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1 ONDE TUDO COMEÇA

3. PLURALIDADE LINGUISTICO-CULTURAL DO ITALIANO NOS CURRÍCULOS DOS CURSOS DE LICENCIATURA EM LÍNGUA ITALIANA

3.3 Italiano: da origem aos dias atuais

3.3.1 V ariedades do Italiano

Na Itália, a atual paisagem linguístico-cultural e as recíprocas conexões entre língua e ‘dialetos’ mudaram em relação ao passado, mas não por isso são mais simples, pois apesar do 1º artigo da lei de nº 482 de dezembro de 199953 afirmar que o italiano é a língua oficial da Itália, é um grave erro sustentar que todos os italianos falem somente o italiano. Marazzini (2004, p. 431) sintetiza essa realidade linguístico-cultural claramente: “o italiano não é falado de forma uniforme em todo o território nacional”.

Paralelamente à síntese de Marazzini, Berruto (2003) informa que o repertório linguístico-cultural do italiano, isto é, o conjunto de variedades de línguas à disposição dos ítalo-falantes, é composto, nesse espaço, por muitas variedades relevantes. Daí ser possível afirmarmos que não existe apenas um italiano, senão muitas variedades em constante mutação devido ao tempo, às situações, aos contextos sociais, e, principalmente ao espaço geográfico.

Por exemplo, o italiano falado em Milão não é o de Nápoles, da Sardenha, de Veneza, e, muitos menos, da Suíça. Segundo Lorenzetti (2002), esses falares são geralmente influenciados pelos “dialetos” locais. Mas quais são as variedades do italiano, língua nacional, e quais são os diversos “dialetos” que compõem o complexo mosaico linguístico da Itália contemporânea?

Na tentativa de responder, muitos estudiosos como Mioni (1985), Sabatini (1985) e Berruto (1987), apresentaram uma diversidade de modelos sobre o repertório linguístico dos italianos. Mioni (1985) apresenta um modelo que contempla sete variedades do italiano: standard formal, standard coloquial-formal, italiano regional, italiano popular regional e três para os dialetos da Itália54: dialeto formal, dialeto informal urbano e dialeto informal rural. Na década de 80, Sabatini (1985) propôs um modelo com seis variedades: duas “nacionais” – o italiano standard e o de uso médio – e quatro “regionais e locais” – o italiano regional culto, o regional popular, além de dialeto regional, provincial e local.

Berruto (2003, p.14-15), também singulariza diversas variedades, dentre elas: o italiano standard, neostandard, popular e regional. O italiano standard é considerado a língua “padrão”, que engloba um conjunto de regras, normas e preceitos impostos como “formas corretas” ou um modelo idealizado, sobretudo de tipo conservador (SOBRERO e MIGLIETTA, 2006).

53 Disponível em http://www.gfbv.it/3dossier/diritto/482-99commenti.html Acesso em: 04 de dezembro de 2016.

54 De acordo com Avolio (2011, apud FREIRE et al, 2015, p. 756).), os dialetos não deveriam ser considerados filhos do italiano, e sim seus irmãos. Dessa forma, seria impróprio falar de "dialetos italianos", mas, como sugere o autor, seria mais oportuno o conceito de "dialetos ítalo-românicos" ou "dialetos da Itália".

Recentemente, a variedade do italiano que vem suplantando o italiano padrão é o chamado neostandard (BERRUTO, 2003). Vale ressaltar, todavia, que não se trata de uma variedade compacta, unificada e usada em todo o país, embora as suas características sejam comuns em todo o território nacional. As palavras de Alberto Sobrero (1992) sintetizam o que é essa variedade de língua:

O neo-standard é difundido nas classes médio-altas e na população considerada mais culta. É mais usado na fala do que na escrita. O rótulo de novo-padrão se refere ao fato de que neste nível, hoje em plena evolução, encontramos um grande número de forma que, gradualmente, “sobressaem- se” em relação aos níveis abaixo do padrão (sub-standard): antes relegadas às formas “coloquiais” (ou como constava nos dicionários “triviais”) e que atualmente se difundem e são aceitas na língua nacional. A norma assim, alarga as suas próprias fronteiras (SOBRERO, 1992, p.5, tradução minha)55. A citação acima resume uma nova dinâmica linguística que vai ganhando forma à medida que é usada por seus falantes independentemente da língua oficial imposta. Rememoro, portanto, as palavras de Brandão (1991), quando observa que o falante tem o poder sobre a língua, pois é ele quem a utiliza e modifica.

Outra variedade no repertório linguístico e cultural dos italianos é o chamado italiano regional, nome atribuído à vasta “gama de fenômenos compreendidos entre o italiano da tradição literária e o dialeto” (BERRUTO, 1987, p.13-27). Segundo Berruto (1987), nessa variedade é perceptível a influência do código dialetal em todos os níveis da escrita e da fala. E como o próprio nome diz, é o italiano de cada região, pois em uma extensão territorial é impossível uma língua se manter rigorosamente a mesma, ainda que existam aqueles que insistam em pensar e sustentar teses contrárias. Santoro e Frangiotti (2013), sintetizam essas variedades regionais:

No caso específico do italiano, as variedades regionais são divididas em três grupos de variedades maiores: 1. O grupo setentrional, que é considerado por muitos o mais próximo do standard e que goza, portanto, de maior prestígio; 2. o grupo toscano, que é tido como variedade de prestígio somente em seu território de referência; 3. centro-meridional, que constitui o grupo dotado de menor prestígio, sendo com frequência objeto de preconceito linguístico (SANTORO e FRANGIOTTI, 2013, p. 229-230).

55 “Il neo-standard "è diffuso nelle classi medio-alte e nella parte più acculturata della popolazione, ed è realizzato nel parlato più che nello scritto. L'etichetta di neo-standard si riferisce al fatto che su questo livello, oggi in piena evoluzione, troviamo un gran numero di forme che via via "risalgono" dai livelli inferior (sub- standard): prima relegate nell'area delle forme "colloquiali" (o, come dicevano i vocabolari, "triviali"), ora si diffondono e sono accettate nella língua nazionale. Lo standard così, a sua volta estende i propri confini".

Existe ainda o italiano popular, denominação esta atribuída à língua das camadas sociais com baixo nível de escolarização. Esta variedade se apresenta como uma forma de língua “mal dominada” em relação ao italiano-padrão e com numerosos traços dialetais. Geralmente, trata-se de um italiano estigmatizado e percebido somente como algo “incorreto por ser a variedade falada pelas classes sociais economicamente menos favorecidas.

De acordo com Santoro e Frangiotti (2013), existem ainda outras variedades: o italiano denominado de culto, empregado por falantes de nível sociocultural médio-alto e alto, variedade muito próxima do italiano standard; o italiano dos jovens, que é a variedade usada por indivíduos de 13 a 21 anos, recheada de gírias e itens lexicais típicos dos dialetos da Itália; e, finalmente, as chamadas línguas especiais, empregadas em determinados setores, tais como a medicina, a arquitetura, a engenharia, a biologia, entre outros.

Como professora do idioma italiano há quase 12 anos, venho refletindo sobre a complexidade do tema e, devo confessar que me sinto preocupada quando um aluno diz desejar falar o “italiano perfeito”, sem saber que está desprestigiando, ainda que inconscientemente, os outros falares. Obviamente, isso acontece porque se desconhece o debate anteriormente exposto que, provavelmente, não costuma ser foco de discussões dentro da sala de aula e durante o processo de ensino/aprendizagem. Além disso, levou-se muito tempo para se reconhecer que as línguas são, na verdade, construídas de variedades linguísticas, e mais tempo ainda para considerá-las como partes indissociáveis da própria língua.

A verdade é que sempre que um aprendiz pergunta sobre a pronúncia de algumas palavras, inclusive, qual é a verdadeira pronúncia standard, o que para Berruto (1987) é um produto de treinamento, percebo o quanto esse hábito é resultado de uma tradição de ensino que apresenta a língua apenas como um conjunto de estruturas e conceitos. É uma formação que desconsidera os contextos, os falantes, os aprendizes, as suas respectivas culturas e todos os demais fatores sociais, históricos, culturais, políticas e ideológicas inerentes ao idioma estudado.

Para não fazer afirmações generalizadas ou generalizantes, recorro à minha pesquisa de mestrado que identificou as crenças de aprendizes de italiano sobre a LI e o seu aprendizado. Os dados analisados comprovaram que os sujeitos de pesquisa, alunos do italiano, estavam demasiadamente preocupados com a pronúncia, sem sequer terem uma noção, ainda que mínima, da situação real desse aspecto relativa à LI.

Quadro 3 – Crenças sobre a LI

Fonte: Landulfo (2012, p. 139).

Como foi possível verificar, a grande preocupação de Marcos Alexandre foi, de fato, a pronúncia. “O aluno afirma que, possivelmente, os falantes de italiano como língua materna56 não o entenderiam caso ele não tivesse uma boa pronúncia” (LANDULFO, 2012, p. 139). O que ele não sabia é que o falar italiano não é uniforme em todo território nacional e que é exatamente a pronúncia que evidencia as caraterísticas das variedades apresentadas anteriormente. Obviamente, com isso não pretendo desprestigiar os estudos fonéticos, que são importantes e, sem sombra de dúvida, devem ser abordados em uma sala de aula de línguas. Todavia, compreendo que o ensino de língua é, dentre outras questões, também um diálogo interdisciplinar com a sociolinguística, a pragmática e as políticas linguísticas, áreas que certamente fornecerão subsídios para que alunos e professores possam compreender a língua “como um objeto de ensino multidimensional e passível de variação” (SANTORO e FRANGIOTTI, 2013, p. 225).

Evidentemente que os professores de línguas não vão ministrar aulas sobre esses conteúdos. Todavia, estando conscientes de que essas áreas são relevantes para entenderem o objeto de seu trabalho, será mais fácil compreender que a língua é permeada por diferenças que não podem e não devem ser estigmatizadas e, muito menos, ignoradas. Essa perspectiva oferece a possibilidade de criar uma atmosfera de abertura para os alunos que estão aprendendo uma nova língua-cultura, sem traumas e sem a necessidade de copiar algo inexistente. Ora, “o falar perfeito” será muito maior quando tanto professores quanto alunos compreenderem que a língua, sendo um fenômeno dinâmico e essencialmente vivo, muda ao ritmo do grupo social que a usa.

Finalizo esta seção ressaltando a importância de estarmos conscientes de que o objeto de estudo – a língua – não é estanque e imune ao movimento sócio-histórico-cultural

56 A língua materna é compreendida pela maioria dos estudiosos como a primeira língua adquirida pelo indivíduo. Para compreender melhor este conceito, sugiro a leitura do texto da professora da UFRGS, Karen Pupp Spinassé: Os conceitos Língua Materna, Segunda Língua e Língua Estrangeira e os falantes de línguas alóctones minoritárias no Sul do Brasil.

de um povo. Por isso, agora tratarei do outro componente que completa o repertório linguístico-cultural do italiano: os dialetos da Itália, que, segundo Berruto (2003, p. 5), são considerados as primeiras línguas de muitos italianos.