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2. Revisão bibliográfica

2.7. Vacina anti-leishmaniose tegumentar americana

Os primeiros estudos de uma vacina anti-LTA, no Brasil, foram realizados no estado de São Paulo, por Salles Gomes (1939) ao inocular, por diferentes vias, promastigotas mortas de Leishmania em pacientes com LTA ativa. O autor observou regressão das lesões quando foi utilizada a via intravenosa. Os resultados levaram-no a especular que promastigotas mortas de Leishmania poderiam agir como uma vacina profilática efetiva contra as várias formas de LTA (Salles Gomes, 1939).

Em 1940, Pessoa & Pestana explorando as potencialidades da vacinação com extratos de promastigotas mortas de Leishmania conduziu ensaios clínicos numa amostra de 1.127 indivíduos, em seis áreas endêmicas para LTA no estado de São Paulo. A um grupo de 527 indivíduos foi administrado a vacina e a outro grupo, composto por 600 indivíduos acompanhados ao longo do tempo sem vacinação. Os autores observaram uma diferença significativa entre a incidência de infecção nos vacinados (3,2 %) e não vacinados (18,0 %), com poucos casos de lesões no primeiro grupo (Pessoa et al., 1940; Pessoa, 1941). Entretanto, estes estudos foram abandonados, provavelmente devido ao declínio da incidência da LTA em antigas áreas endêmicas (Marzochi et al., 1998).

Trinta anos depois, Mayrink e colaboradores, resgatando os ensaios de Salles Gomes e de Pessoa & Pestana, desenvolveram uma vacina anti-LTA, preparada com um pool de cinco cepas de Leishmania, isoladas em diferentes partes do Brasil. Os ensaios realizados na região de Caratinga (MG), em uma amostra de 674 vacinados e 974 placebos demonstraram uma taxa de 78,4 % de conversão do TM três meses após vacinação (Mayrink et al., 1979).

Em 1985, esta vacina pentavalente foi testada em Viana, no estado do Espirito Santo por Mayrink e cols., durante uma epidemia de LTA. Diferenças significativas foram observadas nos níveis de infecção entre os grupos de vacinados e não vacinados, com 87,6 % de conversão do TM após vacinação (Mayrink et al., 1985).

Antunes et al. (1986) com o objetivo de avaliar a capacidade profilática desta vacina pentavalente anti-LTA em área endêmica, realizaram um estudo em Manaus, com militares ativos do Exército Brasileiro em treinamento na floresta Amazônica. Os autores observaram taxa de conversão do TM entre os indivíduos vacinados de 70% e uma redução anual dos níveis de incidência da LTA de 67,3% em 1981 e 85,7% em 1983 entre o grupo vacinado quando comparado com o grupo placebo. O maior nível de incidência da LTA entre o grupo vacinado de 1981, segundo os autores se deve a imunossupressão causada pela imunização contra febre amarela pouco tempo antes da vacinação anti-LTA.

Nascimento et al. (1990) avaliando a indução de uma resposta imune por duas vacinas diferentes, denominadas Leishvacin 5 (composta por 5 cepas de Leishmania) e Leishvacin 6 (composta por seis cepas de Leishmania), observaram índices de estimulação de linfócitos significativamente superiores nos grupos vacinados quando comparados ao grupo placebo com uma correlação de 90% entre o índice de estimulação de linfócitos e o TM.

Diante da capacidade imunogênica da vacina pentavalente anti-LTA demonstrada nos estudos acima, Mendonça et al. (1995) realizaram um ensaio objetivando caracterizar a produção de linfocinas e o fenótipo das células envolvidas na resposta imune induzida por esta vacina, em 43 indivíduos saudáveis, sem qualquer evidência prévia de infecção por Leishmania. Eles observaram 74% de conversão do TM entre os vacinados e uma resposta imune mediada por células T com certo grau de espécie específicidade, uma vez que não houve aumento da resposta linfoproliferativa frente aos antígenos de L. chagasi. Além disso, uma produção de INF-γ e ausência de IL-4, indicando que a resposta induzida pela vacina é potencialmente benéfica, foram encontradas aliado a um aumento da proporção de células T CD8+ antígeno-específica, sugerindo que estas células e IFN-γ participam do processo de proteção contra leishmaniose induzido por esta vacina.

Apesar dos efeitos extraordinários obtidos com a vacina multicepas, únicos no mundo, algumas questões foram levantadas a respeito de sua composição e caracterização,

em duas reuniões realizadas em 1991. Estas foram patrocianadas pela Organização Pan- Americana de Saúde e a UNDP/World Bank/WHO “Special Programe for Research and Training in Tropical Diseases (TDR)”, com o titulo de “Consulta técnica sobre o desenvolvimento de uma vacina no Brasil” em Washington, EUA, e a segunda realizada em Belo Horizonte, Brasil, organizado pelo TDR/WHO, antiga BIOBRAS e UFMG. Uma das questões discutidas foi o fato de não haver evidência de necessidade de uma vacina multicepas, pois a proteção não é espécie específica. Além disso, havia dificuldades na produção da vacina em grande escala, frente às diferenças nas características de crescimento de cada cepa. Estas questões associadas à presença, na composição da vacina, de cepas taxonomicamente não bem definidas poderiam causar problemas na padronização para uso geral, diante da dificuldade de identificação de antígenos responsáveis pelo efeito protetor na vacina polivalente, o que indicou a necessidade de avaliação de uma vacina monocepa (Marzochi et al., 1998; Mayrink et al., 2002).

A fim de avaliar qual a melhor cepa constituinte da antiga vacina pentavalente anti- LTA, de acordo com os parâmetros imunológicos, foram preparados extratos antigênicos de cada uma destas cinco cepas e testados em camundongos C57BL/10. Uma resposta imune celular protetora a cada antígeno testado foi observada seis meses após a infecção desafio com L. (L.) amazonensis, indicando que cada cepa testada apresentava um potencial imunogênico semelhante à resposta imune induzida pela vacina polivalente. No entanto, a vacina monovalente produzida com a cepa PH8 de L. (L.) amazonensis (IFLA/BR/67/PH8), induzia melhores níveis de INF-γ detectados no sobrenadante de células esplênicas dos animais vacinados, sugerindo que esta deveria ser eleita para ensaios clínicos humanos (Mayrink et al., 2002). A vacina produzida com L. (V.) braziliensis apesar de induzir uma melhor resposta estimulativa foi preterida em função da suspeita de que as lesões mucocutâneas sejam causadas por estímulos de auto-agressão por antígenos desta espécie. Outro motivo da escolha de L. amazonensis foi sua caracterização e seu fácil crescimento em meio de cultura (Marzochi et al., 1998; Mayrink et al., 2002).

Um estudo de fase I, duplo cego, foi realizado por Marzochi et al. (1998), no Brasil, a fim de avaliar a presença de efeitos colaterais desta vacina anti-LTA monocepa aplicada em voluntários normais, num esquema de duas doses intramuscular (IM) de 1,5 mL desta vacina. Uma dor leve no local da aplicação foi observada, mas não se extendeu por mais de

24 horas, levando a conclusão de que esta vacina apresenta segurança para ser utilizada em populações humanas, aplicadas num esquema de duas doses IM de vacina não autoclavada na concentração de 1440 mg de nitrogênio por dose.

A imunogenicidade da vacina tem sido avaliada principalmente pela conversão do TM, da proliferação de CMSP e da produção de INF-γ e IL-12, uma vez que a resposta imune induzida pela vacina tem sido caracterizada como uma resposta mediada por células, protetora do tipo Th1, com aumento da produção de INF-γ e IL-12 e ausência do aumento da produção IL-4 por células mononucleares dos vacinados. Um predominante aumento na proporção de células T CD8+ também vem sendo observado entre os vacinados, bem como em indivíduos curados, sugerindo que estas células têm uma função protetora na LTA (De Luca et al., 1999; De Luca et al., 2001).

A utilização do TM como método de seleção de indivíduos aptos a receberem a vacina, bem como para a avaliação da imunogenicidade desta em ensaios vacinais é utilizada por vários autores (Mayrink et al., 1979, 1985, 1986; Antunes et al., 1986; Nascimento et al., 1990; Mendonça et al., 1995; Marzochi et al., 1998; De Luca et al., 1999), justificada pela correlação de 90% encontrada entre o TM positivo e índices de estimulação de linfócitos positivos (Nascimento et al., 1990). Por ser o TM um teste barato e aplicável em áreas endêmicas com facilidade e confiabilidade, este teste pode ser muito útil em ensaios vacinais.

A estabilidade e capacidade imunogênica das preparações da vacina monocepa anti- LTA foram avaliadas por De Luca et al. (1999) em um estudo onde eles observaram taxas de conversão do TM, 40 dias após vacinação, significativamente diferentes de 59% e 83% para a vacina autoclavada e não autoclavada, respectivamente. Esta vacina foi capaz de induzir uma resposta imune mediada por células T humanas contra Leishmania, uma maior resposta proliferativa de células mononucleares do sangue periférico (CMSP) e um aumento da produção de INF-γ e IL-2, com predominância do subsítio CD8+ entre o grupo dos vacinados, demonstrando-se imunogênica (De Luca et al., 1999). Porém, a vacina autoclavada não apresentou suas propriedades imunológicas e bioquímicas preservadas (De Luca et al., 1999).

Ensaio semelhante foi realizado por Mayrink et al. (1999) onde todos os voluntários receberam duas doses (360 µg de nitrogênio por dose) em um intervalo de 21 dias de

vacina monocepa anti-LTA nas seguintes preparações: autoclavada, não autoclavada, liofilizada, autoclavada estocada por 12 meses, não autoclavada estocada por 12 meses e liofilizada estocada por 12 meses, com taxas de conversão do TM de 89,3 %, 89,3 %, 92,0 %, 26,7 %, 93,3 % e 80,0 %, respectivamente. Apenas o grupo que recebeu a vacina autoclavada estocada por 12 meses apresentou menores taxas de conversão do TM e menor produção de INF-γ. Evidenciando que os processos de liofilização e autoclavação não prejudicavam a imunogenicidade de produtos recentes. Porém, após 12 meses preparações autoclavadas estocadas a 4ºC apresentaram significante diminuição da imunogenicidade, avaliada pela baixa conversão do TM e produção de INF-γ.

Ensaio mascarado controlado por placebo e randomizado, para a determinação da melhor concentração da vacina, foi realizado por De Luca et al. (2001). Voluntários foram divididos em grupos que receberam duas ou três doses de placebo ou 180, 360 ou 540 µg N por dose de vacina. O esquema de duas doses de 360µg N/dose foi preconizado para utilização em ensaios posteriores com esta vacina, pois foi capaz de induzir 100% de conversão do TM e produziu maiores níveis de INF-γ.

Em um ensaio clínico realizado por Vélez et al. (2000), na Colômbia, a imunogenicidade da vacina monocepa anti-LTA associada ao adjuvante BCG foi avaliada pela conversão do TM, 60 dias após o término da vacinação. Sendo observado uma taxa de 86,4% de conversão do TM, após vacinação, no grupo que recebeu apenas a vacina e 67,9 % para o grupo que recebeu a associação de vacina com BCG, quando comparado aos 25,0 % placebo e 81,3 % do placebo associado ao BCG. Os grupos que receberam apenas vacina e placebo foram reavalidos um ano após a vacinação e apresentaram uma taxa de conversão do TM de 90,0% e 5,0 %, respectivamente. Um alto índice de linfoproliferação também foi observado no grupo vacinado por até um ano após a vacinação, o mesmo não se observou no grupo placebo. Esta vacina foi segura por não apresentar efeitos colaterais graves. Aliado a imunogenicidade observada neste estudo de fase I/II, a vacina passou a ser sugerida para estudo de fase III com avaliação da sua eficácia.

Paralelamente ensaios de fase III foram realizados por Armijos et al. (2004), no Equador, e por Vélez et al. (2005), na Colômbia. No primeiro estudo uma população de 1995 indivíduos, dos quais 1.009 receberam vacina anti-LTA e 986 receberam placebo. A ausência de efeitos colaterais graves indicou segurança desta vacina. A conversão do TM

60 dias após a vacinação foi de 74,4 % no grupo dos vacinados e 14,7 % no grupo que recebeu placebo, confirmando sua imunogenicidade. Entretanto, não foi observada diferença significativa entre a taxa de incidência de LTA entre o grupo vacinado (2,0%) comparado ao grupo placebo (1,3%), durante 26 meses de acompanhamento. Os autores sugerem que o processo de autoclavação pode ter sido um dos responsáveis por essa baixa proteção (Armijos et al., 2004).

No segundo estudo, realizado por Vélez et al. (2005) com 1.302 vacinados e 1.295 placebos foi observado uma conversão do TM, um ano após a vacinação, de 84,3% no grupo vacinados comparado a 16,8% no grupo placebo, indicando a imunogenicidade desta vacina. A incidência de LTA no grupo dos vacinados foi de 7,7% comparada ao grupo placebo que foi de 6,8%, durante um ano de acompanhamento. Os autores consideraram que esta vacina é segura e imunogênica. Mas infelizmente, estes autores não realizaram o TM 60 dias após vacinação como em outros estudos, sendo este realizado apenas um ano depois, apresentando uma falha no protocolo do ensaio e tornando-o não válido a comparação com demais estudos de fase III. Os autores concluem que sua proteção contra L. panamensis, parasita presente no local do estudo, foi muito baixa.

Portanto, uma vacina ideal deve induzir a formação de uma resposta imune na maioria dos vacinados e conferir uma proteção duradoura contra o antígeno em questão. Muitos podem ser os fatores responsáveis pelos aproximados 30% de indivíduos vacinados que não convertem o TM. Dentre eles, fatores característicos dos indivíduos como fatores nutricionais que afetam diretamente o estado imunológico devem ser avaliados, uma vez que vários autores têm demosntrado uma relação entre a resposta imune e a os fatores nutricionais, principalmente elementos traço como cobre, ferro, selênio e zinco (Erickson et al., 2000; Faryadi & Mohebali, 2003; Kocyigit et al., 1998; Van Weyenbergh et al., 2004).

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