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A (Meta)Lexicografia e sua Relação com a Linguística

O estatuto de ciência da Lexicografia é incontestável no século XXI. Entretanto, esta foi idealizada, por muito tempo, como a arte ou a técnica de fazer dicionários:

desde o surgimento dos protodicionários, na fase pré-histórica da Lexicografia, com os sumérios e os egípcios (DURÃO, 2010), passando pela elaboração de listas de palavras e glossários na Antiguidade e na Idade Média, e pela aparição do dicionário moderno no Ocidente, nos séculos XV e XVI. Na segunda metade do século XX, contudo, ocorre a

“emancipação lexicográfica” (HWANG, 2010, p. 33) ou o nascimento da Teoria Lexicográfica Moderna ou Metalexicografia. A Metalexicografia ocupa-se da análise crítica de dicionários e da interação usuário-dicionário, e postula princípios e metodologias para subsidiar as reflexões em torno das obras lexicográficas.

Esse foi um momento de aproximação dos lexicógrafos com as disciplinas linguísticas, da percepção dos linguistas de que o dicionário poderia ser um livro valioso, tanto do ponto de vista metodológico, como também meio de comprovação de teorias linguísticas (AZORÍN FERNÁNDEZ, 2003), e da preocupação, também por parte de especialistas em Linguística, em produzir materiais didáticos para o ensino de LE, como dicionários de aprendizagem ou learner`s dictionaries (HAENSCH;

OMEÑACA, 2004).

Embora a década de 1950 seja considerada o marco inicial da Metalexicografia, sua origem ainda pode remontar ao século XVII, porque alguns prólogos e prefácios de dicionários daquela época, como aponta Hwang (2010), são considerados verdadeiros tratados metalexicográficos, ricos em reflexões sobre o fazer lexicográfico.

Entender a Lexicografia enquanto arte ou técnica, como oportunamente expõe Azorín Fernández (2003, p. 34, tradução nossa), “[...] nega, de entrada, seu caráter científico, fazendo-a subsidiária de outras disciplinas capazes de desenvolver seu próprio âmbito teórico-metodológico, baseado no conhecimento científico da

linguagem”7. Exemplo claro e real disso é o fato de a Lexicologia ser considerada, por muitos especialistas, Borba (2003), por exemplo, a contrapartida teórica e científica da Lexicografia.

Na Espanha, os trabalhos de Menéndez Pidal (1945) e Julio Casares (1950) deram o pontapé inicial para a “guinada lexicográfica”. Entre 1940 e 1980, houve importantes trabalhos realizados por Ščerba, na Rússia; Quemada, Robert, Dubois e Dubois, Rey-Debove, Matoré, na França; Fernández-Sevilla, Alvar Ezquerra, Hernández, Ahumada Lara, Porto Dapena, na Espanha; Malkiel, Zgusta, nos Estados Unidos; Wiegand, Haensch, Werner, Ettinger, Wolf, na Alemanha; e Lara, no México.

O congresso em Bloomington, na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, em 1960, com linguistas e lexicógrafos reunidos, marca a consolidação da Lexicografia como detentora de uma metodologia científica própria. Em 1983, essa consolidação é reafirmada, por ocasião do “Congresso Internacional de Lexicografia”, na Universidade de Exeter, na Inglaterra, e a posterior criação da Associação Europeia de Lexicografia (EURALEX).

O período compreendido entre 1940 e 1980 estabelece, dessa forma, o nascimento da Metalexicografia e lhe dá fôlego para se firmar como disciplina da Lexicografia, contribuindo notavelmente para que esta também adquirisse o status de ciência, como bem explica Azorín Fernández (2003, p. 43):

A consolidação desta [da Lexicografia] como disciplina científica não teria sido possível sem o desenvolvimento desse componente teórico ou metalexicográfico. É a existência desse quadro teórico que possibilitou a conversão do tradicional ofício de lexicógrafo em disciplina linguística (ou aplicada), deixando de ser apenas a técnica ou arte de compor dicionários (tradução nossa)8.

O estatuto de técnica ou arte, e não de ciência, da Lexicografia, deve-se, provavelmente, ao fato de que a elaboração de livros que recolhem palavras, desde milhares de anos atrás até a contemporaneidade, esteve sempre atrelada às necessidades de comunicação, portanto, com um fim prático, a saber: a) de natureza pedagógica (na educação das crianças no Egito Antigo, na valorização de textos clássicos na Grécia

7 […] niega, de entrada, su carácter científico, haciéndola subsidiaria de otras disciplinas capaces de desarrollar su propio ámbito teórico-metodológico basado en el conocimiento científico del lenguaje.

8 La consolidación de esta como disciplina científica no hubiera sido posible sin el desarrollo de ese componente teórico o metalexicográfico. Es la existencia de ese marco teórico lo que ha posibilitado la conversión del tradicional menester del lexicógrafo en disciplina lingüística (aplicada), dejando de ser solo la técnica o el arte de componer diccionarios.

antiga e no suporte ao ensino de línguas no século XX); b) de natureza comercial (nas relações de trocas de produtos estabelecidas pelos egípcios e mesopotâmicos com outros povos); de natureza colonizadora (na imposição da língua dos colonizadores aos colonizados durante o período da expansão marítima e comercial nos séculos XV e XVI); de natureza política e econômica (com as monarquias nacionais, de política imperialista, no século XVI, em uma tentativa de impor e legitimar a língua e a cultura nacionais).

Outra razão são as obras lexicográficas, com frequência, terem sido idealizadas por intelectuais artesões, de ofícios dos mais variados, não preocupados em teorizar sobre seu trabalho e divulgá-lo. Dessa forma, por muito tempo, não houve, ou pouco houve, trabalhos de natureza crítica. O tom “pouco metalexicográfico” era característica de alguns prefácios de dicionários, sucintos e pouco elucidativos sobre os critérios e a metodologia adotados na elaboração da obra, contribuindo para percepção de que a Lexicografia não incitaria reflexões acerca da língua: “muitos linguistas deploraram que a Lexicografia não tivesse erigido, de forma explícita, uma problemática coerente que poderia contribuir para um melhor conhecimento das estruturas semânticas de uma língua” (HWANG, 2010, p. 43). Outro fato de se ter considerado o dicionário, durante muito tempo, não científico, é por ter sido visto como objeto puramente comercial, e, também, sendo livro sobre palavras, fruto de estudos da Lexicologia, disciplina cujo reconhecimento acadêmico, no âmbito da Linguística, foi tardio9.

Interessante observar a possível via de mão dupla existente na relação linguistas- lexicógrafos até a metade do século XX: ao mesmo tempo em que os linguistas rejeitavam o status científico da Lexicografia e do dicionário, os lexicógrafos também o faziam em relação às teorias linguísticas, para eles, pouco aplicáveis ao seu trabalho. A mudança ocorrida após a década de 1950 traz inquietações aos linguistas, já que suas teorias, a partir de então, começam a ser postas em prática, e a plausibilidade, ou não, delas é, inevitavelmente, comprovada. Traz, também, ganhos, pois muitos acadêmicos produziram dicionários, beneficiando-se economicamente da comercialização deles e, certamente, os benefícios refletem-se na produção de dicionários mais bem planejados e elaborados.

Não se pode dizer, entretanto, que, desse momento em diante, as obras lexicográficas tornaram-se linguísticas, pois, como bem ressalta Béjoint (2004),

9 Histórico da obra lexicográfica elaborado a partir da leitura dos textos de Béjoint (2004), Durão (2010) e Hwang (2010).

pautando-se em Dubois e Dubois, (1971) e Rey (1982), os lexicógrafos por paixão ou profissão, da antiguidade à modernidade, ainda que não fossem linguistas, sempre adotaram e transmitiram, involuntariamente, valores linguísticos em seus livros:

Dicionários foram feitos em uma época em que a linguística era pouco ensinada e praticada. É comum dicionários serem compilados por autores não linguistas, mas isso não significa que não há conhecimento linguístico neles. Todos os dicionários, necessariamente, adotam e transmitem pontos de vista sobre a língua, ainda que os lexicógrafos não estejam conscientes disso (BÉJOINT, 2004, p. 173, tradução nossa)10.

Embora negada ou questionada, a relação entre Lexicografia e Linguística, portanto, sempre existiu. E, após 1950, esta relação oficializa-se e é fortalecida:

“Lexicografia e Linguística estão agora inextrincavelmente relacionadas. Nenhum lexicógrafo moderno pode ignorar o que a linguística tem a oferecer. A pesquisa linguística não pode ser ignorada, mesmo nem sempre tendo todas as respostas”

(BÉJOINT, 2004, p. 177, tradução nossa)11. O mesmo se pode dizer na direção lexicografia → linguística: o saber-fazer lexicográfico tem muito a contribuir às teorias linguísticas, confirmando-as, refutando-as, questionando-as, por isso, não deve ser ignorado pelos metalexicógrafos e linguistas.

Provavelmente, o status de ciência reconhecido tardia e recentemente, fez que, ainda hoje, haja pluralidade de definições sobre o que é a Lexicografia. Bergenholtz e Gouws (2012) comprovam essa multiplicidade de conceitos, verificando as definições da palavra em fontes comuns, por exemplo, dicionários de língua e enciclopédias on- line, em dicionários de Lexicografia e em textos especializados.

Diante desse panorama plural, buscamos na literatura algumas definições de autores e estudiosos da área, em contexto internacional e brasileiro, as quais nos parecem pertinentes e bastante orientadoras para nosso pensar e fazer lexicográfico.

10 Dictionaries developed at a time when linguistics was little taught and practiced. It is a common observation that dictionaries can be compiled by authors who are not linguists at all, but this does not mean that there is no linguistic knowledge in a dictionary. All dictionaries necessarily adopt and transmit some points of view on language, even if lexicographers are not aware of any.

11 Lexicography and linguistics are now inextricably mixed. No modern lexicographer can afford to ignore what linguistics has to offer. Linguistic research cannot be ignored, even if certainly does not have all the answers.