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Violência doméstica – Lei Maria da Penha

2.2 Práticas e aplicações da teoria feminista no Brasil

2.2.3 Violência doméstica – Lei Maria da Penha

A Lei 11.340/2006 ou Lei Maria da Penha é a primeira e mais relevante normativa nacional de prevenção, assistência e punição à violência doméstica e familiar contra as mulheres. A promulgação da Lei rompeu com a visão jurídica tradicional de lidar com a violência praticada contra mulheres e, por isso, sofreu fortes resistências.

A respeito da citada lei, Pachá (2008) afirma:

Eu acho que é muito importante o passo que se deu para criar essa lei e para ter coragem de enfrentar esse problema do tamanho que ele tem. Eu acho que muito mais do que um problema com consequências graves, a violência doméstica é fruto da ignorância. As pessoas não denunciam porque têm medo e, normalmente, o medo é o pior inimigo que se pode ter para reverter esse quadro (PACHÁ, 2008, p. 89).

Logo após sua promulgação alguns operadores do direito recusaram-se a aplicá-la sustentando a sua inconstitucionalidade por acreditarem violar o princípio da igualdade entre homens e mulheres ao proteger exclusivamente as mulheres. Porém, recentes decisões do STF julgaram constitucional a Lei Maria da Penha e, decidiu também, que nos casos de lesão corporal de natureza leve não cabe representação, isto é, a ação penal é movida independentemente do desejo da vítima de processar o agressor.

Segundo Moraes (2000):

A lei 11.340/06 não é perfeita, mas traz em seu bojo, dentre outros aspectos, todo o procedimento a ser seguido tanto pela Polícia Judiciária, Ministério Público e Judiciário. Também estabelece medidas protetivas de urgência relativas à vítima. Assim, a lei Maria da Penha possui um espírito muito mais educacional e de incentivo às ações afirmativas que de punição mais severas aos agressores (MORAES, 2000, p. 179).

Segundo Hein (2013), a cultura da violência é prática diária nas relações familiares, fato constatado em pesquisas. Há muito que as feministas vêm denunciando e abordando que o contexto familiar não é local pacífico para as mulheres e crianças. Porém a naturalização da resolução de conflitos através de atos violentos é uma prática que atinge também as mulheres. A experiência de ter apanhado quando criança parece conduzir a comportamentos violentos ou sua aceitação na idade adulta e diversos estudos psicológicos apontam para essa ligação.

Com a Lei Maria da Penha algumas mudanças ocorreram na esfera jurídica: a Lei Maria da Penha tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher; estabelece as formas da violência doméstica contra a mulher como sendo física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; determina que a violência doméstica contra a mulher independe de orientação sexual; retira dos Juizados Especiais Criminais a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher; proíbe a aplicação destas penas; foram criados Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cível e criminal para abranger todas as questões; prevê um capítulo específico para o atendimento pela autoridade policial para os casos de violência doméstica contra a mulher; a mulher somente poderá renunciar perante o Juiz; é vedada a entrega da intimação pela mulher ao agressor; possibilita a prisão em flagrante; altera o Código de Processo penal para possibilitar ao Juiz a decretação da prisão preventiva quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher; a mulher vítima de violência doméstica será notificada dos atos processuais especialmente quanto ao ingresso e saída da prisão do agressor; a mulher deverá estar acompanhada de advogado ou defensor em todos os atos processuais; altera o art. 61 do Código Penal para considerar este tipo de violência como agravante de pena; a pena do crime de violência doméstica passará a ser de 3 meses a 3 anos; se a violência doméstica for cometida contra mulher portadora de deficiência, a pena será aumentada em 1/3; altera a Lei de Execuções Penais para permitir que o Juiz determine o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação.

O Título I da referida Lei, que trata das Disposições Preliminares, traz o seguinte texto:

Art. 1º - Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e

estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 2º - Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3º - Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

§ 1º - O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 2º - Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Art. 4º - Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Diante disso, torna-se imprescindível a atuação do Estado na implementação de políticas públicas em busca da aplicação da Lei.

Cabe ainda citar que, além da crítica em relação ao alcance de tal Lei, também há uma crítica quanto ao alcance dela em relação às mulheres trans. Sem dúvida a lei trata também das relações entre homossexuais. Todavia, para seus efeitos, a relação entre homossexuais há de ser, aparentemente, apenas do sexo feminino. A discussão jurisprudencial sobre o abarcamento das trans na mesma se torna cada vez mais importante.

Nesse sentido, é importante analisar a Lei Maria da Penha sob a perspectiva de uma ação afirmativa, pois visa amparar mulheres em situações prejudiciais e desiguais. Nas palavras de Guilherme Peña de Moraes, as ações afirmativas podem ser definidas como:

como políticas ou programas, públicos ou privados, que objetivam conceder algum tipo de benefício a minorias ou grupos sociais que se encontrem em condições desvantajosas em determinado contexto social [...] ou [...] como compensação de danos causados por discriminações ocorridas no passado ou distribuição de benefícios entre os membros da sociedade, de sorte a viabilizar o acesso de minorias a determinadas posições no futuro, em atenção à diversidade de origem, raça, sexo, cor e idade (DE MORAES, 2003).

A proteção ao gênero justifica-se, portanto, pelo contexto patriarcal no qual as relações sociais estão inseridas dentro de uma sociedade, onde mulheres são agredidas, feitas de objeto e subjugadas pelo só fato de serem mulheres. Ainda nesse contexto, deve-se encarar o termo “benefício” utilizado pelo autor de maneira crítica, posto que as políticas públicas de ações afirmativas têm papel reparador em vista de uma igualdade de fato, embora que de antemão

possa ser interpretado como uma discricionariedade em favor de um grupo que encontra-se em situação semelhante aos demais. Cumpre frisar que a corrente feminista da dominação patriarcal remonta ao conceito foucaultiano estático de poder, e, dessa forma, mostra-se insuficiente para a compreensão de tal violência, consoante o seguinte entendimento:

[...] a segunda corrente, que chamamos de dominação patriarcal, é influenciada pela perspectiva feminista e marxista, compreendendo violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino – grifo do autor.

[...] Adotando o conceito de poder de Foucault e o conceito de gênero de Scott, Izumino argumenta que “pensar as relações de gênero como uma das formas de circulação de poder na sociedade significa alterar os termos em que se baseiam as relações entre homens e mulheres nas sociedades; implica em considerar essas relações como dinâmicas de poder e não mais como resultado da dominação de homens sobre mulheres, estática, polarizada”. Nessa perspectiva, violência de gênero não pode ser definida como uma relação de dominação do homem sobre a mulher. A situação de violência conjugal, por exemplo, encerra uma relação de poder muito mais complexa e dinâmica do que a descrita pelo viés da dominação patriarcal (SANTOS, IZUMINO, 2005).

Nota-se ainda que, na espécie, o legislador não ampliou o alcance da tutela para a proteção de transexuais e travestis. Ao citar o termo “gênero” no dispositivo legal, o legislador culmina por ser omisso quanto ao seu real significado, dando margem a discursos pautados no conceito biológico, um conceito limitado cujo objetivo é definir o gênero de uma pessoa a partir do sexo designado ao nascer. Dessa maneira, é necessária uma análise mais profunda acerca dos conceitos de sexo e de gênero, bem como o grau de reflexo de padrões cisgênero7 e heteronormativo8 nesse dispositivo legal, de modo a concluirmos pela imprescindibilidade de uma reforma quanto ao tratamento de travestis e transexuais no Direito por uma via não binária na contramão do patriarcado e das suas ressonâncias.

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