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VER E NÃO VER O ESPAÇO

No documento Habitar sem ver (páginas 105-109)

VER E NÃO VER O ESPAÇO

“Em sua maioria, as informações do ambiente construído se limitam às visuais (…).”

(BULA & ALMEIDA, 2015, p. 2).

A visão é, desde a Antiguidade, considerada como um dos principais sentidos, senão o principal, presente no homem, sendo aquele em que ele mais confia e se baseia (NEVES, 2017). A confiança acontece em vários níveis, não

sendo apenas visível na arquitetura, mas também em todas as outras artes, como o desenho, a pintura e escultura, entre outras. Os cinco sentidos surgem, por definição e de forma individual, em contexto grego, por Aristóteles. Para além de definir os sentidos, Aristóteles dispõem-os consoante o seu grau de importância, com base nos seus estudos e observações. A hierarquia feita acaba por se tornar parte do pensamento individual de cada pessoa. Deste modo, a visão é colocada no topo da pirâmide, pois, considerava-se que seria o elemento mais desenvolvido e fundamental para a vida humana, aparecendo de seguida, a audição e o olfato. Apesar desta classificação,

para o fácil entendimento das várias matérias intelectuais, não deixando as pessoas cegas de parte relativamente à sociedade, e acredita que a falta de visão pode ser colmatada com uma boa audição (MARTINS, 2014).

Apesar da compreensão espacial ser feita através de todos os sentidos, é inegável que a visão acaba por ser o elemento primordial nessa apreensão. Esta permite que o indivíduo compreenda várias características que os restantes sentidos não permitem. É possível perceber desde distâncias a tamanhos, de formas a texturas, cores e luzes (CASTELNOU, 2003). Sendo que é a partir do bom

e eficaz funcionamento do cérebro, que a visão consegue percecionar e, por conseguinte, hierarquizar tudo aquilo que rodeia o indivíduo (de FARIA, 2014).

Na sua obra, Eduarda de Faria (2014) afirma que a arquitetura apenas existe através dos olhos, os quais permitem o seu nascimento e crescimento, sendo que só assim se justifica a sua existência e, que só assim, a arquitetura é capaz de ganhar forma. A ideia de o olhar ser uma esfera suprema para a arquitetura é incontornável e inegável, no pensamento da maioria dos autores. A autora a certa altura, afirma também que o mundo, sendo ele assemelhado metaforicamente a uma bola de neve, que conjuga várias coisas, apenas consegue ser descodificado através dos olhos, tal como, em termos arquitetónicos, acontece com a descodificação do próprio espaço que está a ser habitado. Afirma ainda que, é através desta descodificação, que o indivíduo consegue organizar as várias referências que adquire, visualmente, do espaço e do mundo.

A arquitetura, tal como as restantes artes, quando concebida, coloca assim no topo, a sua interpretação e perceção feita através do sistema visual. A arquitetura torna-se uma esfera “concebida para agradar os olhos” (SANTOS &

COSTA, 2015, p. 205). O ser humano, apesar dos vários sentidos que o constituem,

acaba por ser valorizado apenas tendo em conta o seu órgão visual, pois a crença de que este sentido adquire uma “grande importância na captação de

estímulos e projeções espaciais” (SANTOS, 1999, p. 1) é muito forte, tal como o facto

de se afirmar que este é “o sentido dominante (…) proporciona muito mais

informação” (KANASHIRO, 2003, p. 157).

A ideia vincada de uma arquitetura construída para a visão e para agradar aos olhos, prejudica a sua interpretação através dos restantes sentidos, pois “os

que desconhecem as proezas destes sofisticados diafragmas, têm a necessidade de recriar a sua função recorrendo aos restantes órgãos dos sentidos” (de FARIA,

2014, p. 116). Quando a ação de ver o espaço se transforma na ação de não

o ver, o indivíduo acaba por ser encaminhado automaticamente para uma esfera que se caracteriza por apresentar algumas dificuldades. A arquitetura, neste caso, deverá ter a capacidade de ajudar a ultrapassar estas dificuldades, incutindo diversas características possíveis de serem percecionadas por todos os sentidos, e não apenas pela visão, a fim de vincular o cego no espaço arquitetónico.

A importância dada à perceção visual na arquitetura obriga, por sua vez, ao desenvolvimento de espaços capazes de responder a todas as perceções não visuais, integrando por isso, a pessoa cega no processo percetivo. Um espaço que dá resposta a qualquer perceção feita por qualquer indivíduo, é um espaço muito mais enriquecido e vivido, adquirindo “uma leitura mais

rica sob o ponto de vista arquitetónico” (BUSTOS et al., 2004, p. 5), pois acaba por

promover a inclusão de todos.

O corpo de alguém que vê, move-se e orienta-se no espaço auxiliado principalmente pelo olhar. Um olhar que observa obstáculos, desníveis repentinos. A arquitetura, apesar duma notória tomada de consciência, ao longo dos anos, muitas das vezes cria obstáculos espaciais apenas visualmente percetíveis, criando acidentes por parte dos indivíduos cegos. Neste sentido, é importante que o homem seja o principal público a quem se deve agradar, independentemente das suas características, pois, indiscutivelmente, a

arquitetura adquire o seu auge, quando experienciada pelo homem.

Não ver um espaço pode ser uma ação, inicialmente, executada com algum receio. Por sua vez, o processo de aceitação engloba uma constatação e um afloramento dos restantes sentidos: o tato, a audição, o olfato e o paladar. O espaço e a sua apreciação ganham uma abordagem diferente, principalmente quando é perdida a visão ao longo da vida. Este ambiente passa a ser mais vivido e sentido. O tato e a audição, de entre todos os sentidos, ganham uma maior importância e destaque, ao nível da arquitetura, para a perceção espacial de um cego, embora os restantes sentidos adquiram alguma importância, quando abordamos o paradigma habitacional.

A casa alberga infindáveis memórias, nomeadamente memórias odoríficas, que evocam lembranças e orientam a pessoa no espaço, pois os cheiros são associados pelo ser humano, a determinados espaços que outrora foram vivenciados.

É neste momento, em que o espaço deixa de ser visto e interpretado pelo olho, que surgem as mais diversas questões, que poderão levar a perceber então, como pode surgir uma arquitetura pensada para ser vista pelo olho, tal como também pelos restantes sentidos.

Como surgem e que importância acarretam os restantes sentidos, quando a visão não existe?

No documento Habitar sem ver (páginas 105-109)