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3. São Paulo Faz Escola: disciplina Geografia e material didático

3.3. Estrutura do Caderno do Professor e do Aluno

3.3.1 Visão dos Cadernos sobre o Professor

Pretende-se entender o papel do docente nos Cadernos do SPFE, partindo daquilo que está prescrito no material. Inicia-se lembrando que a SEE-SP não abriu um debate público durante a elaboração da Proposta SPFE, sendo a seleção e organização do conhecimento geográfico oficial do currículo legitimados apenas por um grupo de professores acadêmicos, que foram convidados pela SEE-SP, revelando “algo extremamente importante sobre quem tem o poder na sociedade” (APPLE, 1999, p.53). Apesar dos teorizadores dos Cadernos terem produções acadêmicas, nenhum deles têm ou tiveram experiências como docente na rede estadual pública.

Durante o texto da “Orientação sobre os conteúdos do Caderno”, os teorizadores rapidamente esclarecem que os professores possuem autonomia ao lidarem com as “Situações de Aprendizagem” no seu cotidiano:

Tendo em vista que a população brasileira é o eixo condutor deste Caderno, cabe reconhecer que a gama de conteúdos e temas relacionados é abrangente, o que nos exigiu fazer recortes ou selecioná-los para o trabalho em sala de aula. Isso, contudo, não exclui sua participação ativa em rever o que foi sugerido, ampliando ou remanejando conteúdos de acordo com o que julga ser essencial ou interessante, levando em conta a especificidade de seus alunos. Isso implica, portanto, que as abordagens e os recortes aqui propostos merecem ser acompanhados e diversificados com as estratégias didáticas que utiliza para disseminar entendimento aos seus alunos sobre a população brasileira. Em outras palavras, de nossa parte a expectativa é a de

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que possamos realizar um trabalho a “quatro mãos”, contando com a sua colaboração (Caderno do Professor, 2009, 2° ano, vol. 3, p.08).

Contudo, como exposto anteriormente, a estrutura do Caderno obedece a uma ordem sequencial de conteúdo e atividades, semelhante à lógica de um ensino apostilado, impossibilitando que o professor reordene o assunto segundo a realidade dos seus alunos. É necessário lembrar-se de outra prerrogativa presente em tais materiais, uma vez que ao final do ano letivo a SEE-SP submete os alunos a uma avaliação externa (SARESP) sobre os conteúdos presentes nos materiais, cujo desempenho está vinculado ao bônus salarial do professor.

Assim a “Situação de Aprendizagem” possui uma estrutura textual que se assemelha a um manual de instrução, já que o “passo a passo” das ações do professor é sequenciado:

Em um primeiro momento, com base nestes gráficos, explique que os recenseamentos da população brasileira elaborados pelos IBGE, com exceção do realizado em 1970, sempre fizeram o levantamento da população segundo a cor dos indivíduos. No entanto, deixe claro que esses dados merecem uma análise mais crítica, entre outras razões, em virtude: [...] Por último, pondere com os alunos que os dados de 2006 mostram a consolidação de um movimento, ou seja, sinalizam que mais pessoas em nosso país estão assumindo sua cor de pele, abrindo mão, assim, de uma ideologia de fundo racista que as fazia desvalorizar sua cor. Proponha aos alunos que levantem hipóteses sobre os motivos que levam a isso. Destaque que nos últimos anos vem ocorrendo o fortalecimento do movimento negro e uma transformação positiva da imagem pública das pessoas desse grupo no seio de nossa sociedade (Caderno do Professor, 2° ano, vol. 3, p.22-23, grifo nosso).

No excerto acima, a forma textual da “Situação de Aprendizagem” não é uma sugestão de atividades para o professor, visto que os verbos estão no imperativo, conduzindo toda a prática de trabalho do docente. Segundo Valles (2012), as “Situações de Aprendizagem” modelam os conteúdos e os métodos da disciplina, “determinando ‘como aprender’ além de modelarem os professores determinando ‘como fazer’, configurando um tipo de profissionalização que exclui o saber docente” (VALLES, 2012, p. 38).

As unidades escolares são parte do sistema de ensino estadual, sendo submetidas a normas e diretrizes dos órgãos superiores, no caso a LDB 9.394/96. Assim como existem limites legais impostos ao trabalho do professor, na LDB 9.394/96, também é garantida uma autonomia relativa na condução do trabalho docente, como a realização do plano de aula e da proposta pedagógica da unidade escolar:

Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de:

I - participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

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II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

III - zelar pela aprendizagem dos alunos;

IV - estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;

V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional;

VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.

As restrições impostas às ações pedagógicas dos professores interferirão na proposta pedagógica da unidade escolar que, por sua vez, está subordinada às prescrições do Programa São Paulo Faz Escola. Isso porque o Caderno do Professor, além de impor o conhecimento escolar, também dita as ações do docente na sua prática cotidiana, colocando ‘o que fazer e como fazer’ e interferindo em todo o sistema de ensino da unidade escolar.

Observa-se o quanto o trabalho docente é desprestigiado na rede estadual paulista a partir da implantação dos Cadernos nas escolas, revelando a visão que a SEE-SP tem sobre os professores paulistas, isto é, que eles são pessoas despreparados para exercer seu trabalho.

Entretanto, a inabilidade do professor em preparar o seu próprio trabalho pode ser sim uma situação real, muitas vezes ocasionada pelo acúmulo de jornada docente, como forma de complementação salarial. Tal realidade faz com que o professor não tenha um tempo adequado para planejar o seu trabalho e nem para continuar os seus estudos. Destarte essa situação corresponde a uma precarização do trabalho docente, cuja melhoria se restringe a aplicação de mais uma tecnologia em sala de aula. A SEE-SP desconsidera a possibilidade de promover melhores condições de trabalho, a partir do pagamento de um salário mais justo para o docente, assim como menor carga horária em sala de aula e mais tempo de planejamento das aulas.

Cabe aqui resgatar a ideia desenvolvida por Boim (2010, p.30) acerca dos Cadernos do Professor e do Aluno, que “exercem uma pressão modeladora da prática curricular” sobre os professores da rede estadual paulista, ao mostrar “o que e como ensinar” e “não cabe ao professor pensar o seu trabalho”.

Quando o docente se propõe a não utilizar os Cadernos, apostando na autonomia da sua profissão, possui uma tarefa laboriosa de traçar um planejamento anual sobre as expectativas propostas nos materiais SPFE. No primeiro ano de contato com o material, as dificuldades geralmente eram maiores, visto que, os professores só puderam selecionar os

107 conteúdos que lecionariam após a vinda dos Cadernos à escola, que ocorreu somente no início de cada bimestre do ano letivo.

É importante resgatar a questão do paradigma educacional presente na “comunidade aprendente” do currículo SPFE, que tem como base de desenvolvimento a escola que “aprende a ensinar”. Ressalta-se, porém, que na “Situação de Aprendizagem” ocorre uma contradição no processo de planejamento da SEE-SP, pois ao entregar aos professores planos de aulas enrijecidos, torna o trabalho docente subserviente ao currículo e a SEE-SP.

Em suma, a SEE-SP apresenta o Programa SPFE como algo que irá modernizará a educação pública paulista, no entanto, entende-se que os Cadernos são centralizadores e tiram a autonomia do docente, explicitando o quanto o currículo paulista é conservador.