• Nenhum resultado encontrado

O contemporâneo filósofo esloveno Slajov Zizek traz uma construção teórica do conceito violência que articula conhecimentos sobre a dimensão subjetiva e objetiva desse fenômeno, passando necessariamente pela compreensão da constituição da sociedade capitalista.

A violência, em seu estado mais visível, se manifesta em diversas situações no âmbito coletivo e individual. No contexto brasileiro pode ser observada por meio das guerras entre grupos de traficantes ou de guangues nas disputas por territórios, nas brigas entre torcidas adversárias, no bullying na escola, na violência contra mulheres, crianças, idosos, negros, homossexuais. São assim, situações que se destacam nas mídias e são matéria de preocupação da sociedade em geral e dos formuladores de políticas públicas.

Zizek (2014) nos convida a ver além da violência diretamente visível, cujos agentes são prontamente identificáveis, ou seja, a violência subjetiva, para perceber uma violência subjacente, a violência objetiva, advertindo-nos que a violência subjetiva é apenas a parte mais visível. Para Zizek a violência objetiva, resultante do sistema capitalista perde em visibilidade para a violência subjetiva que aparece no cotidiano nas relações interpessoais e grupais. Todavia essa última seria o resultado da sociabilidade humana alicerçada nas relações conflitantes de classe, que são decorrentes da violência sistêmica (objetiva).

Nas letras do autor,

a violência subjetiva é experimentada enquanto tal contra o pano de fundo de um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas “normal” e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente aquela inerente a esse estado “normal” de coisas. A violência objetiva é uma violência invisível, uma vez que é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como subjetivamente violento (ZIZEK, 2014, p.17).

Assim, Zizek apresenta em sua teoria dois tipos de violência: a violência subjetiva e a violência objetiva. Sendo que a violência objetiva se desdobra ainda em violência sistêmica e violência simbólica. Segundo o autor, a violência simbólica se manifesta pela linguagem e pelo discurso de modo a fixar certo universo de sentidos e a violência sistêmica, por sua vez, está relacionada com as conseqüências do modo de funcionamento de nosso sistema econômico e político, isto é, o capitalismo.

O capitalismo, sistema econômico e político mais difundido nas sociedades ocidentais, institui um tipo de sociabilidade que produz a mercantilização das relações sociais, operando assim uma violência sistêmica, desencadeando assim uma sociedade dividida em classes sociais, com os detentores dos meios de produção de um lado e aqueles que possuem apenas a força de trabalho do outro, como bem interpretam Guerra e colegas (2015).

Para compreendermos melhor o que seria essa divisão da sociedade em classes sociais e como o sistema capitalista se constituiu e se consolidou em nossa sociedade, será importante fazermos uma breve referência à teoria marxista do materialismo histórico. Para Karl Marx as transformações no âmbito econômico, social e individual são fruto da atividade do homem no mundo, ou melhor, de seu trabalho. Deste modo, tudo foi e é construído através das gerações ao longo do tempo. E assim o mundo é histórico e o trabalho é o alicerce essencial dessa história do homem. O modo de produção, ou seja, a forma como o trabalho do homem é referenciado na organização social é o ponto central do materialismo histórico. Assim, a evolução social foi compreendida por Marx como um decurso coordenado de modos de produção (MARX; ENGELS, 1984).

Entretanto a partir da instituição da sociedade capitalista, o capitalista passa a ter a propriedade dos meios de produção e o trabalhador, separado dos meios de produção, exerce o trabalho assalariado, formando assim as duas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado (trabalhadores), conforme explica Marx. Nessa direção, o trabalho que é a

atividade produtora do homem, de sua vida e de sua história, torna-se ao mesmo tempo o trabalho alienado, que subordina o próprio homem a partir de relações de produção desiguais e excludentes (MARX, 1980).

O fetichismo da mercadoria é um instrumento importante na perspectiva capitalista, na medida encobre o fato de que seu valor no mercado diz respeito à quantidade de trabalho necessária para ser produzida, esconde a expropriação de trabalho excedente, imprescindível para formar o capital, conforme analisa Melo (2016). Deste modo, o trabalho torna-se concomitantemente práxis de criação e de dominação, fonte de riqueza e também de dominação e exploração e para Marx essa contradição só se resolveria a partir da revolução, na qual a classe trabalhadora é o sujeito da transformação social (Marx, 1980), como “práxis emancipatória” originária do trabalho. (MELO, 2016)

Deste modo, podemos compreender a questão social, ou seja, o problema da desigualdade e da exclusão social da parcela mais vulnerável da população no acesso a bens e direitos (saúde, educação, habitação, emprego, relações livres de violência), como expressão da contradição entre o capital e o trabalho. Podemos dizer ainda que a pobreza é de modo incontestável uma expressão direta da violência objetiva, sistêmica e estrutural em nossa sociedade. Na visão de Silva (2014) para compreender a pobreza é necessário compreender a dimensão histórica e social de constituição do aparelho capitalista, no qual riqueza e miséria se constituem faces de um mesmo sistema econômico e político, que legitima as desigualdades.

Na análise realizada por Boaventura de Souza Santos,

Somos herdeiros das promessas da Modernidade e, muito embora as promessas tenham sido auspiciosas e grandiloqüentes (igualdade, liberdade e fraternidade), temos acumulado um espólio de dívidas. Cada vez e de forma mais insidiosa, temos convivido no interior de Estados democráticos, clivados por sociedades fascizantes em que os índices de desenvolvimento são acompanhados por indicadores gritantes de desigualdade, exclusão social e degradação ecológica (SANTOS, 2011, p. 6)

Aquela contradição entre o capital e o trabalho denuncia os antagonismos da sociabilidade vigente, obrigando o Estado a organizar respostas diante das demandas colocadas. Entretanto, como bem analisa Guerra e colegas (2015) a questão social é objeto de preocupação do Estado capitalista visando à manutenção da estrutura econômica, da ordem vigente. A assistencialização da pobreza é uma estratégia do Estado para responder ao problema da

desigualdade econômica de modo a atenuar suas conseqüências e manter o disciplinamento dos pobres.

Essa análise parece ser compartilhada por Maria Carmelita Yazbek, para quem a pobreza é

produto dessas relações que, em nossa sociedade, a produzem e reproduzem, quer no plano socioeconômico, quer nos planos político e cultural, constituindo múltiplos mecanismos que “fixam” os pobres em seu lugar na sociedade (...) é uma categoria multidimensional, e, portanto, não se expressa apenas pela carência de bens materiais, mas é categoria política que se traduz pela carência de direitos, de oportunidades, de informações, de possibilidade e de esperanças (YAZBEK, 2010, p.153).

E é justamente essa a análise crítica feita por Zizek (2014) ao definir a violência sistêmica como aquela relacionada aos esquemas explícitos e sutis de coerção que mantêm as relações de dominação e exploração, que por sua vez, sustentam o sistema econômico e político, inclusive a ameaça de violência. Assim, Zizek esclarece que a violência sistêmica – expressão da violência objetiva que é ancorada no capitalismo e imanente ao estado normal das coisas e por isso geralmente não percebida – sustenta as relações de dominação e exploração, uma vez que está instalada no próprio funcionamento da sociedade capitalista, é invisível e pode utilizar o poder político, econômico e midiático para se manter. O autor também aponta que a violência simbólica, que se realiza por meio da imposição de dado universo de sentido na linguagem e, portanto na cultura, mantém uma relação de recíproca sustentação com a violência sistêmica.

Há, na visão de Zizek (2014), deliberadamente um foco social na violência física e direta (violência exercida por agentes sociais, indivíduos maléficos, multidões fanáticas, terrorismo, assassinatos em massa) e na violência ideológica (racismo, homofobia, discriminação). Isso faz com que haja um desesperado apelo de SOS humanitário para enfrentar a violência, que deixa escapar a atenção sobre a necessidade de analisar a interação complexa dos três modos de violência: subjetiva, objetiva e simbólica.

Por isso, o referido filósofo chama a atenção para duas questões importantes: o cuidado de não sermos seduzidos pelo conceito de tolerância, que seria para ele uma espécie de violência na medida em que enaltece a violência invisível; e a importância de não sermos capturados pelo falso sentimento de urgência frente à violência, presente no discurso humanitário da esquerda liberal, que nos convoca para um agir imediato, um sentimento de que não há tempo para refletir. Zizek (2014) nos alerta que quando somos alarmados pelas imagens midiáticas

da violência, deveríamos seguir o conselho de Lenin (quando construía sua teorização sobre o socialismo): estudar, estudar e estudar as suas causas.

Mandela (2002) mostra sua esperança afirmando que embora nenhum país, cidade ou comunidade esteja imune à violência, não estão também impotentes diante dela. Pois, na sua forma de ver, a violência prospera na ausência da democracia, de um bom governo e do respeito pelos direitos humanos e os arquétipos da violência são mais disseminados nas sociedades cujas autoridades apóiam o uso da violência por meio de suas próprias ações. Mandela afirma que, a partir dessa análise e autocrítica, a violência pode ser evitada e as culturas violentas podem ser modificadas.