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4. P REVISÃO C LIMÁTICA

4.1.3 Variabilidade interdecadal

É conveniente, em escalas de tempo maiores, fazer a distinção entre mudança climática e variabilidade climática natural. Mudança climática significa tendência, ou variação sistemática num dado sentido, de parâmetros climáticos. Pode ocorrer devido à mudança sistemática da forçante radiativa do sistema climático ou por ação antropogênica. A variabilidade climática, por outro lado, é inerente ao sistema climático e pressupõe alternância, ou seja, superposição de variações cíclicas ou quase-cíclicas. A detecção de uma tendência no clima requer, portanto, que a amplitude da variabilidade natural seja quantificada. Para isto, uma grande variedade de dados e resultados de modelos atmosféricos tem sido utilizada.

O tema da mudança climática global ganhou importância quando observações indicaram que as concentrações de gases de efeito estufa (por exemplo, CO2 e CH4) tem aumentado na atmosfera. Isto pode produzir uma mudança na forçante radiativa do sistema climático. Neste contexto, descobriu-se que a temperatura média global tem crescido 0,6 ± 0,2 °C no século XX (Houghton, et al., 2001). Este aquecimento não está distribuído uniformemente sobre o globo. A projeção de crescimento da temperatura para 1990-2100 varia entre 1,4 a 5,8°C, considerando-se 35 cenários e sete modelos climáticos. Estas projeções contém muitas incertezas, decorrentes da composição dos cenários, da representação dos processos climáticos nos modelos e dos efeitos da não-linearidade do sistema climático. Projeções feitas por modelos diferentes freqüentemente não concordam quanto à distribuição regional das mudanças.

A mudança de temperatura pode levar a várias outras alterações do meio ambiente. Entre elas, a intensificação do ciclo hidrológico global, que terá impactos sobre os recursos hídricos a nível regional. Além disso, mudanças diferenciadas de temperatura levam a mudanças de padrões de pressão e de ventos. Portanto, poder-se-ia esperar mudanças nos padrões de precipitação.

Não serão apresentadas em detalhe as projeções de mudanças climáticas a nível regional sobre a bacia do rio Uruguai porque, conforme mencionado, elas variam de um modelo para outro. Por exemplo, variações projetadas para 2050 no escoamento superficial anual médio sobre a bacia aparecem como positivas no modelo HadCM2 e negativas no

modelo HadCM3, do Hadley Center, Inglaterra, para o mesmo aumento de 1% na concentração de CO2.

Vamos focalizar nesta seção a variabilidade de baixa freqüência, e possíveis tendências detectadas em estudos observacionais. Nestas escalas de tempo, processos oceânicos são muito importantes, devendo-se considerar o sistema acoplado oceano-atmosfera.

Duarte (1994) mostrou, com séries de dados do período 1958-84, que houve, sobre a Argentina, significativos aumentos de temperatura na camada 850/400 hPa, durante o período 1965-84, enquanto houve um resfriamento na alta troposfera (300-100 hPa). Houve também um aumento do gradiente latitudinal de temperatura no nordeste da Argentina (entre 28ºS e 38ºS), indicativo de um aumento de baroclinicidade na região nordeste do país, o que pode contribuir para aumento de precipitação.

Castañeda e Barros (1994) estudaram as tendências de precipitação no Cone Sul da América do Sul, a leste dos Andes, com dados do período 1916-91. Neste período, houve tendência positiva na precipitação na maior parte da Argentina. Contudo, a maior parte desta tendência ocorreu entre as décadas de 60 e 90, pois as tendências da precipitação entre as décadas de 20 e 60 de modo geral são negativas . Na região do Paraguai houve um comportamento inverso ao observado na maior parte da Argentina, com aumento de precipitação até a década de 60 e posterior diminuição. No NE da Argentina a tendência positiva da precipitação nas últimas décadas é maior no inverno que no verão.

Barros e Castañeda (1994) relacionam o aumento da precipitação verificado na Argentina após a década de 60 e a diminuição no norte, na região do Paraguai, com o deslocamento para sul da latitude do máximo vento em 200 hPa, em torno de 5º. Este deslocamento pode ter sido causado por uma diminuição do gradiente de temperatura entre trópicos (10-30ºS) e altas latitudes (60-90ºS). Se este aquecimento das altas latitudes do Hemisfério Sul é devido ao aumento do efeito estufa é algo a ser verificado.

Garcia e Vargas (1997), analisando as tendências de vários afluentes do Rio da Prata (Paranapanema, Paraná, Paraguai, Uruguai), descobriram mudanças nas tendências das vazões do rio Uruguai entre 1917-18, 1943-45 e 1970-72, com resultados similares para os outros rios. Houve um período muito seco entre 1943/44 e 1971/72 e tendência positiva após esta data. Genta et al. (1998) também detectaram uma tendência crescente nas vazões do rio Uruguai, a partir de 1970. Contudo, Bischof et al. (1997) concluíram que o componente de tendência encontrado no rio Uruguai nas últimas décadas é menos significativo que a variabilidade interdecadal. Estudando freqüências presentes nas séries de vazões anuais no Rio Uruguai (em Santo Tomé) no período 1908-1994, descobriram variabilidade de baixa frequência com períodos de 3,6 anos, (10,33% da variância), 6,14 anos (8,57% da variância), 8,6 anos (10,3% da variância) e 14,3 anos (10,2% da variância). Estes valores concordam com alguns ciclos de variabilidade da precipitação na bacia superior, no inverno e primavera, encontrados por Grimm e Della Justina (comunicação pessoal). Robertson e Mechoso (1998) analisaram as vazões médias dos rios Paraná e Paraguai e dos rios Uruguai e Negro (no Uruguai), em Salto Grande e Rincón del Bonete, no período 1911-93. Encontraram ciclos de 6,3 e 3,5 anos na vazão média anual do Uruguai e Negro, que explicam 17,1 e 9,4% da variância. Estes períodos também aparecem na análise da precipitação na bacia superior, de Grimm e Della Justina, sendo o período em torno de 3,5 anos mais presente na primavera e o de 6,3 anos mais presente no inverno. Além disto, estes estudos indicaram também a presença de ciclos de 8,3 anos e 16,7 anos, próximos dos encontrados por Bischof et al. (1997). O fato de Robertson e Mechoso terem considerado em conjunto a bacia alta do Uruguai e a bacia do Negro pode explicar a falta de ciclos mais longos nos seus resultados. Um comportamento quase-cíclico com período da ordem de 15 anos foi determinado por Robertson and Mechoso (2000) no principal modo de variação da circulação atmosférica associada à ZCAS e que também aparece nas anomalias de TSM do Atlântico sudoeste e na pressão reduzida ao nível do mar (Venegas

et al., 1998) . Eles encontraram ainda um ciclo de 17,5 anos na diferença entre a soma das vazões dos rios Paraná e Paraguai e a soma das vazões dos rios Uruguai e Negro.

É interessante abordar brevemente a variabilidade climática de baixa freqüência a nível global, para verificar a relação entre a variabilidade regional e oscilações a nível global.

Wallace e Zhang (1997) usaram dados de temperatura sobre todo o globo, entre 1900 e 1995, para separar a variabilidade considerada de origem antropogênica da variabilidade natural dentro da variação de temperatura global neste período. A componente antropogênica foi considerada espacialmente uniforme, o que constitui uma aproximação. Sua série temporal inclui uma significativa tendência positiva no período. A componente de variabilidade natural de temperatura no oceano tem um padrão muito semelhante ao padrão de EN. Sua série temporal inclui sinais dos eventos EN e LN, juntamente com variações interdecadais, como o desvio para a polaridade quente do ciclo EN na década de 70. Zhang et al. (1997) usaram dados globais de temperatura da superfície do mar no período 1900-1993 para separar a componente de variabilidade natural da temperatura do oceano num componente de variabilidade interanual, identificado como relacionado ao ciclo EN, e noutro componente contendo a variabilidade interdecadal. Os dois componentes tem estrutura espacial muito semelhante. Também os campos de pressão e vento associados a eles são semelhantes.

Quann e Webster (1997) documentaram variações interdecadais similares às verificadas após a década de 70 com dados de precipitação média anual e temperatura da superfície do mar (TSM), no período 1895-1984. Seus resultados mostram claramente as transições interdecadais frio-quente e quente-frio que ocorreram quase-periodicamente com a TSM no Pacífico tropical central (10ºN-10ºS, 180º-160ºW). A amplitude dessa oscilação interdecadal (OID) da estrutura espacial da TSM no Pacífico é da ordem de 0.5ºC. Com esta amplitude, haverá uma resposta coerente na circulação atmosférica? A comparação com a série temporal da precipitação média anual em Quito, Equador, sugere que sim. Entre as séries pluviométricas que tem OID significativa na banda de períodos entre 17 a 23 anos, a de OID mais típica com período de 20 anos é a de Quito. A maior parte das estações que tem o quase-período de 20 anos mostram boa correlação com a OID de Quito, positiva ou negativa. Há entre elas estações nos subtrópicos da América do Sul. O padrão dos coeficientes de correlação entre a OID de precipitação nessas estações e a TSM no oceano global assemelha-se ao modo interdecadal (de padrão assemelha-semelhante a EN) de Zhang et al. (1997). Esta OID assemelha-se manifesta através de mais freqüentes e/ou mais intensos eventos EN durante alguma década e de menos e/ou mais fracos na década seguinte. Genta et al. (1998) também sugerem que as variações de baixa freqüência nas vazões dos rios do sudeste da América do Sul estão relacionadas com variações na temperatura da superfície do mar no Pacífico Tropical Leste (região Niño3), sugerindo que as relações que funcionam durante eventos El Niño/La Niña funcionam também em escalas de tempo maiores.

Contudo, há exemplos de regiões não afetadas significativamente por esses eventos e que apresentam variabilidade interdecadal, e outras nas quais o impacto destes eventos é até de sinal contrário ao da variabilidade interdecadal. Isto se explica pelo fato de existirem outros modos de variabilidade interdecadal a nível global (ver, por exemplo, Enfield e Mestas-Nuñez, 1999 e Mestas-Nuñez e Enfield, 1999).

A variabilidade interdecadal manifesta-se também nas conexões entre precipitações (ou vazões) e TSM, o que pode afetar a validade de modelos estatísticos de previsão climática. Por exemplo, Grimm et al. (2001b), ao montar um modelo de previsão para chuva na bacia do São Francisco, verificaram que a relação entre a chuva e os preditores (TSM em várias regiões do globo) sofria significativa variação interdecadal, de tal forma que quando a correlação com uma região aumentava, com outra diminuía. Os preditores foram combinados de forma a obter um índice com correlação estável ao longo de todo o período utilizado.

A variação climática de baixa freqüência manifesta-se não apenas por uma mudança nas vazões totais anuais, mas também por uma mudança na estrutura do ciclo anual. Segundo Garcia e Vargas (1997), considerando medidas de vazão do rio Uruguai em Paso de los Libres, até 1943 os picos de vazão de junho e outubro tinham a mesma ordem de magnitude e havia um mínimo entre novembro e março, enquanto de 1943 a 93 o mínimo ocorre de dezembro a março. De 1944 a 1970 o primeiro máximo ocorre em julho, sendo bem menor que o de outubro. De 1971 a 1993 há praticamente um máximo, de junho a agosto e um segundo degrau de setembro a novembro. Portanto, houve um grande acréscimo de junho a agosto. Genta et al. (1998) verificaram a variação dos ciclos anuais do rio Uruguai em Salto Grande, entre os períodos 1909-40 e 1970-95 . As diferenças são um pouco menores que as encontradas em Garcia e Vargas, mas qualitativamente semelhantes. Para verificar se houve realmente uma modificação no ciclo anual, aplicaram um teste de verificação da diferença entre medianas para cada mês e verificaram que não há diferença significativa para o inverno, mas há para o verão. Isto demonstra a importância dos fenômenos de alta freqüência durante o inverno (e seus extremos) na bacia do Uruguai.

Portanto, a variabilidade interdecadal afeta de forma diferente as vazões nas diferentes estações do ano. É importante fazer um estudo dessa variabilidade nas precipitações sazonais e não apenas anuais. Estudos de Grimm et al. (1998) na bacia do rio Paraná mostram esta dependência sazonal e mostram também que no Sul e Sudeste do Brasil há, como na Argentina e Uruguai, significativas mudanças entre as décadas anteriores e posteriores a 1970.

É importante também explorar a possibilidade de que parte da variabilidade de longo-prazo seja causada pelo manejo hidrológico dos rios e por mudanças do uso do solo (Tucci and Clarke, 1998).