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Vícios da fundamentação e sua decorrente nulidade

2. A Estrutura Lógico-Sistemática da Fundamentação

2.6. Vícios da fundamentação e sua decorrente nulidade

De forma correlata aos itens antecedentes, descumpridos os requisitos substanciais da fundamentação, corolário lógico sua decorrente invalidade ou nulidade.

106 TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: Cedam, 1975, pp. 272 e 566. Apud.

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit., p. 181.

107 MACCORMICK, Neil. La congruenza nella giustificazione giuridica. In. Materiali per um corso di analisi della giurisprudenza. Bessone e Guastini (Orgs.). Padova: Cedam, 1994, p. 115. Apud. Antonio Magalhães Gomes Filho. Op. cit., p. 182.

A doutrina em geral aponta como vícios da fundamentação: a) a inexistência de motivação; b) a falta de completitude; c) a não dialeticidade; d) a ausência de correspondência com os dados insertos nos autos; e) a presença de contradição (interna e externa).

A inexistência de fundamentação constitui o mais sério e grave dos vícios, diante da total ausência do discurso justificativo judicial, revelando que não foram ponderados os elementos de fato e de direito inseridos nos autos.

Fundamentações permeadas de fórmulas genéricas e vagas, amoldadas a várias situações, podendo ser aplicadas em diversos provimentos judiciais, sem criteriosa análise do caso concreto, também se apresentam como viciosas, já que nessas hipóteses a motivação é apenas aparente, servindo para qualquer situação posta a julgamento.

Na hipótese dos provimentos cautelares em geral, sendo a prisão preventiva um deles, não raras são as motivações teratológicas, em que as razões são explicitadas de maneira falaciosa, geralmente com base nos próprios termos utilizadas pelo legislador, sendo apenas consignado o conteúdo de determinados artigos, sem nenhuma justificação racional. São inúmeras as decisões que, ao decretarem a prisão preventiva, são fundamentadas com fulcro exclusivamente na reprodução, total ou parcial, do artigo 312 do Código de Processo Penal.

A falta de completitude ou fundamentação incompleta se dá nos casos em que, muito embora exista motivação, a decisão judicial não se apresenta suficientemente justificada.

Desse modo, diante de tal situação, força convir não restar cumprida a exigência de integridade do discurso justificativo.

A fundamentação não dialética é aquela que deixa de levar em conta as informações e dados trazidos aos autos pelas partes.

A decisão judicial, com efeito, deve analisar todas as questões suscitadas pela defesa e pela acusação, não podendo o magistrado permanecer silente nesse aspecto, máxime porque seu discurso justificativo pauta-se nas provas e alegações das partes, que deverão ser valoradas e racionalmente justificadas.

A fundamentação deve ser dotada de correção. Em razão disso, não merece ser considerada a motivação que, pelo exame de seu texto, deixe de apresentar correspondência entre os elementos considerados base da decisão judicial e aqueles efetivamente constantes dos autos. Não se trata de apreciação judicial equivocada dos fatos, suportando reforma em grau de jurisdição superior. No caso, resta evidenciada dissonância entre o discurso justificativo e conjunto de dados probatórios.

O raciocínio decisório não deve se ater a dados inexistentes, incorretos ou ficticiamente formulados, mas considerar a realidade fática inserta nos autos, ou seja, o conteúdo do processo, obtido em instrução probatória, na fase cognitiva (reconstrução histórica dos fatos). Também é equivocado o julgamento realizado com base em provas vedadas ou proibidas pelo ordenamento jurídico. Se tais provas são inadmissíveis no processo, consectário lógico sua inadmissão no discurso judicial.

A fundamentação também pode encerrar contradição. A incoerência no discurso justificativo pode ocorrer no plano interno e externo.

A fundamentação conterá contradição interna quando houver incompatibilidade entre os diversos enunciados, proposições e asserções do discurso por não se mostrar racionalmente adequado, tornando a argumentação incoerente.

Antonio Magalhães Gomes Filho proclama que a contradição interna encerra vício gravíssimo, pois,

(...) além de revelar a falta de correção no desenvolvimento do raciocínio decisório, torna inviável o próprio controle deste, pois uma argumentação que contenha asserções inconciliáveis impede aos destinatários da motivação conhecer claramente a ratio decidendi, frustrando a sua função de garantia.108

Exemplo clássico de contradição interna na motivação se dá a partir da incompatibilidade existente entre o dispositivo da sentença e o teor da decisão, atingindo as conclusões nela alcançadas. No processo penal, v.g., pode ocorrer de o magistrado reconhecer a inexistência de um fato ou a atipicidade da conduta, absolvendo o réu por insuficiência de provas. Outra situação manifesta-se na contradição entre os diversos argumentos contidos no mesmo discurso justificativo,

vislumbrada na hipótese de o juiz, quando da aplicação da pena, afirmar ser o réu primário e de bons antecedentes, negando, contudo, direito ao recurso em liberdade, em razão da reincidência.

Simetricamente, a contradição externa diz respeito à incongruência normativa e à incongruência narrativa, ambas já analisadas, ao sinalizarmos que as conclusões atinentes às questões de direito e de fato seriam despidas de sentido.

2.6.1. Fundamentação implícita e fundamentação ad relationem

Delineadas tais considerações, incumbe mencionar a existência das fundamentações implícita e ad relationem, apontadas normalmente pela doutrina como técnicas de motivação, podendo ser vistas como artifícios, estratégias ou mesmo subterfúgios, em que o discurso justificado é minorado em detrimento de outros valores, como a economia processual e a celeridade na solução dos litígios.

Tais fundamentações não podem ser confundidas com estilo de linguagem ou técnica redacional. Não se trata de motivação concisa, sintética ou resumida, perfeitamente válida, desde que cumpridos os requisitos substanciais já mencionados. A hipótese vertente diz respeito à existência de uma lacuna no discurso judicial argumentativo, por atingir a própria motivação, ensejando comumente a invalidade da decisão, caso a omissão não puder ser integrada com base no próprio contexto justificativo.

A fundamentação implícita é aquela que apresenta lacunas, mas que podem ser superadas mediante a integração do que ficou expresso no discurso e o que não restou explicitado na justificação judicial, mediante análise de todo contexto decisório.

Para Antonio Magalhães Gomes Filho, há casos em que a motivação implícita pode ser validamente aceita no juízo penal, sem violar a garantia de fundamentação, como nos casos de

(...) sentenças objetiva ou subjetivamente complexas, em que a exigência de uniformidade de solução das questões relacionadas ao concurso de crimes ou de agentes não só autoriza, mas até recomenda que a justificação dada para a solução do ponto comum da decisão possa ser inferida logicamente; assim, v.g., apresentados

expressamente os motivos que levam ao reconhecimento do furto, é possível deduzir, sem nenhuma dificuldade, que esses mesmos motivos também foram os adotados para reconhecer um dos elementos do tipo de receptação.109

A nosso sentir, a motivação implícita deve ser vista com cautela.

Ora, se é crível que a fundamentação deve ser expressa, clara e objetiva, impondo-se o cumprimento, ademais, dos requisitos da integridade, dialeticidade, correção e racionalidade, temos que tais pressupostos dificilmente seriam vislumbrados, com a devida vênia, numa justificação (motivação) implícita.

Na fundamentação ad relationem, os espaços vazios do discurso justificativo são superados também pela integração, reportando-se expressamente à justificação contida em outra decisão.

Assim como a motivação implícita, entendemos que a motivação ad relationem não merece subsistir.

Se por um lado é possível às partes e aos órgãos de grau superior o conhecimento do texto justificativo referido pelo autor da decisão, o mesmo não acontece em relação à sociedade, impedindo a efetivação do controle externo sobre a atividade jurisdicional (controle social da racionalidade decisória).

Força convir que tal prática tem o condão de impossibilitar a realização da cognição judicial, de forma efetiva e adequada. Nesse sentido, pronuncia-se Antonio Magalhães Gomes Filho:

Ao adotar integralmente as razões apresentadas para justificar outra decisão, proferida em fase distinta do procedimento, e até mesmo por órgão diverso, com frequência o juiz acaba por omitir a inafastável valoração crítica sobre os argumentos a que adere ou, o que é mais grave, deixa de considerar elementos supervenientes que deveriam levar, senão a outra solução, pelo menos à indicação dos motivos pelos quais não devem alterar a conclusão antes adotada.110

Exemplo rotineiro na lide forense cinge-se à adoção das razões da decisão recorrida, quando do julgamento de um recurso, sem explicitar o porquê foram confirmadas, demonstrando que o órgão de segundo grau não apreciou efetiva e

109 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit., p. 198. 110 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit., p. 200.

devidamente o conteúdo da decisão impugnada, sem qualquer valoração crítica dos elementos probatórios constantes dos autos.

Outro exemplo comum, principalmente na seara penal, refere-se à exclusiva adoção, como razões de decidir, de pronunciamentos do órgão do Ministério Público. Tal prática, além de figurar como ilegítima, pois transfere o encargo de motivar a sujeito diverso, que não o juiz, apresenta-se como parcial, máxime porque, em última análise, as razões do convencimento serão dadas por uma das partes, sem considerar as alegações da outra.

As necessidades de economia processual e, principalmente, de uma prestação jurisdicional célere, não podem ser aceitas sem restrições, em detrimento da exigência constitucional da fundamentação.

Destarte, na hipótese da fundamentação conter vícios, imprescindível a declaração de sua nulidade, como determina o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988.

Trata-se de nulidade absoluta, diante da inobservância de uma garantia processual constitucional, sendo caso de o juiz ou tribunal pronunciá-la de ofício, independentemente de provocação da parte interessada.

No caso específico do direito processual penal, incumbe o estabelecimento de certas diferenças entre os sujeitos processuais, pois, enquanto para a acusação não há como ser reconhecida a nulidade de uma decisão não fundamentada, após a preclusão das vias normais de impugnação, para a defesa há possibilidade de a decisão ser declarada nula mesmo após o trânsito em julgado, por intermédio da revisão criminal e do habeas corpus, decorrência dos princípios do favor rei e do favor libertatis.

Força convir que, mesmo na hipótese de ser constatado um defeito na fundamentação que enseja a nulidade da decisão em favor da defesa, o juiz ou tribunal não devem necessariamente anulá-la, podendo decidir o mérito da demanda em benefício do réu, mediante reforma in mellius do provimento judicial.

A questão pode ser aclarada com um exemplo: se o tribunal, ao realizar o julgamento, verificar a existência de vícios na motivação da sentença, demonstrando a

prova constante dos autos que o caso requer absolvição do acusado, não deverá anular a decisão de primeiro grau, mas sim absolver incontinenti o réu.

No próximo capítulo, abordaremos a questão da prisão cautelar, analisando seus pressupostos e requisitos, seus princípios informadores, suas características, bem como as espécies de medidas cautelares privativas de liberdade.