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XIX – Desmaterialização

No documento Historinhas do Herói-Menininho (páginas 100-110)

“I

cecream! Icecream!”

Eis todo o repertório estrangeiro de Joãozinho – coleção idiomática adquirida em conversação com uma priminha norte-americana.

Abusando desse volumoso léxico, o menino fazia moderado alarde no mesmo instante em que sua carinha sapeca surgia pela janela do carro.

“Icecream!”

E, quando aquela cliente bochechudinha aparecia, ele perguntava todo solícito:

“Que você gostaria, moça?”

“Quero sorvete de chocolate, com muuuuuita cobertura!” – respondia Isa.

Vivia-se essa cena com bastante frequência na garagem da casa de Joãozinho. De quando em quando, o cenário apresentava algumas variações: às vezes o carro era do Papai, e outras vezes era o da titia Zéssica. Entretanto, especialmente naquele dia, a vaga ali tinha sido ocupada clandestinamente pelo transporte da tia Rane.

Ela se apaixonara pelo heroizinho desde a hora na qual, espontaneanente, ele, o sempre

amável menino, chamara-a de tia linda. Até por causa disso, então, tia Rane deixou-lhe o veículo disponível para brincadeiras e aventuras.

Joãozinho e Isa, desse modo, repetiam venda e compra de gelados.

“Icecream! Icecream! Oi, senhorita! Que sorvete você gostaria?”

“Todos!”

“Ah! Não pode, Iiisaa! Tem que escolhê só um!”

“Então-finge-que-você-é-motorista. Eu-sou-a-passageira.” – a menina mudou assim repentinamente o enredo da aventura.

Mas o pequenino não titubeou.

“Gostaria de i aonde, moça?” – interrogou-a, como motorista profissional agora, e logo que encostou o transporte.

“Ai! Vou à casa da minha amiga. Ela precisa de ajuda pra cuidar dos filhinhos dela. Sabe!?

É urgente. Imagine que um deles só apronta, o tempo todo. E hoje, pra piorar a situação, os amiguinhos dele estão lá, de visita. E é um mais arteiro que o outro. Tem um garoto de quem às vezes mesmo eu tenho medo. Por isso estou com pressa, moço. Por favor, seja rápido. A

casa da minha amiga fica na rua...” – tagarelava a bochechudinha sem que houvesse qualquer chance de pará-la.

O heroizinho não se esquivava de problemas que lhe reclamavam competências e habilidades.

Pediu calma à passageira que prosseguia com a falação. Agarrou firme o volante com uma das mãozinhas, enquanto com a outra apertou um botãozinho no painel de controle, onde se lia:

CAMINHO CERTO.

Nem foi necessário abrir o portão. O carro desmaterializou-se aqui e materializou-se acolá, no meio do trânsito adoidado da cidade.

Andou pouco, quase nada, apenas por um minutinho, já na sua frente impunha-se um sinal vermelho.

Como todo bom motorista, sem se distrair com o falatório da passageira, o menino observava tudo o que se passava ao seu redor.

Foi aí que ele viu, a alguns metros de si, um fusquinha pronto para arrancar, mas com uma porta meio aberta. Ao volante, estava uma velhinha mirando o semáforo. Provavelmente, a mesma velhinha que bengaleava um fusquinha no primeiro capítulo deste livro.

O heroizinho previu o perigo. O leitor sabe

– presumo – o quão arriscado é deixar uma porta de carro meio aberta durante um trajeto qualquer. Um acidente sério poderia ocorrer, caso a porta se abrisse totalmente, e de supetão.

O supergrito possuía contraindicação para situações delicadas. Uma velhinha dirigindo um fusquinha de porta meio aberta era uma situação delicada.

Não havia tempo a perder. Antes que a cor vermelha do semáforo mudasse para o verde, Joãozinho tomou uma decisão; desapareceu aqui e surgiu ali, ao lado do veículo em risco; fechou aquela porta danada; reapareceu no seu próprio assento, no carro da tia Rane, e olhou sorrindo para Isa. Mágica?...

O sinal verde fez com que todos avançassem.

A velhinha e a Isa nada notaram.

Todavia, a corrida inda não terminara, e Papai já chamava as crianças pra comerem hambúrgueres, que ele mesmo fizera.

“Ah! Num quero comê!” – contestou o menino.

“Eu quero!” – aceitou a menina interrompendo de vez a aventura.

XX – “... uma vitude.”

C

erta vez, assistia ao jogo pela TV, na casa da vovó Zeí, um bocado de gente da família.

Estavam em campo Parmêra e Coringão.

Estranhamente, nesse quesito, a antiga casa do Papai ficava dividida. Vovô Vadimi e tio Barquinho torciam pelo Parmêra. Papai, um ovelha negra, desde pequeno vestia preto e branco; para ele, o verde não era bem-vindo nem num prato de comida. Joãozinho, àquela época, inda estudava as propostas e os argumentos alheios. Promessa de camisa aqui, par de chuteirazinhas ali, tudo era aceito com muito jeitinho, e de bom grado.

“Não há dúvida! O menino é Coringão!!!” – anunciava o Papai, orgulhoso que só.

“Você se engana! Ele é Parmêra!!” – gritava o vovô ao lado do tio Barquinho, que aprovava o veredito balançando a cabeça.

O menino limitava-se a um sorriso; mas um sorriso tão encantador que desmanchava a contenda em beijos e abraços. Vovô Vadimi adiantava-se nesse movimento pacifista agarrando com aqueles braços enormes os filhos e os netos enquanto dizia:

“É muita felicidade para um homem só!”

O leitor repare que eu escrevi “netos”. Claro, pois a bochechudinha também fazia parte dessa cena. Ela, entanto, defendia um time diferente em cada situação. Isso dependia de quem ladeasse a conveniência, ou de quem carecesse de agrado, de lembrança... Por exemplo, para agradar à tia Zéssica, Isa defendia o São Paulo;

para homenagear o vovô Miro – que vivia no céu com a bisa Jacinta – Mamã torcia pelo Santos, e assim por diante.

Naquele dia a menina não quis deixar o Papai em desvantagem, daí preferiu o Coringão ao Parmêra.

O jogo agitava os ânimos e, nem acabara o primeiro tempo, a confusão alcançava o supernível. Gritaria, tapas escandalosos contra peitos inflados, pequenas ofensas, mais tapas escandalosos contra peitos inflados, Papai pulando sobre o sofá – que cedeu (Xi!) – mais tapas, irritação, tapas, palavras muito e muito grandes, tapas... então, assegurando a paz, já um pouco fragilizada, uma voz fininha e imponente se estendeu pela sala, silenciando os torcedores exaltados:

“Pessoaaal!” – e, depois de um instante da cessação do tumulto, continuou:

“A paciência... é uma vitude.”

Proferindo essa máxima shakespeariana, o heroizinho, cara de quem dá bronca, levantou apenas um dedinho indicador; olhou em torno de si; certificou-se de que todos estivessem mais calmos; e voltou aos seus afazeres.

Toda aquela gente soube, naquela ocasião, que o menininho queria aceitação entre as pessoas.

““As histórias nunca param onde a gente imagina.” 11

11 DRUON, Maurice, op. cit., p. 135

No documento Historinhas do Herói-Menininho (páginas 100-110)

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