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Por volta de 1775, a obra de Bernard Romans estava concluída e ele declarava, pretensiosamente, que era o mais completo compêndio informativo sobre áreas importantes da América inglesa que, naquele momento, já ensaiava os primeiros passos de insubordinação às decisões tomadas pela pátria-mãe. Vindo da Europa, não existem informações claras a respeito da vida de Romans, sobretudo nos períodos em que ele esteve na Holanda e na Inglaterra. Contudo, alguns dados do autor nos levam a inferir que ele deve ter nascido por volta de 1720, nos Países Baixos, ao considerarmos informações contidas em uma petição feita por sua esposa a respeito de uma pensão por conta de serviços militares por ele prestados, pode-se concluir que Romans se casou por volta de 1779, portanto, aos 59 anos de idade. A ligação mais profícua com o exército americano foi por volta de 1775, morrendo aos 64 anos de idade, em 1784.

Convencido de que o homem americano assim como os africanos eram de espécies ou raças distintas do europeu, Romans cria poder discutir as teses do Conde de Buffon sobre a unicidade humana. Sobretudo em função da experiência acumulada em suas viagens e, além disso, devido a sua longa permanência em terras americanas, bem como por conta das observações que fizera sobre os nativos e os africanos. As primeiras informações seguras a respeito desse viajante, que tomou a América como pátria, aparecem numa Lista de habitantes da

Flórida, com dados sobre empregos, negócios e qualificações dos moradores, entre os anos de

1763 e 1771. Um relatório encontrado nos arquivos da Universidade de Harvard também apontava que, entre 1769 e 1770, Romans teria sido deputado topógrafo dos distritos do Sul, cargo que já ocupara pelo Estado da Geórgia.

O mesmo se passa nos arquivos da The colonial records of the State of Georgia, compilados por A. D Candler, no qual é citado em dois momentos, entre 1767 e 1768. No primeiro, ele solicitava ao governador que lhe concedesse terras da região onde se encontrava, totalizando 100 hectares: dois lotes de número 10 e 11, na Paróquia da Igreja de Cristo. Conforme o documento, tal pedido foi deferido pelo governador. No ano seguinte, mais uma vez, Romans apresentava petição para obter 500 acres, alegando o cultivo como justificativa. Também nesse momento a resposta foi positiva desde que o comprador observasse as regras estabelecidas pelo Conselho local sobre a compra e venda de terra.36

As redes de sociabilidade tecidas por Bernard Romans na América demonstram que foi um homem que soube transitar em diferentes instâncias de poder. A divisão de manuscritos da Biblioteca do Congresso aponta, na sessão Cartas da Secretaria de Estado, livro “A”, referente à Flórida, que Romans recebia uma pensão de 50 libras, logo após sua chegada ao Novo Mundo. As cartas comprovando o recebimento dessa pensão foram enviadas pelo governador do Estado da Flórida, Peter Chester, com destino aos Condes de Hillsborough e Dartmouth, entre os anos de 1770 e 1774. Portanto, observa-se que Romans estabeleceu contatos diretos com homens a serviço da Coroa inglesa, em terras que se levantariam contra o soberano durante o processo revolucionário. Seu contato com o governador da Flórida foi primordial para que ele fosse premiado pelos funcionários régios.37

36 Os documentos usados nessa seção estão compilados em: PHILLIPS, P. Lee. Notes of the life and works of

Bernard Romans. Florida: University of Florida, 1975, p. 352 e 258. O autor utiliza cópias dos documentos orginais.

37 PHILLIPS, P. Lee. Notes of the life and works of Bernard Romans. Florida: University of Florida, 1975, p. 176-

177. De acordo com os documentos compilados por Phillips, em agosto de 1772, o governador enviou a seguinte carta ao Conselho de Estado: “To the Earl of Hillsborough, Pensacola 14th August 1772: My Lord, I herewith

transmit to your Lordship a Map of the Eastern parts of this Province which had not hitherto been explored – this Map was executed by Mr. Bernardus Romans a Surveyor – in consequence of my directions who I think very capable of performing business of this kind, and as many other of the Eastern parts of the Province are still entirely unknown to us – I shall continue to Employ this man in services of the like Nature which I think will prove of any public Utility. / I also herewith transmit to Your Lordship some of Mr. Romans’s draughts of Flowers &c – and a specimen of the Jalap of this country which has been lately discovered within the Province by Mr. Romans – But I cannot take upon me to say whether it may prove to be the real Jalap or not. As this Mr. Romans appears to me to be an ingenious man & both a Naturalist & Botanist – I think him worthy of some Encouragement, and submit to your Lordship whether it would be improper to give him a small (sum) of $50- or $60 p. Ann. Added to the Estimate or otherwise in order to induce him to continue in this colony to make discoveries & observations in Botany, some of

O que chama a atenção é o fato do governador destacar as qualidades de Romans, indicando que ele era um topógrafo responsável por confeccionar mapas que foram de suma importância para se conhecer as terras orientais da província em destaque. Na verdade, um mapa foi enviado ao Conselho de Estado, para que os funcionários reais apreciassem e levassem em conta o fato de Romans ser um homem a serviço da natureza e muito bom naturalista e botânico que deveria ser utilizado para o benefício e utilidade pública do governo.

De fato, Bernard Romans se autodeclarava um observador naturalista que acumulara, com suas viagens, uma longa experiência a respeito das distintas espécies naturais existentes na terra. Leitor de filósofos naturais europeus, buscava se dedicar à natureza americana e seus nativos, na tentativa de dissipar as falsas informações tecidas a respeito do Novo Mundo. Em 1774, a Gazeta

da Pennsylvannia foi responsável por anunciar a eleição de Romans para integrar o corpo da Sociedade Americana de Filosofia.38 Ezra Stiles, um dos membros, em 1775, publicava em seu

diário filosófico que havia recebido a visita de Bernard Romans, oportunidade que tiveram para conversar sobre a origem dos indígenas e seus costumes. Naquela ocasião, o viajante teria afirmado que “he has traveled among all the Indians from Labradore to Panama. The Indians tribes in New Spain are most numerous; but he saw none that the estimated to have above ten or twenty thousend men. He estimated the total of souls Indians between Mississippi & the Atlantic, and from Florida to the Poles to be fewer than one thousand souls”.39

Além da preocupação de Bernard Romans com a quantidade dos indígenas no Novo Mundo, ele também destacava ao seu interlocutor as diferenças bastante perceptíveis entre os índios Esquimós e os demais, evidenciando que a pele era mais branca do que a dos outros, com cabelo bem preto, mas um pouco enrolado; eram homens com barbas bem grandes. Portanto, era através da aparência física que ele classificava os seres humanos, muito embora defendesse, abertamente, que existiam diferentes raças humanas, tendo, cada uma, suas características imutáveis, indo de encontro às proposições colocadas por grande parte dos filósofos da natureza do Velho Mundo.

Durante a Revolução, ele foi indicado como participante em diversas batalhas e tomadas de regiões importantes para o exército continental. Quando residia em Hartford Conn foi

which may probably hereafter be of use to the public. / I have the honor to be with the greatest respect & C.P. Chester”.

38 PHILLIPS, P. Lee. Notes of the life and works of Bernard Romans. Florida: University of Florida, 1975, p. 49,

nota 7.

apontado, em abril de 1775, como membro do Connecticut Committee para a tomada de Ticonderoga. No jornal escrito pelo capitão Edward Mott, relacionado a essa expedição e publicado no Connecticut Historical Society Collections, volume I, se encontram diferentes referências ao capitão Bernard Romans. Diz-se que por recomendação de George Washington, Roman foi escolhido, em 1775, para a construção de uma fortificação em Fort Constitution.40

A vida de Romans foi ligada aos escalões mais altos da política colonial, desde sua chegada à América. Prestou serviços como topógrafo, mas soube se destacar em diversas áreas de conhecimento, se dedicando à botânica e à história natural. Tipicamente marcado pela lógica de premiação do Antigo Regime, soube transitar em diferentes redes daquela sociedade, de forma que adquirisse os meios necessários para cobrar, em momento oportuno, por mercês. Estabeleceu alianças com governantes do império britânico, sem perder a astúcia de avaliar com acuidade o momento revolucionário e se posicionar de forma que, ao fim, recebesse algo em troca. De fato, em 1846, sua esposa Elizabeth escrevia ao governo americano solicitando uma pensão, com base nos serviços prestados por Romans durante a revolução que cortara os laços com a pátria-mãe.

O historiador P. Lee Phillips destaca, com certo exagero, que Bernard Romans pode ser caracterizado como um gênio universal, afinal de contas ele era: botânico, engenheiro, matemático, topógrafo, escritor, cartógrafo, gravador, linguista, soldado, marinheiro, dentre outros talentos. Seus escritos e mapas foram consultados pelos mais distintos escritores, sendo incluído na coleção de estudos raros chamada Americana. O célebre Volney, na obra Tableau du

climat et du soil des Etats-Unis, de 1803, cita Romans em diferentes momentos e o qualifica

como “distinto cientista”. Para Daniel G. Brinton, historiador que, em 1859, deixou suas notas sobre o Estado da Flórida, Romans foi um grande historiador que conhecia, como ninguém, os modos e as marcas físicas das tribos americanas.41

40 PHILLIPS, P. Lee. Notes of the life and works of Bernard Romans. Florida: University of Florida, 1975, p. 55.

Carta compilada: “On the 18th of August, a committee was appointed to superintend the erection of forts and batteries

in the vicinity of West Point. They employed Bernard Romans, an English engineer (who, at the time, held the same office in the British army), to construct the works; and Martelaers’s Rock (now Constitution Island), opposite West Point, was the chosen spot for the principal fortification. Romans commenced operations on the 29th of August, and

on 12th of October he applied to Congress for a commission, with the rank and pay of colonel. It was this application

which caused the action of Congress on the 18th of November. In the mean while, Romans and his employers

quarreled, and the commission was never granted; the work was soon afterward completed by others. The fort was named Constitution, and the island has since borne that title”.

41 BRINTON, Daniel. Notes on the Floridian Peninsula: its literary history, Indian tribes and antiquities.

Philadelphia: Joseph Sabin, 1859. Brinton, p. 57: “A very interesting natural history of the country is that written by Bernard Romans. This author, in his capacity of engineer in the British service, lived a number of years in the territory, traversing it in various directions, observing and noting with care both its natural features and the manners

Ao fim, não caracterizaria Bernard Romans como um gênio. Contudo, bem entendido está que foi um homem atento para bem usar suas habilidades, fazendo com que as mesmas se despertassem em determinadas conjunturas para que pudesse tirar algum proveito em seu benefício ou para sua família. Contudo, apesar de a história de Romans ser pouco conhecida, sua obra teve importância fundamental ao tecer considerações sobre a população americana, se esquivando das proposições apresentadas por homens como Conde Buffon e Lineu. Isso porque, ao fim, Romans defendia que sua experiência na América o demonstrara que indígenas e africanos não faziam parte da mesma raça que os homens brancos de origem europeia. Sustentar essa hipótese num período em que se iniciava o processo de formação de um Estado com contornos de nação, em pleno solo colonial e escravista, era no mínimo algo a ser considerado pelos pais fundadores dos Estados Unidos.

Jean Bernard Bossu, um viajante francês da segunda metade do século XVIII, era representante do grupo que defendia a interferência do clima no comportamento e físico humano. Nascido em 1720, embora fosse de uma família ligada à área médica, tendo vários cirurgiões por perto, optou pela carreira militar que, rapidamente, o levou ao posto de Tenente e na sequência ao de Capitão. Essa última patente o possibilitou viajar por três vezes ao continente americano. Esteve no Novo Mundo em 1751, 1757 e 1770. Na verdade, sua primeira estadia na América francesa foi cumprindo a missão estratégica de defesa e de apoio aos militares que se encontravam em Nova Orleans. Portanto, era um viajante militar em nome de interesses administrativos e militares franceses.

A curiosidade do Capitão viajante fez com que saísse dos domínios da guarnição em direção a outras paragens da América do Norte, especialmente para exploração das terras e observação dos povos ao longo do rio Mississipi, partindo de Nova Orleans e conseguindo chegar até a terra dos Illinois, passando, obviamente, por Arkansas e ficando por bastante tempo nas terras dos índios Quapaw; também se congraçou com os nativos Natchez, diz-se que com os primeiros chegou a fumar o cachimbo da paz. No período em que esteve entre os Quapaw, explorou as regiões do rio Arkansas e destacou em suas observações a ideia do “bom selvagem”, ressaltando a boa amizade dos nativos da região com os franceses.

and costumes of the natives tribes. On the latter he is quite copious and is one of our standard authors. His style is discursive and original though occasionally bombastic, and many of his opinion are peculiar and bold. Extensive quotations from him are inserted by the American translator in the Appendix to Volney’s view of the United States. He wrote various other works, bearing principally on the war of independence. A point of interest to the bookworm in his History is that the personal pronoun I, is printed throughout as a small letter”.

Ao voltar para a França em 1757, Bossu levou informações precisas a respeito da região francesa na América. O viajante militar sabia da importância de suas observações a respeito da colônia francesa. Buscava glória e recompensa por seus serviços, inclusive, aqueles que fizera por conta própria, ao explorar a região ao longo dos principais rios da América do Norte. A obra de Bossu é bem composta por muitos detalhes, ainda que pobre de argumentos; era um militar que se aventurava no conhecimento da natureza, dos povos e seus costumes. Mas não sabia como organizar essas informações e objetos angariados da forma como os teóricos da diversidade europeus esperavam que fosse feito. Entretanto, suas remessas argutas de dados o levaram de volta à América para prosseguir seu trabalho.

Quando, em 1757, o ministro da Marinha francesa ordenou que Bossu retornasse ao Novo Mundo, também concedeu ao militar poderes para agir em nome da Coroa francesa, em particular no âmbito do reconhecimento e exploração das áreas pertencentes a França e, porque não, das áreas ligadas a outros impérios também? Contudo, sendo militar, teve que baixar a cabeça e receber ordens do governador da região; nesse caso, a “autonomia” concedida pelo ministro no Centro foi retirada de sua mão pelo governador na Periferia. Sem o apoio local, preferiu aceitar, ainda que contrariado, a ordem colonial de que ele assumisse uma missão não desejada. Na verdade, sua irritação era pelo fato de o governador ter concedido o comando de um forte que ele almejava para um oficial, segundo Bossu, menos experiente.

Após cumprir a missão determinada pelo governador, em 1763 ele retornou à França. Em 1768, suas cartas sobre as Índias Ocidentais, enfim, foram publicadas. Apesar disso, àquela altura da história, o governo central na sua esfera militar já havia recebido informações que desabonavam o comportamento de Bossu na sua segunda estadia na América, principalmente por conta da sua crítica à decisão do governador de não o designar para o posto que desejava. Embora tenha saído da França acreditando estar respaldado pela decisão ministerial, não contava bater de frente com o governador colonial. Poderes conflitantes, típico do Antigo Regime, que renderia seis meses de prisão ao militar explorador, quando retornou à Europa. Em 1770, pela última vez, voltou para o Novo Mundo.

Samuel Dickinson enfatiza que o viajante deixou a França em 1770 e esteve no Caribe, descrevendo como havia ocorrido, em pormenores, a revolta dos habitantes da Louisiana contra o domínio espanhol, em 1768. Voltou à região dos Quapaw e se despediu dos mesmos com tristeza, ressaltando, mais uma vez, o mito do “nobre selvagem” tão defendido por Jean-Jacques

Rousseau.42 As informações sobre a revolta do povo da Louisiana, decerto, foram contadas para Bossu, afinal ele chegara ao local dois anos após o conflito. A importância de sua obra para a Coroa francesa se deu, especialmente, em função das escaramuças entre França e Inglaterra que nos anos de 1750 e 1760 já havia levado esses dois impérios a entrar em guerra por conta das terras ao norte. Bossu morreu na França, em 1792, portanto, em pleno processo revolucionário.

Sua ideia do nobre selvagem era diametralmente oposta à posição que ele versava sobre os negros africanos e também os descendentes nascidos na América. Os últimos, para Bossu, eram de raça distinta e degenerada. Quanto aos índios, acreditava que eram oriundos de outros continentes, passando à América através da região ocidental do México e da Louisiana. Era um militar que soube tirar proveito da sua viagem ao Novo Mundo para angariar postos e recompensas. Contudo, não conseguiu estratégias que o fizesse cair tanto nas graças do poder central quanto dos mandatários locais. Ao fim, teve sua euforia pelo poder devidamente controlada. No seu caso foi fácil, afinal era militar a serviço da Coroa e, por mais que essa o autorizasse no reconhecimento e exploração das áreas americanas, ele deveria reconhecer a hierarquia militar. Ao esquecer isso, pagou o preço de empacar na patente de Capitão e ainda amargar preso.

Outro militar que, assim como o francês Bossu, fez observações de campo e teceu comentários a respeito das populações que viu no Novo Mundo, foi Gilbert Imlay, nascido na América, muito provavelmente, por volta de 1754. Era descendente de imigrantes escoceses que teriam chegado às novas terras no século XVII e havia se dirigido à região de New Jersey, que apresentava grande influência da cultura holandesa e também a presença dos Quakers ingleses. Wil Verhoeven destaca que o pai de Imlay era envolvido com venda de terras e, em 1772, casou- se com a nora viúva de um dos proeminentes participantes do Conselho provincial. O novo status social não trouxe muitos benefícios para o militar, pois a região de sua moradia foi arrastada para a Guerra dos Sete Anos e, na sequência, para a Revolução Americana, na qual Imlay pôde servir ao lado dos “rebeldes”.

Verhoeven enfatiza que “Gilbert was drawn into the maelstrom of wartime racketeering and rogue trading”.43 De fato, a guerra eminente foi uma das formas que Imlay conseguiu para tentar colocar seu nome na história. O militar não se debruçou em pesquisas contundentes para

42 DICKINSON, Samuel. New Travels in North America by Jean-Bernard Bossu, 1770-1771 by Jean-Bernard Bossu.

The Arkansas Historical Quarterly, v. 41, n. 4 (Winter, 1982), p. 346-348.

abordar a diversidade humana, mas apostava nas leituras que teria feito e nas observações deixadas por Lord Kames, ainda no século XVII, e que em muito agradavam Imlay. Para ele, de fato era o clima o único responsável pelas diferenças físicas entre os indivíduos. Apresentou

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