• Nenhum resultado encontrado

A ideia da natureza e humanidade degenerados era assunto recorrente em viajantes que estiveram em regiões da América espanhola, no século XVII. Gregório Garcia sustentava a tese da degeneração causada aos animais e ao homem americano por conta da influência dos astros e do céu sob o qual eles viviam. Quase descrente da possibilidade de mudança e também da conversão desses homens, embora a respeito desse segundo aspecto, tal posicionamento não fique bem claro, Garcia buscava explicações para justificar sua hipótese, em vasta literatura escrita ao longo dos séculos, sentenciando que os nativos teriam sua origem no homem branco, contudo se degeneraram e, portanto, tal aspecto era irreversível. Assim, o viajante fornecia os aspectos que, sob a descrição de nações degeneradas, delineavam os traços da moderna ideia de raça que nasceria na América.

Não há muitas informações a respeito da vida de Gregório Garcia, sabe-se que esteve na América por doze anos, visitou os domínios da Coroa que ficavam na Nova Espanha e também no vice-reinado do Peru, onde esteve por volta de nove anos. De todo modo, teria voltado à Europa em 1605, e terminava a obra com a qual venho dialogando nesse texto, por volta de 1607.

Portanto, Garcia era homem do século XVI, estimando-se que tenha nascido na década de 1550 ou 1560. Origen de los indios de el Nuevo Mundo teve expressivo sucesso, se considerarmos que a primeira edição é de 1607, e, um século depois, ainda estava sendo editada. A reedição, em 1729, se torna importante no cenário em que os teóricos e viajantes começavam a apontar de forma mais criteriosa para diferentes respostas sobre a origem do homem americano e as diferentes raças humanas. Contudo, o livro reeditado no século XVIII apresenta informações e prefácios de diferentes homens da época, o que leva o leitor a possíveis dissonâncias entre o que Garcia explicava e o que seus prefaciadores dos anos 1720 apontavam no livro. O frei morreu em 1627.

O céu e as estrelas que degeneravam o homem que migrava para a América também era tese cara ao Ouvidor da Audiência de Lima, Diego Andrés Rocha, de quem não se tem informações concretas sobre sua vida, mas parece ter sido um homem do século XVII, morto por volta de 1688. Sua obra e suas hipóteses a respeito da origem dos humanos americanos foram bastante influenciadas pelos textos de Gregório Garcia. O historiador Rubén Vargas Ugarte, em livro a respeito da história da Igreja no Peru, é uma das únicas fontes que mencionam alguma informação a respeito desse prelado que se envolvera com a administração colonial. Trata-se de uma petição que Andrés teria enviado ao rei da Espanha, onde ele descrevia a morte de um índio que havia sido fiel aos brancos e à religião católica e, assim, pedia que, por desejo da viúva do nativo, a casa deles fosse transformada num convento.18

A leitura atenta da obra de Andrés Rocha demonstra, claramente, a falta de posição do autor a respeito da origem e da razão das diferenças físicas dos nativos americanos e dos africanos, partindo de hipóteses desde as Tribos de Israel presentes no Gênese até à possibilidade de os americanos serem oriundos de povos do mundo antigo, o cronista deixava transparecer a possibilidade dos ameríndios serem originários de antigos povos da região da Espanha que migraram para diversos lugares do orbe. Deliberadamente, encontrava traços nos nativos que o fazia associá-los com os antigos espanhóis. Tal assertiva, longe de inocente, de alguma maneira, parece-me que fazia com que se justificasse a dominação europeia no Novo Mundo. Afinal, se os nativos americanos eram descendentes dos espanhóis que, quando da passagem à América teriam atravessado um processo de degeneração por conta do clima, nada mais justo do que estarem, agora, em terras que já pertenciam aos seus ancestrais.

Vemos que, com relativa facilidade, prosperam as narrativas de homens que estiveram na América colocando em prática a atividade missionária. Muito embora não possamos deixar de perceber que esses religiosos viajantes eram imbuídos de informações específicas e contundentes em determinados campos de análises, de forma que ouso chamá-los de religiosos cientistas, apesar de tê-los incluindo na designação de viajantes religiosos. O padre José de Gumilla é um exemplo de viajante religioso que, embora se preocupasse em descrever as riquezas naturais e materiais dos locais por onde passava, de uma forma geral, estava muito inclinado à propagação da fé católica e à salvação dos gentios.

Gumilla nasceu em Valência, em fins do século XVII, seu ingresso na Companhia de Jesus foi bem cedo, em 1704, sendo que um ano mais tarde ele já se encontrava nas terras do Novo Mundo. Seus estudos sobre filosofia e teologia foram concluídos na Universidade de Bogotá, portanto, em solo americano. Em meados de 1716, enfim, o religioso começou a colocar em prática sua empreitada missionária. Num primeiro momento, foi ao trabalho de campo, percorrendo as comunidades e regiões ribeirinhas próximas ao Rio Orenoco. Empreendeu uma reestruturação do trabalho de catequese, possibilitando, assim, uma empresa rentável nas missões próximas ao grande rio, região que havia sido abandonada pelos jesuítas, desde fins do século XVII, por conta das dificuldades em estabelecer contatos com os nativos.

Devido ao bom êxito de Gumilla nas questões referentes à ocupação dos espaços abandonados pelos seus antecessores e, principalmente, a capacidade que ele teve para levar em frente a expedição que lhe foi confiada, acabou deixando a região do rio Orenoco para se envolver com a máquina administrativa do império espanhol. Assim, em 1737, ele era o reitor do Colégio de Cartagena; no ano seguinte, assumiu o posto de Vice Provincial do Novo Reino, recebendo também, nesse mesmo ano, o posto de Procurador para assuntos religiosos que fossem discutidos em Roma e Madrid. A importância de Gumilla nos quadros administrativos espanhóis se deu, sobretudo, em virtude do domínio que o religioso possuía da cultura e dos idiomas dos nativos.

Gumilla chegou à América com o intuito de cuidar da evangelização. De fato, em 1723, ele foi nomeado como Superior das missões do Orenoco, Meta e Casanare. Foram quinze anos de muita dificuldade, como narra o próprio viajante religioso. Contudo, o sucesso da sua empreitada adveio da sua transferência com a missão de restaurar os espaços de catequização da região do rio que era ocupada pelos índios caribes e, portanto, área perigosa e de difícil contato com os nativos.

Não obstante, esse momento marcou o trabalho do padre como missionário. Ali se observou a fundação de seis Povos e o profundo estudo das línguas e das culturas nativas. Os historiadores Carlos Del Cairo e Esteban Pabón destacam que a obra de José Gumilla, decerto, é um componente fundamental no rol dos documentos utilizados para se entender e interpretar a história missionária dos jesuítas na América espanhola do século XVIII.

O viajante missionário e, por fim, também viajante administrativo, esteve em distintas partes da América centro-sul na tentativa de estabelecer regras e limites geográficos de atuação dos distintos grupos religiosos existentes naquela região. Esteve na Guiana, firmando acordo com os capuchinos sobre os limites das missões daquela terra. Discutiu as jurisdições de ação dos grupos religiosos em Caraça e Piritu. Sua habilidade em esclarecer o importante papel das missões no processo de reestruturação da colonização, com certeza, foi observada e admirada por homens de outras instâncias administrativas. E embora não tenha ocupado cargos na alta administração espanhola, nem mesmo nos altos escalões da Igreja, seu trabalho e as funções que ocupou foram suficientes para lhe render expressiva rede de amigos. Isso fica comprovado quando o religioso retorna a Madri, em 1741, e, imediatamente, tem a primeira edição de sua obra El Orinoco Ilustrado publicada.

Em 1743, Gumilla voltou para suas Missões na América. Sua obra chama a atenção pela chancela que autoridades eclesiásticas e civis lhe concedem, aprovando a publicação de seus escritos. No prefácio da obra Histoire naturelle, civile et geographique, José Gumilla descreve o quanto era impressionante, para os homens do Velho Mundo, toda a novidade que se encontrava na América, destacando que “a la vûe de tant de nouveautés, on ne doit pas être surpris que les hommes, que la Providence a destines à cultiver ces nouveaux Païs, paraissent aussi de nouveaux hommes, & nous frappent d’autant moins, qu’ils nous paroissent moins raisonnables”.19

Ao apresentar sua obra, José de Gumilla destacava as possíveis falhas ocorridas. Mas entendia que era uma das mais importantes para se compreender a América e a construção das ordens missionárias, bem como os povos e as riquezas naturais do Novo Mundo. Na introdução do seu livro, destacava deixar por conta de M. Freron, responsável pelo Journal Étranger, a

19 GUMILLA, José. Histoire naturelle, civile et géographique de l’Orénoque et des principales rivières qui s’y

análise de seu trabalho. E, de fato, na edição de 1746 do periódico supracitado, encontra-se uma avaliação da obra do viajante missionário.20

O padre José de Gumilla morreu na América, em 1750, numa das missões que ele organizara e que lhe trazia tanto orgulho. Não se tem notícias se o missionário tenha elaborado listas de obras pessoais em busca de glória própria. E penso nem ter sido preciso, uma vez que o reconhecimento pelos escritos do religioso não veio só de instâncias ligadas à Igreja, mas também as governamentais. Gumilla identificou os povos americanos que viviam ao longo das missões do rio Orenoco. Ele dizia que muito antes de se concentrar nas capacidades, o intelecto e os usos dos indígenas, era preciso considerar o frontispício e a fachada dos povos pesquisados, afinal de contas, as configurações exteriores demonstravam muito a respeito do caráter e forma de agir dos povos.21

Missionário sério e comprometido com a expansão da fé Católica, Gumilla hesitou em assumir que os indígenas eram de uma nação inferior. No fim das contas, ficou com a ideia de que existia apenas uma raça humana. Contudo, apresentou pesquisas mirabolantes que apontavam o processo de branqueamento dos nativos do Novo Mundo, se cada vez mais o sangue branco e europeu penetrasse naquela sociedade, através da miscigenação com os nativos. Apesar disso, relutou em destacar o poder regenerador do sangue branco quando se tratava da mistura com o sangue negro. E apresentou a possibilidade das impressões que a mãe possui a respeito do seu entorno influenciar nas características dos filhos. Mas, ao fim, se percebe que o autor, por mais que sua posição na fosse explícita, via o homem americano como inferior com base na análise dos caracteres físicos, ainda que não tenha feito uso da palavra raça para se referir àqueles povos.

20 GUMILLA, José. Histoire naturelle, civile et géographique de l’Orénoque et des principales rivières qui s’y

jettent... Par le P. Joseoh Gumilla, ... traduite de l’espagnol sur la seconde édition par M. Eidous, v. 1, 1758 : “Le P.

Gumilla termine son Orénoque Illustré par une Dissertation sur la population des Indes, & par une longue Apostrophe aux Missionaires de la Compagnie de Jesus. Pour nous nous finirons par donner au P. Gumilla les justes éloges qu’il mérite. Son livre est plein de récherches curieuses, présentées avec ordre, & dans un jour agréable. La pureté & le tour simple & naturel de son stile, le distinguent des Ecrivains de sa Nation, qui tombent souvent dans un excés, dont cependant on commence à revenir en Espagne, ll regne dans le cours de l’ouvrage une tendresse Apostolique, qui donne une heureuse idée du caractére de l’Auteur”.

21 GUMILLA, Joseph. El Orinoco ilustrado y defendido. Historia natural, civil y geográfica de este gran río y de sus

caudalosas vertientes. Escrito en 1731. Ediciones posteriores: 1745, 1791 y 1882. Versión francesa, 1758. Caracas:

Academia Nacional de la Historia, Fuentes para la Historia Colonial de Venezuela, n. 68, 1963, p. 103. “El indio en general (hablo de los que habitan las selvas y de los que empiezan a domesticarse) es certamente hombre; pero su falta de cultivo le ha desfigurado tanto lo racional que en el sentido moral me atrevo a decir: que el indio bárbaro y silvestre es un monstruo nunca visto, que tiene cabeza de ignorancia, corazón de ingratitud, pecho de inconstancia, espaldas de pereza, pies de miedo, su vientre para beber y su inclinación á embriagarse: son dos abismos sin fin”.

Não fosse isso, não haveria razões para Gumilla propor o embraquecimento das nações da América.

Documentos relacionados