• Nenhum resultado encontrado

A visão jurídica dos juros: definição, natureza jurídica e classificação

1 JUROS

1.2 A visão jurídica dos juros: definição, natureza jurídica e classificação

Diante da inexistência de um diploma jurídico que decline seu conceito, não há uma definição normativa acerca do que se constituem os juros. Normalmente expressado no plural, o verbete “juro”, segundo os dicionários etimológicos, decorre de uma adaptação da expressão latina jure, associada a jus, juris, isto é, está relacionado a „o que é de direito‟ (CUNHA, 1986; MACHADO, 1987).

32 A conversibilidade do dólar em ouro foi uma das condições firmadas no Acordo de Bretton Woods para que a moeda americana fosse adotada como moeda internacional. Por isso, a quebra desse compromisso central pelo governo americano acabou jogando por terra boa parte da principiologia de Bretton Woods.

Nesse contexto, Plácido e Silva (2009, p. 902) afirma que o verbete, embora originariamente empregado na mesma acepção de „direito‟, com o tempo ganhou significado particular:

Aplicação notadamente plural, juros quer exprimir propriamente os interesses ou lucros que a pessoa tira da inversão de seus capitais ou dinheiros, ou que recebe do devedor como paga ou compensação, pela demora do pagamento que lhe é devido.

Tendo em vista que sua disciplina tem como sede principal o Código Civil, é na lição dos civilistas que se encontram as colaborações mais consistentes na busca dos contornos definidores do instituto dos juros. Recorrendo ao magistério de autores estrangeiros, Serpa Lopes (1961, p. 83) aduz que se trata de “compensação ministrada pelo devedor ao credor em razão do uso de uma quantidade de coisas fungíveis”. Partindo da premissa de que, em nosso ordenamento civil, a cobrança de juros sempre esteve associada às obrigações em geral, e não apenas às obrigações em dinheiro, Pereira (1998, p. 86) os concebe como “as coisas fungíveis que o devedor paga ao credor, pela utilização de coisas da mesma espécie a este devidas”. Trilhando o mesmo caminho, Venosa (2009, p. 157), embora conceitue os juros como “a remuneração que o credor pode exigir do devedor por se privar de uma quantia em dinheiro”, faz importante ressalva:

Os juros são precipuamente em dinheiro e em retribuição de uma quantia em dinheiro, embora nada impeça a entrega de juros em espécie das obrigações

fungíveis que tenham por objeto outras coisas que não o dinheiro – os juros retribuem o capital paulatinamente, dependendo do prazo de duração da obrigação.

A prática das relações comerciais – que revela a maior frequência de cobrança de juros nas dívidas em dinheiro – parece ter influenciado a maioria dos outros civilistas, a ponto de levá-los a exprimir sua definição em função apenas das obrigações pecuniárias. É comum, assim, ver a definição de juros ser apresentada como os rendimentos do capital (MONTEIRO, 1999; GONÇALVES, 2007), diretamente associada à ideia de frutos produzidos pelo dinheiro (MONTEIRO, 1999) ou de pagamento pela utilização do capital alheio (GONÇALVES, 2007). Nessa perspectiva, os juros são comumente definidos como sendo o preço do uso do capital (RODRIGUES, 1993). Em vista de suas peculiaridades, os

juros, para Serpa Lopes (1961, p. 82), diferenciam-se de outras prestações pecuniárias, como os aluguéis, foros, dividendos e quotas de amortização:

a) Dos aluguéis, porque estes representam o uso de uma coisa específica; b) dos foros, atento, [por] constituírem [os foros] o correspectivo de uma coisa infungível, na Enfiteuse; c) dos dividendos, que formam a quota variável dos lucros líquidos numa sociedade; d) da quota de amortização, que consiste na restituição do capital ao lado do pagamento dos juros.

A visão de juros como preço encontra ressonância na lição dos autores que se dedicam ao estudo mais específico acerca do tema, quer sob a ótica do Direito Civil, quer sob a ótica do Direito Econômico. Prevalece, também na literatura especializada, a noção de juros enquanto preço da moeda no tempo (OLIVEIRA, 2009; SADDI, 2007), isto é, “a renda devida pelo mutuário ao mutuante em função do prazo do mútuo” (BAPTISTA, 2008, p. 17), constituindo, assim, os proventos ou recompensas que se extraem do capital, com base na legislação ou em um negócio jurídico (FIGUEIREDO, 2009).

Da noção de juros enquanto o preço pago pelo mútuo decorre a sua natureza acessória e, naturalmente, facultativa em relação ao mútuo. Isso porque, se os juros são considerados como a contrapartida à concessão de um mútuo, não possuem existência autônoma e seu montante não nasce integralmente no momento da contratação, mas, sim, gradativamente, na proporção do tempo da privação do gozo do capital pelo credor (SERPA LOPES, 1961). Sua existência ou a possibilidade de sua estipulação pressupõe, portanto, a de uma obrigação de mútuo (PEREIRA, 1998). Como bem afirma Oliveira (2009, p. 364), “o conceito jurídico de juros exige que exista uma relação jurídica concreta, da qual flua, para uma ou mais partes, a pretensão de exigir de outra, ou outras, o preço do dinheiro”.

Assim sendo, a teor do art. 92 do Código Civil,33 a prestação de juros, em nosso ordenamento, constitui obrigação acessória, e, nesse sentido, os juros constituem os frutos civis do capital34 emprestado. São considerados como civis porque não decorrem naturalmente da obrigação principal – já que é perfeitamente possível em nosso sistema

o empréstimo gratuito, sem juros –, mas, sim, de um especial motivo jurídico

33 “Art. 92. Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório, aquele cuja existência supõe a do principal.”

34 Vale destacar que a noção de capital aqui empregada contempla toda e qualquer forma de sua manifestação, não se restringindo apenas a dinheiro.

(SERPA LOPES, 1961), que pode ter sede legal ou convencional. São, portanto, uma utilidade que a moeda produz periodicamente, sem desfalque de sua substância, como resultado de uma relação abstrata de direito, e não de uma vinculação material com a coisa principal (OLIVEIRA, 2009). Não obstante, quando considerados em si mesmos, os juros têm natureza jurídica de bens móveis, fungíveis, consumíveis, divisíveis e singulares.

De sua conceituação como acessório decorre uma série de efeitos previstos no ordenamento, a começar pela própria juridicidade de sua cobrança: nos termos do art. 184 do Código Civil,35 sua exigibilidade pressupõe a validade do negócio jurídico principal, mas a invalidade de eventual cobrança de juros não compromete a higidez da obrigação de mútuo da qual decorre. A relação de acessoriedade impõe, ainda, que eventual cessão do crédito, em regra, abrangerá também a dos juros vencidos.36

Entre outros tantos efeitos, há que se destacar que, na ausência de expressa estipulação, as causas de extinção da obrigação principal atingem a parcela acessória dos juros, mas o contrário não ocorre: a prescrição da obrigação principal fulmina a exigibilidade dos juros, mas a prescrição da parcela de juros – que, nos termos do art. 206, § 3º, III, do Código Civil, ocorre em três anos37 – em nada macula a incolumidade da principal; a quitação do capital ou a novação sem ressalva específica importa a extinção da obrigação de pagar juros, a teor dos artigos 32338 e 36439 do Código Civil, mas a extinção do acessório não fulmina a obrigação de mútuo da qual se originou.

O fato de serem considerados como acessórios, entretanto, não significa que os juros, em dado momento, não se possam destacar da obrigação de mútuo de que decorrem, a ponto de se poder exigi-los independentemente de tal obrigação. Contudo, mesmo quando exigida separadamente, a prestação de juros não perde seu caráter acessório, a menos que isso seja convencionado pelas partes, uma vez que sua validade e sua existência jurídica,

35 “Art. 184. Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal.”

36 “Art. 287. Salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito abrangem-se todos os seus acessórios.” 37“Art. 206. Prescreve: [...] § 3º Em três anos: [...] III – a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não maiores de um ano, com capitalização ou sem ela.”

38 “Art. 323. Sendo a quitação do capital sem reserva dos juros, estes presumem-se pagos.”

39 “Art. 364. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário. Não aproveitará, contudo, ao credor ressalvar o penhor, a hipoteca ou a anticrese, se os bens dados em garantia pertencerem a terceiro que não foi parte na novação.”

pelas razões já expostas, permanecem vinculadas à da obrigação principal e originária do mútuo (PEREIRA, 1998; VENOSA, 2009).

Os juros podem ser classificados de várias formas, observando-se mais frequentemente sua classificação em razão da origem e de seu fundamento.

Quanto à origem, os juros podem ser divididos em legais ou convencionais, conforme tenha a sua estipulação previsão na lei ou no negócio jurídico firmado pelas partes. Os juros legais são aqueles que por razões de equidade, o legislador estabelece para certos e determinados casos (SERPA LOPES, 1961), ainda que a título subsidiário, situação em que somente prevalecem diante da ausência de expressa disposição legal.40 No tocante aos juros convencionais, embora sua sede normativa seja o negócio jurídico pactuado pelas partes, a lei, muitas vezes, impõe limites à liberdade das partes, fixando limites acima dos quais a convenção passa a ser suscetível de revisão judicial.

No tocante ao fundamento, os juros podem ser moratórios ou remuneratórios. São considerados moratórios os juros devidos a título de pena imposta ao devedor por atraso no cumprimento da obrigação (PEREIRA, 1998; VENOSA, 2009), podendo ser convencionais ou legais, conforme sejam fixados pelas partes ou determinados pelo legislador. A despeito de estarem normalmente associados à ideia de indenização pelo prejuízo decorrente da demora no pagamento (RODRIGUES, 1993), em alguns sistemas, como o brasileiro,41 os juros de mora são devidos independentemente da comprovação de prejuízo, estabelecendo-se, assim, uma presunção de prejuízo ao credor pelo atraso no recebimento da coisa ou quantia emprestada.

Por outro lado, os juros remuneratórios, também chamados de compensatórios ou juros-frutos, são aqueles pagos pelo devedor para compensar o credor pelo tempo em que ficou privado de seu capital. São, em regra, convencionais, ajustados que são pelas partes

conforme a espécie e a natureza do negócio jurídico por elas celebrado.42

40 Este é o caso, por exemplo, do Código Civil brasileiro, que, no art. 406, estabelece que “quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”

41 Cf. Código Civil pátrio: “Art. 407. Ainda que se não alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, uma vez que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes.”

42 Há casos, porém, em que a própria lei estabelece que sejam devidos juros compensatórios independentemente de convenção. Esse é o caso do contrato de mandato: “Art. 670. Pelas somas que devia

Resultam, portanto, de uma utilização consentida e remunerada de capital alheio (GONÇALVES, 2007).

Nesse contexto, os juros cobrados pelas instituições financeiras43 nas operações realizadas com seus clientes são comumente – e, a rigor, impropriamente44– chamados de juros bancários. À luz do que já se expôs, tais juros, por serem estipulados nos contratos que consubstanciam o negócio jurídico celebrado entre as instituições financeiras e seus clientes, podem ser inicialmente classificados como convencionais.

Em tais contratos, pactuam-se juros com duas finalidades distintas: (i) remunerar a concessão do mútuo; e (ii) compensar eventual mora ou inadimplemento do cliente devedor. Decorre daí, então, que, por “juros bancários” devem-se compreender os juros convencionais cobrados pelas instituições financeiras nas operações de crédito com seus clientes, estando nela abrangidos tanto os juros moratórios quanto os juros remuneratórios45.