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2. Criação do espetáculo Tambours sur la digue

2.2 Viagem à Ásia, início do processo criativo

O objetivo principal dessa viagem de cinco semanas era o de observar diversas formas artísticas, sentir cheiros, ver cores, observar as pessoas e a riqueza cultural dos países visitados. Tratou-se de uma experiência bastante livre na qual cada artista do grupo podia decidir para onde viajaria e quanto tempo ficaria em cada país, sendo as opções: o Japão, o Taiwan, a Coreia e o Vietnã. Como descreve a diretora:

Em outubro e novembro, nós fizemos uma viagem pela Ásia. Japão, Coreia, Taiwan e Vietnã, cada um fez seu percurso em busca de descobrir essas tradições ainda tão vivas lá e se impregnou destas imagens, dessa

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arte tão sofisticada e simples com a qual, depois, nós nos colocamos a trabalhar (HÉLIOT, 1999).

Vincent Mangado e Dominique Jambert, atores do Théâtre du Soleil, falam em entrevista para a presente pesquisa, que a aproximação concreta das tradições teatrais asiáticas foi muito importante para o grupo, uma vez que a maioria dos participantes nunca tinha estado nos países visitados. Além disso, eles enfatizam que tal viagem foi determinante para o processo criativo do espetáculo, pois sem tais referências concretas as buscas realizadas nas improvisações teriam tido ainda mais dificuldades e demorado ainda mais tempo para serem encontradas.

Devido a essa liberdade de escolha dentre os destinos possíveis e tempo de estadia em cada país, as viagens realizadas foram bastante diferentes para cada participante da companhia. O ator Duccio Bellugi-Vannuccini que interpretou, dentre outros personagens, Liou Po e o Chanceler no espetáculo, por exemplo, teve como destinação a Coreia, o Japão, o Taiwan e o Vietnã. Ele nos descreveu que, por já conhecer um pouco da tradição P’ansori devido a uma apresentação que havia visto, optou por iniciar sua viagem pela Coreia. Em seguida, foi para Kyoto e Tóquio no Japão, onde assistiu apresentações de Bunraku, Mibu-Kyogen e de formas mais populares do tambor de Kodô. Em Taiwan, viu muitas marionetes do tipo fantoches (de luva) e Ópera chinesa e no Vietnã observou diversas apresentações das tradicionais marionetes na água. Além disso, contou a importância de ficar andando pelas ruas e observando livremente as pessoas, pois foram experiências como essas que inspiraram personagens como Madame Li e Kisa atuados, na versão final do espetáculo, por Juliana Carneio da Cunha e Sandrine Raynal, respectivamente. A viagem de Serge Nicolaï, outro ator da companhia que no espetáculo atuou, dentre outros personagens, Tsumi, o pintor da corte, diferencia-se da de Duccio. Ele relatou, também em entrevista concedida para esse estudo, que visitou apenas o Vietnã e o Taiwan e contou com algumas aventuras para encontrar algumas tradições artísticas e determinados artistas locais. Dentre elas, fez uma trilha de moto para chegar até um velho músico que havia feito parte da corte imperial do Vietnã e visitou os aborígenes do Taiwan entrando em contato com suas

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formas de canto. Além disso, conheceu um grande colecionador de marionetes taiwanesas que hoje é diretor do museu de marionetes da ilha.

É importante destacar que não foram só os atores do Théâtre du Soleil que receberam uma ajuda de custo para a realização desse “estudo de campo”. As figurinistas, o músico e a própria diretora também realizaram tal experiência. Ou seja, buscou-se que todos os campos da criação teatral19 tivessem a referência viva de pelo menos algumas tradições teatrais orientais.

O valor dessa viagem se acentua quando temos em mente que, de maneira ampla, todo o espetáculo Tambours sur la digue pode ser interpretado como uma homenagem ao teatro, trazendo como tema a questão do desaparecimento dessa arte e apontando, como uma possibilidade de resposta, a forma e a trama representada.

Nesse sentido, a cena final do espetáculo retrata essa mensagem que a peça busca transmitir, ao mostrar que o único sobrevivente da grande inundação que devastou toda a cidade é Baï Ju, o mestre de marionetes. Nela esse personagem surge em cena quando todos os outros já foram transformados em verdadeiras marionetes (bonecos) e foram lançados na água, representando suas mortes e a devastação de toda a cidades. Baï Ju, porém, é o único que continua sendo representado por um ator (marionete-viva) tendo atrás de si seu manipulador, ou seja, encontra-se na forma criada pelo espetáculo. Sua ação é a de tomar cada um dos bonecos nas mãos e organizá-los no proscênio para o encerramento da encenação.

19 O cenógrafo Guy-Claude François já havia realizado viagens à Ásia anteriormente e por isso não

a repetiu para esse processo criativo e a autora Hélène Cixous não viajou para a Ásia, mas para os Estados Unidos. Tal destino foi escolhido, pois nesse país ela pôde ter acesso a um grande número de obras importantes de diversas tradições teatrais asiáticas traduzidas para o Inglês.

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Tal cena homenageia o próprio trabalho do ator. Segundo a visão da diretora, mesmo sem marionete um ator é sempre um marionetista, pois deveria ter sempre seu corpo e na encarnação do personagem um olhar de distância. Como diz Mnouchkine: “Ele se vê agir, ele é e age” (FAVIÈRE, 2000). Ou seja, com a sobrevivência de Baï Ju no final da peça, aborda-se o tema de que a resistência ao desaparecimento teatral é feita também pelos próprios atores.

Além disso, essa cena final também homenageia a arte teatral, que é representada pelo encontro entre a tradição representada pelos bonecos e a nova forma criada pelo Théâtre du Soleil, pois assim, de maneira indireta, a companhia representa a própria história do teatro ao mostrar o contato de uma tradição com a sua releitura. Também destaca-se que, com tal imagem sintética, o grupo demonstra poeticamente sua cresça na capacidade de renovação e de atualização do teatro contemporâneo através do seu contato com seu passado, ou seja, com suas tradições cênicas.

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Assim, nota-se a função de se promover uma viagem dos integrantes da companhia à Ásia, quando se sente, devido ao espetáculo anterior, que se está perdendo o teatro. Para Mnouchkine, a arte do ator está no Oriente, é ali também que ela tem suas maiores referências quanto à encenação e ao tratamento de elementos teatrais como a música, cenografia, figurino, maquiagem e objetos de cena, então é para lá que ela envia seus companheiros de criação para ajudá-la a reencontrar essa arte.

O Théâtre du Soleil, portanto, busca concretizar seu fazer teatral utópico, ancorado na realidade e nas condições sociais do mundo atual, por meio de um contato constante com as tradições e com os primórdios do teatro. Em uma entrevista ao jornal La Tribune (BOURCIER, 1999), a diretora responde à seguinte questão: “Tem-se a impressão de que com esse espetáculo (Tambours sur la digue) você fala também da história do teatro, isto pode ser afirmado?”:

É sempre o caso. Nós nos apoiamos sobre aqueles que nos abriram pistas. A partir do momento em que damos as costas ao teatro, nós somos invadidos por ervas daninhas. Quanto mais eu avançava no espetáculo, mais eu me dizia que nós estávamos tomando uma das maiores lições de teatro das nossas vidas: nós nos colocávamos a questão: “como podemos fazer e interpretar o teatro hoje?”.

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