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3. SUPERAÇÃO: PROCESSOS INCESSANTES E PAULATINOS DE LIBERDADE E DE

3.2 Vulnerabilidades em sentido integral: o acesso aos direitos e oportunidades sociais como potencializador de

No âmbito regulatório da política de assistência social,

“as situações de risco pessoal e social, por violação de direitos, se expressam na iminência ou ocorrência de eventos como: violência intrafamiliar física e psicológica, abandono, negligência, abuso e exploração sexual, situação de rua, ato infracional, trabalho infantil, afastamento do convívio familiar e comunitário, idosos em situação de dependência e pessoas com deficiência com agravos decorrentes de isolamento social, dentre outros” (BRASIL, 2011b, p.14).

Risco social é definido no Caderno de Orientações Técnicas do CREAS como a probabilidade de um evento ocorrer ao longo da vida de um indivíduo ou grupo, sendo assim uma condição que pode atingir a qualquer pessoa. Entretanto, conforme Sposati (2009) a vivência de vulnerabilidades sociais podem impactar na maior ou menor probabilidade de ocorrência dos

riscos pessoais e sociais e na capacidade de reunir recursos para preveni-los e enfrentá-los. Conforme a PNAS a vulnerabilidade social é concebida como a ocorrência de situações que levam famílias e indivíduos a vivenciar “processos de exclusão social pela pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso a serviços públicos) e ou fragilização dos vínculos afetivos, relacionais e de pertencimento social, discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiência, dentre outras” (BRASIL, 2005).

Janczura (2012) alerta que muitas vezes há confusão entre os termos risco e vulnerabilidade social, que acabam sendo apresentados como sinônimos. Nesse sentido a autora faz uma crítica ao modo como esses conceitos são apresentados na Política Nacional de Assistência Social (Brasil, 2005), uma vez que esse documento não trás uma definição clara dos termos e por vezes não faz qualquer diferenciação entre os mesmos.

Embora não sejam sinônimos, vulnerabilidades e riscos são conceitos intrinsecamente relacionados. Nascimento (2010) explica que o risco tem a ver com a probabilidade anunciada de acontecimento de prejuízos, danos e perdas decorrentes de uma situação perigosa. Para Carneiro e Veiga (2004) a vulnerabilidade, por sua vez, tem a ver com exposição a riscos e baixa capacidade material, simbólica e comportamental de indivíduos e grupos para lidar e superar as dificuldades e crises que enfrentam.

Schumann (2014) afirma que vulnerabilidade é um conceito multidimensional, utilizado indiscriminadamente por diversos setores e disciplinas e por vezes associado a outros conceitos também polissêmicos como desigualdade, pobreza e violência. Segundo a pesquisadora, uma parte dos pesquisadores relaciona o conceito de vulnerabilidade exclusivamente à idéia de risco e há outros pesquisadores que associam a vulnerabilidade com a realidade social e situação de ameaça específica e ainda acrescentam as dimensões da capacidade e da resiliência. Assim, vulnerabilidade é um conceito guarda-chuva que congrega as populações e o ambiente (SCHUMANN, 2014).

O conceito de vulnerabilidade foi desenvolvido a partir de 1930 pelo grupo de pesquisa de L. B. Murphy que o definiu como a “susceptibilidade à deterioração do funcionamento diante de estresse” e perceberam por meio das pesquisas as conexões complexas entre as situações de vulnerabilidade, o ambiente, as forças individuais e a presença ou ausência de suporte social (YUNES e SZYMANSKI, 2001).

Chambers (1989) apresenta uma definição substancial e elucidativa do conceito de vulnerabilidade, que é amplamente utilizada na literatura pelos pesquisadores do tema, na qual pontua três características que a definem: a) a exposição do indivíduo/família a contingências e estresse, b) a capacidade e/ou dificuldade para lidar com a situação, e c) os danos e perdas que podem ser causados pelas contingências vivenciadas.

Schumann (2014) apresenta a metodologia de Análise de Capacidades e Vulnerabilidades, proposta por Anderson e Woodrow em 1989, elaborada no Projeto Internacional de Desenvolvimento e Assistência de Havard. Essa metodologia partia do pressuposto de que as pessoas possuem capacidades e vulnerabilidades que influenciam o modo como respondem aos momentos de crise. Assim, no entendimento dos autores citados e referendados por Schumann as capacidades podem ser recursos materiais, sociais, crenças e atitudes e retratam as forças e habilidades do sujeito para superar as crises.

Cutter, citado por Shcumann (2014) organiza a vulnerabilidade em três áreas temáticas. Primeiro, a vulnerabilidade como exposição ao risco ou perigo, que considera as condições que tornaram as pessoas ou lugares vulneráveis e o grau de perda decorrente. Segundo, a vulnerabilidade como resposta social, de resistência ao risco. E terceiro, a vulnerabilidade como a relação entre exposições potenciais e resiliência social em particulares lugares e regiões. Essa perspectiva contribui para uma visão mais sistêmica da interação entre os seres humanos e o ambiente.

O conceito de resiliência foi abordado e desenvolvido nos campos da física, da ecologia e da psicologia. Os estudos iniciais sobre a resiliência no campo das ciências humanas se deram na década de 1980 nos Estados Unidos, que a definiram como “a capacidade de um indivíduo resistir aos embates mais duros da vida. Em outras palavras, diz respeito ao conjunto de fatores que fazem com que um indivíduo consiga sair-se bem depois de uma ou várias experiências catastróficas” (FRANÇA et al, 2002, p. 38).

A resiliência diz respeito a capacidade de superar adversidades (UNGAR, 2011). Inicialmente, as pesquisas em torno da resiliência apresentavam uma tendência de relacioná-la a aspectos genéticos e inatos do indivíduo, como se fosse uma marca biológica ou traço da personalidade (LIBÓRIO e UNGAR, 2010). Entretanto, o avanço nos estudos, principalmente

no campo da psicologia, tem demonstrado que o desenvolvimento da resilência, seja num indivíduo ou numa comunidade, depende do acesso aos recursos disponíveis. Esses recursos podem advir de apoios informais, como os que se apresenta nas relações intimas com a família, amigos e comunidade ou de serviços de apoio formais, como os cuidados em saúde, a educação e serviços voltados para a promoção do bem-estar (UNGAR, 2011).

Trazer o conceito de resiliência herdado das ciências naturais para o campo das ciências humanas, em especial a psicologia, requer segundo Goldstein (2012) relacionar aspectos como a vulnerabilidade psicossocial, as especificidades culturais, os aparelhos de ajuda, o reconhecimento dos problemas para seu enfrentamento, o fomento de potenciais subjetivos e objetivos e as mudanças em curso ao longo do tempo. No entanto, a autora também argumenta que o conceito de resiliência permite uma visão do indivíduo não apenas como vítima, mas como capaz de lidar com situações difíceis e de aprender e se desenvolver a partir delas.

Nesse sentido, nas ciências humanas, a resiliência pode ser compreendida de modo abrangente como a capacidade dos indivíduos e coletivos (ou de modo mais integrado, os sistemas) têm de operar processos de superações em diferentes momentos de adversidades experimentados na vida, numa perspectiva de aprendizado constante e desenvolvimento de novas estratégias de enfrentamento. Entretanto, o desenvolvimento e ampliação das capacidades do sujeito não é um exercício individual e subjetivo isolado do mundo. É situado num mundo de intersubjetividades, no encontro com situações limitantes ou potencializadoras que o sujeito se constrói e desenvolve caminhos de superação. E é nessa perspectiva, no campo das ciências humanas, que o conceito de resiliência dialoga com os estudos que abordam a vulnerabilidade, envolvendo condições de risco, instrumentos de apoio, enfretamento das adversidades, mobilização de potenciais, entre outros.

Miller et al (2010) adverte que embora os conceitos de resiliência e de vulnerabilidade advenham de tradições científicas e construções teóricas distintas que impediram durante muito tempo a interação entre os dois conceitos, é relevante reconhecer a complementaridade entre eles para uma compreensão mais integrada dos sistemas humano, ecológico ou social e de sua capacidade de respostas ao estresse e perturbações. Nesse sentido, a literatura compartilha uma visão de vulnerabilidade não restrita ao resultado direto de uma perturbação ou estresse, mas como condição que integra aspectos de exposição, susceptibilidade e

capacidade de enfrentamento, transversalizada por processos dinâmicos e históricos como a economia política, as relações de poder e os direitos diferenciais (MILLER et al., 2010).

Vieira e Mendes (2011) localizam o emprego inicial do conceito de vulnerabilidade no campo dos Direitos Humanos, na área da advocacia internacional pelos Direitos Universais do Homem, que concebe como vulneráveis os indivíduos e grupos fragilizados no âmbito político ou jurídico nos aspectos de promoção, proteção ou garantia de seus direitos de cidadania. Nesse sentido, a redução e até eliminação das vulnerabilidades vivenciadas por determinados grupos sociais depende da transição “de uma noção de carências sociais para o terreno de direitos sociais” (OLIVEIRA, 1995, p.18).

Nessa direção que Amartya Sen desenvolveu a sua teoria do desenvolvimento, esclarecendo que a insegurança alimentar não era fruto exclusivo dos problemas na produção de alimentos, uma vez que está relacionada com outros fatores como as guerras, a desigualdade social e a falta de garantia de direitos fundamentais pelo Estado. Nas palavras do autor: o que as pessoas conseguem realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras, como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de capacidades. (SEN, 2010, p. 18)

Moser (1998) aponta a relevância dos ativos das famílias, que podem ser materiais ou simbólicos e influenciam diretamente em seu nível de vulnerabilidade social e sua capacidade de resposta aos riscos. Segundo a autora, o grau de vulnerabilidade social de um sujeito ou grupo deve ser avaliado a partir da consideração dos ativos, da estrutura de oportunidades (dadas pelo Estado, mercado ou sociedade) e das estratégias de respostas, por meio do manejo dos ativos.

Assim, em resumo a concepção de vulnerabilidade se assenta na intercessão entre riscos, ativos e capacidade de resposta do sujeito; sendo os ativos recursos tangíveis e intangíveis (financeiros, sociais, físicos, subjetivos, etc.) e a capacidade de resposta a combinação entre os ativos disponíveis e as estratégias dos indivíduos, famílias e comunidades para acessar e fazer uso dos ativos (BRONZO, 2012).

O não acesso ou acesso precário a renda e aos direitos sociais de saúde, educação, assistência, segurança, dentre outros, tendem a deixar os indivíduos e grupos que experimentam tal

situação, mais susceptíveis a crises e adversidades. A condição de incertezas e inseguranças devida à desigualdade e injustiça social, limita e dificulta o acesso dos sujeitos aos meios de superação de danos e riscos. Os meios de superação combinam assim recursos concretos (renda, acesso a saúde, educação, etc) e recursos não palpáveis, que se dão pelo desenvolvimento pessoal e coletivo de autonomia, resiliência e liberdade.

Para fazer frente às condições de vulnerabilidade, é necessário alterar tanto as condições objetivas quanto as subjetivas, atuar tanto no âmbito externo quanto no âmbito das crenças, valores e atitudes, de modo a proporcionar alterações nas capacidades dos indivíduos e famílias; em suma, no seu “empoderamento”. A noção de empoderamento articula-se com a perspectiva da vulnerabilidade, uma vez que a redução desta implica, de alguma forma, a expansão da base de ativos e o fortalecimento da capacidade de resposta, da ampliação da capacidade de fazer escolhas e de transformar escolhas em atos e resultados (BRONZO e PRATES, 2012, p.111).

Nesse sentido, o olhar para o sujeito e para suas vulnerabilidades requer uma visão integrada que considere suas múltiplas determinações e também as capacidades e potencialidades que dispõe e que pode desenvolver. Assim, vulnerabilidade e resiliência são as duas faces do mesmo processo de enfrentamento e superação das situações de adversidades e que se manifestam no cotidiano de vida das pessoas. Isso exige uma atuação das políticas sociais e serviços capacitantes o mais próxima possível do cotidiano de vida dos sujeitos em situação de vulnerabilidades.