender o perfil dos estudantes, acompanhando o seu percurso universitário e avaliando seus resultados (SAMPAIO; SANTOS, 2015) em amplos aspectos para que o crescimento nesse segmento da educação brasileira seja bastante significativo não apenas quantitativamente, mas também qualitativamente.

Não obstante, sem desconsiderar as necessidades e possibilidades do Brasil nesse âmbito, de uma forma geral, no nosso país, entre 1996 e 2017, o número de matrículas na educação superior saltou de 1,8 milhão para 8,3 milhões. Esse crescimento, por sua vez, esteve muito ligado às instituições privadas de educação

superior. Praticamente 90% dos estabelecimentos de educação superior no Brasil são particulares (CABRAL NETO; CASTRO, 2018) (FERREIRA, 2019).

Fazendo uma comparação, agora não de estudantes, mas de universidades e faculdades, entre 1996 e 2017, houve um crescimento de de 922 para 2448 instituições de ensino superior. Dentre essas, as instituições particulares eram 711 em 1996 e passaram a ser 2152 em 2017; já as instituições públicas eram 211 em 2009 e 296 em 2017 (CABRAL NETO; CASTRO, 2018) (FERREIRA, 2019).

Ainda nesse contexto, é importante ressaltar o papel eminente da educação à distância (EaD), especialmente, nas instituições privadas, as quais também detém a grande maioria das matrículas nessa modalidade (FERREIRA, 2019). Sobre esse contexto, Ferreira (2019) ainda aponta que o crescimento da EaD na iniciativa privada corrobora para expansão de uma maneira neoliberal de lidar com a educação superior.

Assim, o hibridismo entre o público e o privado, vai se concretizando através de uma noção explícita que o Estado assume, de que não é capaz de arcar sozinho com essa tarefa de democratizar o acesso ao ensino superior. Assim, aqui no Brasil, criaram-se meios de financiamento através de programas de bolsas, bônus e vantagens subsidiadas pelo governo (SANTOS; CABRAL NETO, 2010). Com isso, constrói-se, segundo Santos e Cabral Neto (2010), uma lógica, sustentada nasbases do neoliberalismo, de uma cidadania vinculada essencialmente aoconsumo.

Dessa forma, há um “[...] crescente processo de mercadorização do ensino superior, na medida em que ele tende a ser considerado como um serviço ao qual se tem acesso pelas relações de mercado” (SANTOS; CABRAL NETO, 2010, p. 32). Dentro dessa compreensão, os autores Santos e Cabral Neto (2010) ainda acrescentam que ter acesso a esse bem, é pertencer, de alguma forma, a um modelo-padrão de consumo e valores, de poder, status e necessidade social- científica; o qual vai criando um ideário democrático da sociedade do consumo através do acesso ao ensino superior.

E nesse contexto, muitos dos estudantes que vieram na onda da expansão de matrículas, foram os primeiros da família a chegarem no ensino superior. Todavia, essa democratização de acesso é também segregada, uma vez que “[...] a escolha

da área de estudos é largamente influenciada pela origem social e escolar dos estudantes” (PAIVANDI, 2019, p. 7).

Sendo assim, a chamada democratização do ensino superior brasileiro também teve de lidar com a condução dos “[...] estudantes das famílias de baixa renda [...] para os diplomas de menor valor escolar e retorno econômico” (FERREIRA, 2016, p. 163), como as licenciaturas, por exemplo. Nesse caso, essa é uma realidade que está presente no grupo com o qual desenvolvemos nossa pesquisa, os estudantes da licenciatura plena em Pedagogia. Pois esses estudantes, na UFRN, segundo pesquisa de Ferreira (2016), em número significativo, têm suas origens em famílias cuja renda atinge até, no máximo, 3 salários mínimos.

Diante do exposto, os estudos dos autores aqui apresentados conduzem à compreensão de que a construção contemporânea do meio universitário, composto de ensino, pesquisa e extensão, acabou, de alguma forma, inserida no contexto global neoliberal e de suas demandas e possibilidades.

O que há, portanto, no contexto universitário, é uma pressão por resultados, a qual simboliza uma passagem de um modelo crítico, reflexivo e em função da ciência de Universidade, para um modelo mais utilitário, focado na sociedade do consumo e suas necessidades dessa mesma instituição universitária (PAIVANDI, 2015).

Não obstante,

[...] não é porque o ensino superior é uma mercadoria aos olhos do capitalismo e de seus agentes, que de imediato ele passe a ser desenvolvido cada vez mais sob o signo do consumo individual, portanto, privado. Ao contrário, o ensino superior também pode ser visto como um bem social, público, coletivo (SANTOS; CABRAL NETO, 2010, p. 36).

O sentido etimológico, especialmente, da palavra Universidade, que vem da noção de universal, de junção do todo, não se esvai. A globalização apresenta desafios e também possibilidades para o “universo” do mundo superior. A internacionalização, por exemplo, a qual implica um diálogo entre diferentes culturas, intensifica-se cada vez mais nas discussões sobre esse “novo” ensino superior que se almeja e também se constrói (BARBALHO; CASTRO, 2010).

A heterogeneidade e pluralidade dos elementos também baseia a nova sociedade, os discursos filosóficos atemporais e universalizantes dão espaço aos “determinismos” mais localizados (LYOTARD, 1986) e isso, por sua vez, abre possibilidade para uma maior quantidade de localidades, maior quantidade de elementos e pontos de referência na elaboração de saberes.