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A vivência ambígua do corpo próprio é-nos manifestada pela experiência do corpo como ser sexuado: «Pois, diante do pensamento, sendo um objecto, o corpo não é

No documento A dialógica fenomenologia<>psicanálise (páginas 69-71)

ambíguo; só se torna na experiência que temos dele, em particular na experiência sexual

e pelo facto da sexualidade»

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. Ora, a psicanálise, ao mostrar a relação entre as

representações semânticas e a libido, enquanto expressão energética e psíquica da

pulsão sexual, permite reconsiderar o papel da sexualidade na formação do sentido.

Quando conseguimos superar a visão mecânica e naturalista de múltiplas explicações

psicanalíticas, compreendemos que a psicanálise, mais do que fundar o nosso

comportamento a partir das vicissitudes da libido, possibilita antes a reintegração desta

última no seio da totalidade da existência humana e do corpo como constituinte de

sentido. A sexualidade, ou o Eros da segunda tópica freudiana, transcende a sua

representação instintiva, enquanto disposição pré-formada do aparelho genital humano.

As zonas erógenas da corporeidade não estão, segundo Freud, delimitadas a regiões

específicas do corpo, na medida em que a sexualidade é, antes de mais, a expressão

psíquica da actividade pulsional do nosso corpo como um todo. Quando Freud

desenvolve a segunda tópica, o Eros absorve em si mesmo a energia sexual, o que

significa que esta última é assumida no seio mais amplo das pulsões da vida. A

sexualidade assume, deste modo, um estatuto próximo do metafísico, próxima da

oposição estabelecida por Empédocles entre ϕιλία e νειϰος, na medida em que traduz

uma instância da vida que combate constantemente o seu «adversário mortal», o

Thanatos ou «pulsão da morte»

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. Não devemos, assim, estranhar a proximidade

140MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la Perception, 1945, p. 195; tradução nossa.

141Cf. FREUD, «Civilization and its discontents», (1929) 1930b, in Standard Edition, XXI, 1961, p. 145. Freud introduziu a «pulsão da morte» em Para além do princípio do prazer, cf. FREUD, «Beyond the Pleasure Principle», 1920a, in Standard Edition, XVIII, 1955, pp. 7-64. Cf. EMPÉDOCLES, frag. 17, in

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estabelecida por Freud entre a sua concepção de sexualidade e a representação platónica

do Eros, enquanto síntese da falta e da superabundância. O desejo sexual é expressão de

uma carência, mas, simultaneamente, o seu impulso só é possível pela força atractiva do

preenchimento integral da existência. Tanto a psicanálise, como a fenomenologia

descrevem-nos a forma como a sexualidade pode ser fonte de sentido, ao transcender «a

inexaustividade da percepção e da comunicação falada»

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, na medida em que

«permanece radicalmente estranha à relação ‘intenção-utensílio-coisa’»

143

.

(v): O quinto e último ponto de contacto entre a fenomenologia e a psicanálise

realiza-se na interpretação da intersubjectividade. A constituição do sentido, para a

fenomenologia, não dispensa a intervenção do outro. Da mesma forma de que o objecto

da minha percepção é a soma ideal da totalidade dos seus «esboços» [Abschattungen],

também a objectividade do mundo resulta do acordo entre as múltiplas perspectivas

posicionadas pelos sujeitos. O próprio horizonte da minha percepção singular implica

DIELS-KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, 1951-52. Na psicanálise contemporânea, Melanie Kein desenvolveu, de forma fecunda, a temática da pulsão da morte. Neste contexto, com as respectivas implicações teórico-clínicas, cf. KLEIN, «Early stages of the Oedipus conflict», 1928b, in Contributions to Psychoanalysis, 1921-1945, 1968, pp. 202-214; Idem, «The Importance of Symbol-Formation in the Development of the Ego», 1930b, in The Writings of Melanie Klein Vol. I, 1984, pp. 219-232; Idem, «The early development of conscience in the child», in Psycho-Analysis Today, 1933, pp. 149-162; Idem, «A Contribution to the Psychogenesis of Manic-Depressive states», 1935, in Contributions to Psychoanalysis, 1921-1945, 1968, pp. 282-310; Idem, «Love, Guilt and Reparation», 1937, in Love, Hate and Reparation, pp. 57-91, republi. in The Writings of Melanie Klein Vol. I, 1984, pp. 306-343; Idem, «Mourning and its Relation to Manic-Depressive states», in Int. J. Psycho-Anal., 1940, 21, pp. 125-153, republi. in Contributions to Psychoanalysis, 1921-1945, 1968, pp. 311-338; Idem, «The Oedipus complex in the light of early anxieties», in Int. J. Psycho-Anal., 1945, 26, pp. 11-33; Idem, «Notes on some Schizoid Mechanisms», in Int. J. Psycho-Anal., 1946, 27, pp. 99-110, republi. in Developments in Psychoanalysis, 1952, pp. 292-320; Idem, «On the Theory of Anxiety and Guilt», in Int. J. Psycho-Anal., 1948, 29, pp. 114-123, republi. in The Writings of Melanie Klein Vol. III, 1984, pp. 25-42; Idem, «The mutual influences in the development of the ego and the id», in Psycho-Analytic Study Child, 1952b, 7, pp. 51-53; Idem, «Some Theoretical Conclusions Regarding the Emotional Life of the Infant», 1952c, in Developments in Psycho-Analysis, 1952, pp. 198-236, republi. in The Writings of Melanie Klein Vol. III, 1984, pp. 61-93; Idem, «On Identification», 1955b, in New Directions in Psycho-Analysis, 1955, pp. 309- 345, republi. in The Writings of Melanie Klein Vol. III, 1984, pp. 141-175; Idem, «Envy and Gratitude», 1957, in The Writings of Melanie Klein Vol. III, 1984, pp. 176-235; Idem, «Our Adult World and its Roots in Infancy», in Human Relations, 1959, 12, pp. 291-303, republi. in The Writings of Melanie Klein Vol. III, 1984, pp. 247-263; Idem, «On the Sense of Loneliness», 1960a, in The Writings of Melanie Klein Vol. III, 1984, pp. 300-313; Idem, «Some reflections on The Oresteia of Aeschylus», 1963a, in Our Adult World and Other Essays, 1980, pp. 23-54.

142RICOEUR, De l’interprétation. Essai sur Freud, 1965, p. 373; tradução nossa. 143RICOEUR, Histoire et vérité, 1955, p. 208; tradução nossa.

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que a autodoação efectiva do objecto se dê numa doação conjunta, o que pressupõe a

presença da alteridade: «É precisamente o horizonte de perceptibilidade, este reverso

invisível do visível, que reenvia ao outro. Há, entre a posição do outro como

percepcionante e a admissão deste reverso invisível das coisas, uma relação recíproca.

Todo o sentido tem finalmente dimensões intersubjectivas; toda a ‘objectividade’ é

intersubjectiva, enquanto o implícito é o que um outro pode explicitar»

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.

A intersubjectividade constitui identicamente para a psicanálise uma categoria

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