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CAPÍTULO 2 AGRICULTURA EM PÃO DE AÇÚCAR: trajetórias

2.2. Universo de estudo: Pão e Açúcar e a questão regional

Neste tópico será apresentado o universo de estudo, destacando-se aspectos ambientais, sociais e econômicos de Pão de Açúcar, assim como sua posição e importância no processo histórico de ocupação do Sertão Alagoano, condicionantes indispensáveis para entender o quadro atual de desigualdade social e as estratégias desenvolvidas pelos agricultores familiares para continuar produzindo e se reproduzindo em um contexto de dominação política e econômica da elite agrária.

Núbia Dias dos Santos (2012) em sua tese de doutorado intitulada Pelo espaço do Homem camponês: estratégias de reprodução social no sertão dos estados de Alagoas e Sergipe discute com muita propriedade a relação entre o lugar, espaço de viver e trabalhar, o espaço da sociabilidade, das relações econômicas, o espaço natural suas formações e

características e as inter-relações entre estes diferentes espaços compondo o espaço do homem resultado de suas estratégias de reprodução social, expressão de seu modo de vida.

Para a autora, as estratégias de reprodução social do camponês dependerão e estão interconectadas com as especificidades do próprio sujeito que se entrelaça com as características socioeconômicas relacionadas ao processo de formação territorial do Brasil, do Nordeste e do Sertão. Nessa perspectiva, a análise de dados socioeconômicos, associado à história territorial é um elemento indispensável para a interpretação das estratégias de reprodução do camponês (SANTOS, 2012). Sobre a identidade sertaneja a autora assevera:

O significado do ser sertão e sertanejo no seio da realidade nordestina e brasileira inscreve-se na identidade do jeito com o seu lugar, como expressão de uma espacialidade. Expressão também de um modo e vida e da produção material e imaterial de uma cultura marcada pelos desafios do cotidiano, estes transitam na convivência histórica em um ambiente político, ideológico e econômico, distinto e relacional (SANTOS, 2012, p. 81).

Partindo desse pressuposto, a análise das estratégias de reprodução do sujeito social em estudo fundamenta-se em sua identidade histórica pautada no lugar, no território enquanto sertanejo, enquanto agricultor familiar camponês, pescador artesanal e agricultor agroecológico a partir de seu engajamento na associação APAOrgânico que lhe confere o novo atributo.

A associação fica localizada na região centro-oeste do Estado de Alagoas, no município de Pão de Açúcar25, que tem como limites os municípios de São José da Tapera e Monteirópolis ao norte, Palestina e Belo Monte a leste, Piranhas a oeste e o rio São Francisco/SE ao sul (CPRM, 2005). O município pertence à mesorregião do Sertão Alagoano, e à microrregião de Santana do Ipanema. Ocupa uma área territorial de 682,99km², sua população total é de 23.811 habitantes sendo 10.769 habitantes (45,23%) da população urbana e 13.042 habitantes (54,77%) da população rural (Censo Demográfico 2010, IBGE).

A formação do povoado que deu origem ao município de Pão de Açúcar se deu no início do século XVII, por volta de 1611. No início do processo de colonização, consta que a poderosa Casa da Torre (Bahia), da família Dias d‟Ávila, era proprietária de parte do território atual do município de Pão de Açúcar. No entanto, não assinaram sua posse, sendo então as terras doadas por D. João IV aos índios Urumaris que as perderam em disputa com os índios Chocos. Em 1660, as terras onde hoje se ergue o município de Pão de Açúcar foram passadas, por Carta de Sesmaria, para domínio do português Lourenço José de Brito Correia com a

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A sede do município tem uma altitude aproximada de 19 metros e dista 239 km da capital Maceió. A vegetação é basicamente composta por Caatinga Hiperxerófila com trechos de Floresta Caducifólia. O clima é do tipo Tropical Semiárido com precipitação média anual de 431,8mm, (CPRM, 2005) concentrada nos meses de abril a agosto, com período de seca que pode chegar de 6 a 8 meses. Município eminentemente rural, tendo dentre suas principais atividades econômicas o comércio, serviços, agropecuária e atividades de extrativismo vegetal com destaque para a produção de carvão e lenha com espécies da Caatinga ocasionando a degradação ambiental.

finalidade de explorar a pecuária e o comércio de Pau Brasil. A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, publicada pelo IBGE em 1959, destaca que a pecuária bovina de Pão de Açúcar era na época a mais numerosa de todo o Médio Sertão alagoano, ressaltando o então distrito, hoje município de Jacaré dos Homens, como uma região de destaque em todo o Nordeste pelo desenvolvimento na exploração do gado leiteiro com indústrias de laticínio praticada em grande escala (IBGE, 1959). Atualmente a região constituída pelos municípios de Pão de Açúcar, Santana do Ipanema, São José da Tapera e Dois Riachos configura a Bacia Leiteira do estado de Alagoas.

Esse processo de ocupação do interior, do sertão nordestino, através da pecuária extensiva em latifúndios ocorre, segundo Manuel Correia de Andrade (2011), pela necessidade de produção de animais para tração e carne para abastecer a atividade canavieira e o consumo nas cidades. Neste contexto, a pequena propriedade se origina a partir da produção realizada pelo vaqueiro responsável pelos currais que arrendava pequenos “sítios” para produção de alimentos para subsistência. A agricultura passou a ser desenvolvida em pequenas áreas de brejos, em locais úmidos e leitos do rio São Francisco e seus afluentes, nas vazantes dos rios, nas “praias” e “ilhas” ou na própria Caatinga, no período de inverno, com lavouras de ciclo vegetativo curto como feijão, fava, milho, algodão e às vezes com melancia e melão (p.191). Cabe destacar que, após o represamento do Rio São Francisco com as sucessivas hidrelétricas – Xingó, foi a última represa a ser construída e foi finalizada em 1994 -, a agricultura de vazante deixou de existir. O que resultou no fim do cultivo tradicional de arroz em Pão de Açúcar, realizado nas lagoas formadas ao longo do rio, fato que impactou negativamente a renda e a segurança alimentar dos camponeses ribeirinhos.

Em 1936, cria-se o Polígono da Seca, uma demarcação político-econômica no interior do Nordeste brasileiro. Essa região, passou a ser definida como a região semiárida, com “condições geoambientais considerada desfavorável à própria presença humana e sua fixação” (SANTOS, 2012, p. 81) sendo utilizada como justificativa para a desigualdade social. Nesse sentido, “o contexto socioambiental é sublinhado para dirimir a questão estrutural inerente ao processo histórico” de ocupação e formação social brasileira (Op. Cit., p. 82). De fato a estiagem interfere na vida do homem sertanejo, na economia da região, gerando instabilidade aos camponeses pobres que em muitos casos precisam migrar. No entanto, de acordo com Santos (2012, p.84), “o contexto climático está, por sua vez, associado a questões de foro político as quais dificultam a vida da população sertaneja em condições e qualidade de vida mais digna”

Durante as décadas de 1950 a 1990 do século XX, inúmeros projetos foram conduzidos pelo Estado brasileiro pautados pela lógica técnico-economicista voltada para a produção irrigada para exportação. Esses projetos privilegiaram os grandes proprietários que, além de possuírem o domínio da terra, passaram a dominar o acesso à água acentuando a desigualdade social e ampliando a degradação ambiental na região (CARVALHO, 2009). A esse respeito, Luzineide Dourado Carvalho (2009) conclui que a elite política, econômica e ideológica se aproveita das dificuldades enfrentadas pelos camponeses para instituir a “indústria da seca”. A manutenção da seca passa a ser então uma estratégia de dominação e reprodução do capital pela elite.

Segundo o economista Cícero Péricles de Carvalho (2012), a estrutura fundiária de Alagoas continua extremamente concentrada em pleno século XXI constituindo uma das marcas mais fortes do atraso do setor rural de Alagoas. No Sertão, se caracteriza pela presença do latifúndio, de uma elite pecuarista detentora do poder econômico e político e de um contingente de produtores minifundiários. Os dados do Censo agropecuários de 2006 revelam que a maioria dos estabelecimentos agrícolas de Pão de Açúcar são de agricultura familiar (93,38%), com uma área média de 13,9 ha em contraponto à agricultura não-familiar, que tem um tamanho médio de 168,75ha (IBGE, 2006).

Tabela 2- Distribuição da estrutura fundiária do município de Pão de Açúcar por classe de área. Grupos de área total (ha) Número (Unidades) Total de estabelecimentos (acumulado) % de estabeleci mentos % de estabelecimentos (acumulado) Área (ha) % de área < de 1. 245 245 16,39 16,39 151 0,41 Produtor sem área 155 400 10,37 26,76 0 0,00 1 a 10 519 919 34,71 61,47 2.044 5,66 10 a 100 506 1.425 33,85 95,32 14.524 40,23 100 a 200 42 1.467 2,81 98,13 5.942 16,46 200 a 1000 27 1.494 1,80 99,93 11.639 32,24 > de 1000 1 1.495 0,07 100 1.799 5,00 TOTAL 1.495 16,39 36.099 100,00

Fonte: tabela do autor com base nos dados do IBGE (Censo Agropecuário 2006).

De acordo com a Tabela 2, o município de Pão de Açúcar possui 1.425 estabelecimentos agropecuários de até 100 ha, estes representam 95,32% do total de estabelecimentos agropecuários e ocupam 46,30% da área total. Por outro lado, as 70 maiores propriedades, com áreas maiores que 100 ha, representam 4,68% dos estabelecimentos agrícolas e ocupam 53,70% da área (IBGE, 2006). Ao analisarmos o número de estabelecimentos agropecuários com menos de 10 ha, 61,47% do total, verificamos uma área

média de 2,38 ha cada, o que evidencia uma grande parcela dos agricultores de Pão de Açúcar vivendo e trabalhando em áreas de minifúndios.

Essas pequenas áreas são consideradas impróprias para a realização da reprodução social dos pequenos produtores unicamente através do trabalho na terra26 quando considerado o aspecto geracional e da preservação ambiental, sendo necessário complementar a renda com outras atividades assim como buscar diferenciais produtivos para viabilizar a reprodução familiar plena. Esses dados corroboram com a interpretação de uma estrutura fundiária em Pão de Açúcar extremamente concentrada.

Santos (2012) destaca a correlação entre a estrutura fundiária, pobreza e indigência. Para a autora, a estrutura agrária concentrada se constitui em uma desigualdade estruturante, combinada com a cumulação de renda e de poder que por sua vez determina a intensidade da pobreza e da indigência.

De acordo como Atlas do Desenvolvimento Humano do Brasil de 201327, elaborado pelo Programa Nacional das Nações Unidas (PNUD), Pão de Açúcar está situado na faixa de Desenvolvimento Humano Baixo (IDH entre 0,5 e 0,599) ocupando a 4.309ª posição, em 2010, em relação aos 5.565 municípios do Brasil. Segundo o Atlas, Alagoas é o estado com o menor IDH da região nordeste e ocupa o último posto do ranking nacional. A renda per capita média de Pão de Açúcar aumentou nas últimas duas décadas, resultando em diminuição da extrema pobreza28

, que passou de 43,92% em 1991 para 31,38% em 2010. Apesar das melhorias no índice de renda média com redução da extrema pobreza, o índice de Gini para a renda passou de 0,53 em 1991 para 0,57 em 2010, o que representa um aumento na desigualdade. Isso significa que a renda média e o poder econômico da população com maior poder aquisitivo ampliou ainda mais, o que implica dizer que os grandes proprietários estão cada vez mais ricos.

Os dados sobre uso da terra em Pão de Açúcar (Figura 2) revelam a importância do setor pecuário no município, que ocupa 38% da área com pastagem. A área é ainda maior considerando que os sistemas agroflorestais e as lavouras para forragem de corte são também utilizadas para pecuária. Sendo assim, a pecuária (pastagem natural e cultivada + sistemas agroflorestais + lavoura de forragem para corte) ocupa a expressiva área equivalente a 53% da

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Para o município de Pão de Açúcar, a o módulo fiscal é de 70ha e corresponde a unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada município de acordo com a Instrução Especial INCRA nº 20, de 1980 e corresponde ao mínimo para uma família se reproduzir considerando as condições, econômicas, sociais e ambientais do município. Disponível em: <http://incra.gov.br/institucionall/legislacao--/atos- internos/instrucoes>. Acesso em: 08 de jun. de 2014.

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área total, restando 16% para lavouras temporárias e permanentes e 30 % entre matas naturais e cultivadas e áreas inaproveitáveis para a agricultura.

Os dados de uso da terra cruzados com os dados de produção revelam que a matriz produtiva do município está ancorada na atividade pecuária29

, sendo a atividade agrícola pouco produtiva e de reduzida diversidade. Os animais são criados no interior da mata, se alimentando da vegetação nativa. Nos períodos de seca, a alimentação é complementada no cocho com palma forrageira e forragem armazenada em silos. A transformação das áreas naturais em pastagens e lavouras cultivadas, atrelado ao uso exploratório da caatinga com a extração de madeira e com a pecuária extensiva, tem resultado na degradação do ecossistema com o avanço de áreas degradadas (136 ha) e do fenômeno da desertificação, atualmente abrangendo uma área de 51 ha do município (Censo agropecuário, 2006).

Diante deste contexto socioeconômico e ambiental opressor, herança do processo de ocupação e uso das terras no Brasil, a partir da década de 1980/90 emerge o debate em direção a outras racionalidades de políticas e de intervenções no Semiárido através do “paradigma da Convivência” (CARVALHO, 2009). Organizado e mobilizado pelos movimentos social, articulados enquanto Fórum de organizações da sociedade civil Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), a convivência com o semiárido propõem uma nova relação entre a sociedade, a natureza e seu território pautados em sistemas de produção sustentáveis, onde se busca, através da formação de uma consciência coletiva, construir um

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Em termos numéricos, Pão de Açúcar, utiliza para criação de animais 2.043 ha de caatinga em sistemas agroflorestais e outros 9.273 ha de mata natural, incluindo as áreas de preservação permanente (Censo agropecuário 2006).

Figura 2: Gráfico com a distribuição do Uso da Terra do município de Pão de Açúcar.

equilíbrio ambiental e social, capaz de garantir melhores condições de vida para as populações (CARVALHO, 2009).

De acordo com a “Declaração do Semiárido” e a “Pauta para Discussão de Propostas de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido Brasileiro”, documentos que definem as linhas de ação da Convivência com o Semiárido, em síntese, a convivência com o semiárido necessita: “de uma reforma hídrica (democratização, geração de abastecimento, aproveitamento sustentável de todas as águas, redução de perdas e reuso da água); reforma agrária (demarcação, titulação e desintrusão das terras, especialmente territórios de comunidades tradicionais de fundo de pasto); além de propostas socioculturais que visem o fortalecimento e a manutenção de identidades culturais” (ASA, 2005, apud CARVALHO, 2009, p.88).

A perspectiva da convivência com o semiárido, nesse contexto de exclusão e hegemonia político-econômica, configura-se para o camponês e demais comunidades tradicionais como uma ferramenta de luta política, pois demarca claramente uma postura de classe que busca através do acesso aos recursos naturais como água e terra, garantir o espaço do trabalho, da família, das manifestações socioculturais e assim proporcionar a reprodução social. Ao incorporar os sistemas de produção de base ecológica, a perspectiva da convivência amplia as possibilidades de autonomia, de manutenção de modos de vida, indispensável para a reprodução social do camponês. No entanto, deve-se ter clareza de que isso deve ocorrer juntamente com uma reordenação agrária e de acesso à água, caso contrário a produção sustentável, contraditoriamente ao que se propõe, passa a ser mais uma forma de manutenção precária do sujeito camponês a serviço do sistema capitalista de produção.

Essa proposta tem tido o apoio do Estado brasileiro por meio de políticas públicas e programas específicos para a convivência com o semiárido e para a produção ecológica, os quais são articulados, fomentados e implementados por instituições locais, e nacionais. No município de Pão de Açúcar, a constituição da APAOrgânico surge neste contexto e busca de forma contraditória ampliar a autonomia dos agricultores familiares através da diversificação produtiva para a autossuficiência e para a comercialização, dispondo de tecnologias de base ecológica para uma produção sustentável em convivência com o semiárido, garantindo a reprodução social dos agricultores e, por outro lado, integrando-os ao sistema capitalista de produção como fornecedores de alimentos e como potenciais consumidores de créditos ampliando ainda mais o capital.

2.3. A Associação de Pequenos Produtores em Agroecologia do município