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Se a chegada dos europeus à América fez com que as atividades relacionadas às viagens ao Novo Mundo se tornassem uma constante ao longo dos séculos seguintes, nem sempre o indivíduo deixava sua terra com tinta e caneta, em busca desses horizontes. Entretanto, ao chegar em novas paragens, se antes não havia em sua mente o ideal de escrever sobre os povos e as

distintas culturas, pode ser que tal posicionamento mudasse e ele se tornasse um dos mais lidos e respeitados relatores de viagem. Portanto, entendo que o simples fato de deixar sua pátria em busca de novas terras, nem sempre, pelos parâmetros da Idade Moderna, fazia do indivíduo um viajante, no sentido de ser um relator exclusivo do que via e experimentava.

Paul Fussell destaca que uma viagem deve ser caracterizada pelo movimento a um diferente lugar, que deveria ser marcado pelo prazer pessoal e, portanto, descartando qualquer intenção utilitária dessa ação. Por essa via, os homens que estiveram nas Américas entre os séculos XVII e XVIII, em busca de informações e/ou à serviço de alguma instituição privada ou do Estado, não poderiam ser enquadrados no que Fussell entende como viagem. A afirmação do autor me parece um tanto equivocada se considerarmos que muitas das obras publicadas por homens que estiveram no Novo Mundo em funções somente utilitárias, contenham em suas nomeações a presença da palavra viagem.9 Por outro lado, comungo da ideia de Elizabeth Bohls para a qual o fato de estarem em distintas regiões em missão pré-estabelecida, não impedia os indivíduos de agirem como simples observadores, gozando de deleites pessoais.10

O historiador Ronald Raminelli, especialista no estudo de viagens realizadas na América portuguesa, reconhece que definir aquilo que poderia ser considerado como viagem e viajante no período colonial é uma tarefa complicada. Por isso, aponta um caminho distinto de Paul Fussell, ao destacar que “a viagem, em princípio, era exploração e deslocamento espacial narrados de maneira cronológica”, vendo então que se tratava, quase sempre, de uma atividade com um fim útil. Dito de outra forma, pela lógica ressaltada por Raminelli, os viajantes nem sempre se moviam por interesses particulares e, portanto, deveriam cumprir algumas metas.11

Quanto ao historiador James Clifford, sua perspectiva é a de que podemos considerar como viajante somente aqueles que possuíam a possibilidade de se movimentar nos espaços desejados, sem restrições. Por esse viés, homens como militares, escravos e migrantes não poderiam ser enquadrados como viajantes e, portanto, seus deslocamentos não deveriam ser apresentados como viagens.12 Tais descrições apontadas por Clifford, de antemão, não podem ser

9 FUSSEL, Paul (edit.). The Norton book of travel. New York: Norton, WW, 1987, p. 20-22.

10 BOHLS, Elizabeth A & DUNCAN, Ian (edit), com introdução de Elizabeth Bohls. Travel writing 1700-1830: an

anthology. New York: Oxford University Press, 2005, p. 12-14 (Introdução).

11 RAMINELLI, Ronald. Viagens e História Natural dos séculos XVII e XVIII. In: PEREIRA, Paulo Roberto (org.).

Brasiliana da Biblioteca Nacional – Guia de fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: FBN / Editora Nova Fronteira,

2001, p. 48.

12 CLIFFORD, James. Routes: travel and translation in the late twentieth century. Cambridge: Harvard University

consideradas ao abordarmos o período moderno, afinal, como aponta Ronald Raminelli, “os viajantes guiavam-se por políticas estatais e científicas, além de receberem financiamento e, por vezes, instruções de viagem”, especialmente no século das “Luzes”.

De fato, em fins do século XVII e nos cem anos seguintes, houve grande mudança na percepção do que seria uma viagem e, na esteira disso, do que passaram a entender como viajantes, pois, embora os relatos sobre o Novo Mundo e suas particularidades começassem a ficar consideravelmente bem conhecidos, desde os primeiros momentos de reconhecimento das terras encontradas ao longo do continente americano, grande parte das incursões estrangeiras nas possessões coloniais se associavam ao desenvolvimento dos interesses mercantis dos Centros de poder imperiais, buscando a expansão de seus domínios e o reconhecimento das posses declaradas, no simultâneo sentido de explorar as riquezas e englobá-las na política fundamental de jugo e centralização das partes componentes das posses d’além mar.

Pilar Ponce, partindo da análise da América espanhola, destaca que, no século XVIII, as expedições para o continente podem ser consideradas como exemplos únicos das rupturas empreendidas pela Espanha, no século das “Luzes”, na forma de como fazer ciência, com o abandono total das pesquisas feitas em gabinetes, dando início à experimentação mais sofisticada. Para a autora, as Relações, desde o século XVI, funcionavam como mananciais de informações, com questionários bem preparados, que eram trazidos ao Novo Mundo para que, não só os viajantes, mas todos aqueles que desfrutavam de viagens para as novas terras, pudessem registrar suas impressões a respeito da natureza, do clima e dos povos americanos. Contudo, somente no século XVIII, com uma intencionalidade científica mais explicitada, foi que as expedições retomaram a lógica dos questionários antes preparados, uma vez que, no século XVII, muitas informações foram levantadas de forma imprecisa em virtude da falta de seguimento dos trabalhos das Relações.13

Para o historiador Jorge Cañizares-Esguerra, tais questionários utilizados pelos viajantes também eram passados para muitos homens nascidos na América que buscavam, no século XVII, responder, dentro dos contornos que, à época, eram entendidos como científicos, às proposições colocadas nas remessas de informações de que homem e natureza americanos eram degenerados. Sendo assim, ao pesquisar sobre o desenvolvimento das ciências na América colonial do século

13 PONCE, Pilar. Burocracia colonial y território americano: las relaciones de Indias. In: LAFUENTE, Antonio

Lafuente; CATALÁ, J. Sala (orgs.). Ciencia colonial en America. Madrid: Sociedad Quinto Centenario / Alianza Editorial, 1992, p. 31.

XVII, Cañizares-Esguerra alerta para o fato que, de um modo geral, os clérigos locais escreviam com outros propósitos além do desenvolvimento do comércio, procurando estabelecer genealogias patrióticas e tentando demonstrar que eram membros da monarquia compósita espanhola. Assim, o clero se voltou para a paisagem circundante para garantir providenciais narrativas.14

Dessa maneira, o historiador reitera que, até o século XVIII, as elites Crioulas desses reinos coloniais desfrutavam de considerável autonomia e, portanto, desenvolviam uma forte identidade local com as narrativas patrióticas. Deste modo, era natural que para cada versão imperial da ciência que chegava à América, uma versão colonial em defesa do Novo Mundo, seu clima e seus povos emergisse. Assim, para o historiador, considerando os europeus eruditos que desenvolveram uma visão amplamente negativa do feito que as estrelas do hemisfério sul tinham sobre a fauna, flora e povos; Cañizares-Esguerra entende que os intelectuais da América espanhola discordaram, destacando não somente o tamanho e o número das estrelas e constelações recém-descobertas como desenvolvendo leituras astrológicas patrióticas e alternativas para o que se falava na Europa.15

Pilar Ponce, apesar de ressaltar a descontinuidade entre as Relações e seus questionários informativos, entre o século XVII e XVIII, destacando a forma marginal como os homens do século XVII lidaram com essa prática, também se alinha à ideia de que o fio condutor entre o século das descobertas e o setecentos foram as obras apresentadas pela Companhia de Jesus. Portanto, essa ordem religiosa teria assumido o cargo de cosmografia das Índias, desde 1625 até a saída desses religiosos dos domínios imperiais, na segunda metade do século XVIII. Logo, as expedições organizadas pela Companhia, especialmente aquelas que se referiam aos territórios de fronteiras, a despeito de seu caráter prioritariamente missionário, foram, para Pilar Ponce, eventualmente, encabeçadas por jesuítas com um alto nível de formação científica, que foram capazes de reconhecer e, posteriormente, oferecer sistematizado volume de dados das mais

14 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Iberian colonial science. Chicago Jounals, The History of Science Society.

Chicago: The University of Chicago Press, v. 96, n. 1, 2005, p. 66.

15 CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Iberian colonial science. Chicago Jounals, The History of Science Society.

variadas espécies, sendo suas incursões no campo da cartografia, por exemplo, amplamente reconhecidas e utilizadas.16

Para Ronald Raminelli, a adoção da classificação de Lineu para se colocar em prática as descrições da natureza perderam o caráter espetacular, sendo, portanto, mais aceitos os inventários produzidos pelas viagens, perpassados por um “evidente processo de secularização”. Contudo, tais inventários, mesmo no século XVIII, demonstram claramente diferenças entre aquilo que os teóricos evidenciavam como necessário de ser processado e, efetivamente, aquilo que os viajantes, sobretudo os naturalistas, encontravam em suas andanças pelo Novo Mundo. Afinal, muitas das perguntas eram respondidas por homens nascidos na América que, funcionando como suporte para as viagens, também exprimiam suas percepções a respeito da terra e dos povos que os circundavam.

De todo modo, ainda que não de forma definitiva, Ronald Raminelli, a partir da América portuguesa, elenca três tipos de viagens e, por consequência, seus viajantes: as de cunho exploratório, que se destinavam ao reconhecimento do território desconhecido; as viagens administrativas, planejadas e, de alguma forma, financiadas pelos governos imperiais; e as de teor científico, muito embora, para o caso português e seus domínios, tenham sido praticadas, basicamente, a partir das mudanças de perspectiva desenvolvimentista no século das “Luzes”.17

Com base nas obras analisadas ao longo desta pesquisa, entende-se que viagens são os deslocamentos feitos em direção ao Novo Mundo e a outras partes do planeta, mesmo que a intenção inicial não fosse observar e catalogar as riquezas naturais, minerais e a humanidade presentes nas terras desconhecidas. Dito de outro forma, além de registros que chegaram até nós por força de constrangimentos sociais que lhes permitiram certa seleção e salvaguarda em arquivos – dos quais as empresas editoriais, tiveram, por certo, um peso que mereceria toda uma outra tese – viagens eram tanto as missões direcionadas às quatro partes do mundo conhecido para inventariar terras e gentes, fossem fomentadas por governos ou atitudes de particulares, quanto um gesto que, enquanto relatos, encontravam sua razão de ser no momento em que essas pessoas aportavam em lugares novos, do qual a América foi exemplar. Muitos dos autores

16 PONCE, Pilar. Burocracia colonial y território americano: las Relaciones de Indias. In: LAFUENTE, Antonio;

CATALÁ, J. Sala (orgs.). Ciencia colonial en America. Madrid: Sociedad Quinto Centenario / Alianza Editorial, 1992, p. 40.

17 RAMINELLI, Ronald. Viagens e História Natural dos séculos XVII e XVIII. In: PEREIRA, Paulo Roberto (org.).

Brasiliana da Biblioteca Nacional – Guia de fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: FBN / Editora Nova Fronteira,

elencados nesse texto deixaram a Europa para cumprir uma determinação militar, ou seja, uma viagem a serviço de alguma casa reinante e, mesmo assim, o indivíduo deixou relatos dignos de serem considerados como de um homem em missão científica pela América.

A escolha dos viajantes que aparecem ao longo dos capítulos foi feita, quase sempre, através de citações que um viajante fazia do outro. As notas de fim de página de cada relato funcionaram como manancial para que se estabelecesse as relações entre os viajantes e, dessa forma, fosse possível chegar a novos relatos. As obras dos teóricos, de certa forma, também foram fundamentais para se chegar aos relatos de viagem aqui reunidos. Afinal de contas, os autores das teorias deixavam entrever a origem das informações que ajudara na tessitura de suas hipóteses. Algumas expedições, como aquelas comandadas por La Pérouse e Malaspina, como veremos a seguir, possibilitam um maior acervo de relatos, pois cada tripulante presente na empreitada buscava confeccionar seu próprio diário de bordo, deixando informações ricas em detalhes e, ao mesmo tempo, demonstrando o quanto os viajantes de uma mesma expedição poderiam ter visões díspares a respeito de um mesmo grupo nativo observado.

A leitura de vasta historiografia a respeito de viajantes também foi responsável por facilitar o acesso a novos relatos. Procurei organizar os relatos de acordo com os seguintes critérios: aqueles que defendiam a interferência do clima, do ambiente, dos céus, como promotores da diversidade humana e os que defendiam que o clima não possuía nenhum papel relevante no processo de transformação dos corpos dos americanos. A partir desses dois grandes grupos, buscou-se escrutinar o que cada relato apresentava como causa prima das diferenças físicas encontradas nos ameríndios e nos negros que viviam no Novo Mundo.

Ao fim, optou-se por dividir os viajantes em quatro grandes grupos que não levou em conta a profissão ou ocupação dos autores dos relatos, mas somente a razão que os fizeram se deslocar de sua região inicial em direção a outra. Não foi considerado, portanto, se houve um retorno ao ponto de origem. Afinal, o mais interessante para o tipo de trabalho aqui apresentado era considerar o produto final, ou seja, o relato deixado por esses viajantes sobre o homem americano.

Quatro categorias de viagens ou viajantes podem ser observadas ao longo desta tese que, em função de seus eventuais embricamentos, só serão aqui estabelecidas de forma, por assim dizer, didático-organizacional dos escritos, de modo, inclusive, a apresentar os pontos de contato e o livre trânsito ainda forte entre um tipo e outro de pensamento, religioso e científico, externado

nos textos. Dito isso, temos as viagens ou viajantes religiosos nos quais Gregório Garcia, Bernabe Cobo, Diego Andres Rocha, Michelangelo Guatinni e Dionigi Carli representam o século XVII e José de Gumilla o XVIII. Os quatro primeiros eram de origem ibérica e privilegiaram a América espanhola como local de observação, tendo como missão principal a catequese. Guatini e Carli eram de origem italiana e percorreram diferentes partes da América, inclusive o Brasil. José de Gumilla, no século XVIII, se estabeleceu em região específica do rio Orinoco, então área da América espanhola.

A outra categoria é a de viagens ou viajantes cientistas, que buscavam estabelecer critérios para enquadramento da humanidade americana. Do século XVII, o principal representante é François Bernier, sobretudo por conta da utilização que o autor faz do termo raça associado de forma mais contundente com cor da pele e formato dos corpos. Mas ainda temos Charles Dellon que viajou por toda a América. Para o século XVIII, os representantes da ciência seriam: Pierre Barrèrre, Lafitau, Pierre Maupertuis, Antonio Tova Arredondo, Alejandro Malaspina, José de Moradela, La Pérouse, M.Frezier e George Anson. Quanto ao espaço visitado, com exceção de Lafitau, que privilegiou a região do Canadá; e os três últimos, que empreenderam uma viagem sem fronteiras geográficas, na América; os demais privilegiaram o espaço do império hispânico. Sobretudo aqueles ligados à Expedição Malaspina, que fora uma organização do governo espanhol.

As viagens ou viajantes militares podem ser encabeçadas por indivíduos que chegaram à América com a missão de lutar em defesa de uma causa e acabaram se tornando excelentes relatores sobre a humanidade americana. Os três são do século XVIII: Bernard Romans, Gilbert Imlay e Jean Bossu. Os dois primeiros privilegiaram a América do Norte; Imlay, na verdade, era americano. De todo modo, empreendeu viagens ao longo dos domínios ingleses e também em direção à grande parte da Europa. Bossu esteve na América francesa e também em regiões do império espanhol. Suas obras privilegiaram o espaço geográfico da América central.

Por fim, temos as viagens ou viajantes particulares. Esses partiram em busca do conhecimento ou de glória pessoal em alguma área. Os representantes do século XVII são: François Coreal, Marc Lescarbot, que estiveram em distintas regiões da América, inclusive se aventuraram pela costa dos domínios lusos. Para o século XVIII: Saint-Mèry, Edward Long e La Barbinais. O primeiro era americano, escreveu sobre as regiões por ele percorridas, principalmente na América de colonização francesa. Long era britânico e sua vinda para a

Jamaica deu-se por conta de interesses pessoas, ainda assim, deixou vasta obra sobre o povo e as riquezas daquela região. O último percorreu grande parte da América, inclusive o Brasil, em busca do desenvolvimento do comércio.

Minhas escolhas recaíram sobre viajantes que, quase sempre, não se circunscreviam somente a uma determinada região do Novo Mundo. Os viajantes que percorrem distâncias geográficas maiores apresentam detalhes mais ricos a respeito das populações da América. Entendo que esses viajantes não estabeleciam fronteiras rigidamente demarcadas para classificar os povos do continente recém-descoberto. Por isso, defendo que a maneira como os europeus classificavam os povos americanos e africanos na Idade Moderna não pode ser vista como especificidade do viajante de cada Estado europeu, mas sim, como algo que ultrapassava as fluídas barreiras geográficas de unidades políticas e territoriais que, em grande medida, ainda estavam em construção no próprio Velho Mundo. Por essas razões, não se tratava de como o britânico, o francês, o espanhol e o próprio nativo via a humanidade americana, e sim como o olhar europeu percebia essa diversidade.

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