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CAPÍTULO 1 O TEATRO POPULAR DA ÍNDIA: PEQUENO RELICÁRIO

1.8 TEATRO DO ENTRETENIMENTO

1.8.1 VIDUSHAKA, O CÔMICO E SUTRADHARA, O ÉPICO

Alguns estudiosos acreditam que o teatro sânscrito descenda das formas populares, mas esta afirmação não é um consenso entre os historiadores,

portanto, é mais correto afirmar que, historicamente, ambos tenham evoluído paralelamente, se alimentando e se influenciando mutuamente. Nos séculos XV e XVI, quando o teatro sânscrito entra em declínio, temos o apogeu do teatro popular e folclórico, feito em língua regional e com uma estética mais próxima das populações iletradas da Índia: abundante uso de dança, canto, música, presença de coro, diferentes personagens em cena e a presença fundante do Vidushaka, o cômico.

Há ampla evidência indicando uma comunicação ativa entre o Teatro Clássico Sânscrito e as formas teatrais regionais. De fato, o teatro clássico se desenvolveu a partir de formas populares de diversão. Alguns dos Rupakas, formas de dramas, mencionados por Bharata, têm a marca inconfundível do teatro folclórico (VARADPANDE, 1992, p. 10)45.

Há evidências da existência deste personagem, encarregado pelo humor e a comicidade na cena, desde rituais tribais mágico-religiosos primitivos. O termo Vidushaka, entretanto, aparecerá pela primeira vez no Natyashastra de Bharatamuni, escrito entre II a.C. e II d.C., e nas peças de Bhasa e Ashvagosha. Bharatamuni nos descreve o Vidushaka como um anão corcunda, com face grotesca e dentes protuberantes, a mesma imagem que se vê nos afrescos de Ajanta e Mohenjodaro.

Sabe-se que nas formas dramáticas clássicas de todo mundo, humor e erotismo caminham juntos, e no teatro popular indiano, esta afirmação também se faz verdadeira. Shiva (Pramatha) é a deidade que representa o rasa hasya (sentimento cômico). Na Índia, assim como na Grécia, devia haver festivais em honra a esta divindade fálica, marcados também pela comicidade e erotismo, algo que, mais tarde, levaria a consolidação do personagem cômico Vidushaka como uma das presenças mais marcantes das formas dramáticas populares.

A palavra Vidushaka quer dizer “abusador”. Sua figura é associada tanto à imagem de um brâmane, quanto à de um macaco. Tal associação remonta ao Rig Veda e aparece no hino Vrishakapi (10.7.2), em que o macaco de estimação de Indra apronta e atormenta Indrani, sua esposa. Se a base da arte teatral em

45 No original: There is ample evidence indicating lively communication between classical Sanskrit and regional folk theatrical traditions. In fact, classical theatre developed out of popular forms of amusement. Some of the Rupakas, forms of dramas, mentioned by Bharata bear unmistakable stamp of folk theatre. (VARADPANDE, 1992, p. 10)

todo mundo é a imitação, o mimetismo - que é a imitação de pessoas e animais - é a base da arte da comédia e ambos sempre caminharam juntos na história mundial do teatro, como bem nos assinala Valente e Varadpande:

A epopeia e a tragédia, bem como a comédia e a poesia ditirâmbica e ainda a maior parte da música de flauta e de cítara são todas, vistas em conjunto, imitações (ARISTÓTELES apud VALENTE, 2008, p. 37 v. 15).

Até mesmo Bharata concordou que uma audiência sorrindo ou gargalhando era um dos sinais do sucesso da peça. Com o passar do tempo, a tarefa de fazer as pessoas rirem pode ter sido confiada a um determinado ator da trupe, de quem pode ter desenvolvido o personagem do cômico ou Vidushaka (VARADPANDE, 1992, p. 9)46. Como o teatro, em especial a comédia, sempre tiveram um grande potencial para desestabilizar as normas vigentes, era comum que os governadores locais não autorizassem a construção de teatros perto das vilas, fortalecendo a tradição das arenas a céu aberto e a cultura mambembe, características da cultura popular. Se os artistas ficassem muito próximos do povo, num espaço próprio e legitimado, seria impossível controlar a relação entre eles e as constantes críticas satíricas feitas pelos artistas aos governantes, o que acabaria por levar a ruptura da ordem social vigente. Não podemos deixar de notar, entre espanto e ironia, a atualidade desse comportamento no cenário brasileiro, por exemplo.

O vidushaka, como um "simplório cuja imbecilidade, real ou presumida, é utilizada para entretenimento", aparece no teatro folclórico com várias formas e nomes. Ele é muito querido pelo público das vilas. Ele é uma pessoa astuta, com vasta experiência e observação aguçada sob o manto da simplicidade. Durante toda a sua evolução, ele nunca perdeu contato com a vida contemporânea. Ele tem demonstrado uma tremenda capacidade de mudar com os tempos e permanecer eternamente renovado. Como sua contraparte no teatro clássico, ele não é limitado por um "roteiro escrito" ou "regras estabelecidas de comportamento e aparência" definidas pelos dramaturgos; ele é livre e flexível o suficiente para mudar, para se adaptar às sensibilidades cambiantes, para adquirir novos traços (VARADPANDE, 1992, p. 11)47. 46 No original: Even Bharata has agreed that an audience smiling or roaring with laughter in one of the signs of the success of the play. After the passage of time, the task of making the people laugh may have been entrusted to one particular actor in the troupe from whom may have developed the character of the jester or the Vidushaka (VARADPANDE, 1992, p. 9).

47 No original: The Vidushaka, as a ‘simpleton whose imbecility, real or assumed, is utilised for entertainment’, appears in folk theatre in various forms and names. He is very dear to village audiences. He is a shrewd person with wide experience and keen observation under the garb of simplicity. All through his evolution, he never lost contact with contemporary life. He has shown

O Vidushaka é a chave para se entender as formas populares de teatro da Índia. Sua função primordial é aliviar as tensões do dia a dia através do riso, num processo de grande identificação com o povo. De fato, o Vidushaka é visto como alguém do povo por viver as mesmas dificuldades e mazelas, falar-se, vestir-se e comportar-se como um indivíduo da comunidade, em última análise, sua representação simbólica. Mesmo quando encena peças com temática mitológica e histórica, o Vidushaka consegue estabelecer um elo com o dia a dia das pessoas comuns, daquele vilarejo específico, tornando o processo de identificação muito profundo. Ele é, portanto, o elo entre passado e presente, entre a História e a mitologia da Índia e as demandas comezinhas da vida cotidiana. É, deste modo, um agente educacional porque transmite conhecimentos e saberes ancestrais a uma população essencialmente iletrada e, também, um agente social, porque estimula a reflexão crítica e a tomada de consciência política. Não raro, seu humor lascivo e cruel é utilizado como poderoso instrumento de reflexão social e política. Cinismo e humor são suas marcas registradas e através deles, ele dá voz aos anseios e esperanças de toda uma população esquecida e marginalizada.

Entretanto, como contraponto ao Vidushaka, há ainda um outro personagem importantíssimo para a estruturação das formas de drama popular da Índia, o Sutradhara, que é - ao mesmo tempo - o chefe da companhia, o ator mais velho, o dramaturgo, diretor de cena, produtor etc. Sua função é conduzir a encenação de dentro da cena, falando diretamente ao público, como, por exemplo, introduzindo uma cena ou apresentando um novo personagem, ou falando diretamente aos atores, pedindo que digam este ou aquele texto, que cuidem da dicção, que interpretem com mais verve. Não raro, insatisfeito com a atuação de sua trupe, ele pode assumir o papel de algum ator mais “desleixado” ou mesmo interromper a encenação e desculpar-se publicamente com a assistência pelo mau desempenho de seus artistas. Em última instância, ele é o

tremendous capacity to change with the times and remain eternally fresh. Like his counterpart in classical theatre he is not bound by ‘written script’ or ‘set rules of behaviour and appearance’ laid down by the dramaturgists; he is free and flexible enough to change, to adapt to changing sensibilities, to acquire new traits (VARADPANDE, 1992, p. 11).

narrador, o contador de histórias, aquele que conduz o fio da narrativa. Ele nasce como um recitador de histórias e contos tradicionais itinerante e evolui até assumir a função de dramaturgo, organizando estas mesmas histórias em forma de diálogos, cenas e atos. Acredita-se que o Suta, figura que cumpre função similar no teatro sânscrito, tenha surgido por influência direta da figura do Sutradhara, como nos aponta Varadpande:

Considerando a antiguidade da tradição de Suta, pode-se concluir que o teatro popular na Índia é bastante antigo e precede o teatro clássico Sânscrito. E não apenas isso, se o Suta é o Sutradhara da encenação clássica, pode-se afirmar com segurança que o teatro clássico em si evolui do teatro popular (VARADPANDE, 1992, p. 12)48.

Um exemplo clássico de tradição teatral, que evoluiu da narração de histórias pelo Sutradhara, até assumir uma forma dramática mais rebuscada é o Kathakali de Kerala. Conforme a tradição de contar histórias por um narrador foi se desdobrando na representação desta mesma história através dos personagens, o estilo foi se configurando e se estabelecendo como drama propriamente dito, mas o Suta continuou a existir e a exercer a função de condução da narrativa. Do mesmo modo, podemos mencionar o kathaka, cuja figura ainda sobrevive na forma moderna do Kathak. É relevante perceber que sua aparição é recorrente na literatura indiana antiga, com muitos nomes diferentes: Granthika, Vagjivana, Charana, Kathak, Prathama Vesha e Suta, todos eles aparecendo em diferentes regiões e formas dramáticas da Índia, e gozando da mesma reputação: pessoas que não deveriam ser convidadas para eventos cerimoniais importantes, revelando sua pouca aceitabilidade nos círculos sociais mais altos e reforçando sua imersão na cultura popular.

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