• Nenhum resultado encontrado

É a noite. Sempre ela, matreira criatura que sopra receios ao ouvi- do e vergasta os sentidos. É noite.

Sempre! Medonha. Imperial, omni- presente, inquebrável, soberba. A madrasta sombra que se abate sobre os homens. A noite eterna na mina que tudo tolhe e tudo amplifica: sons, temores, brincando com os receios da alma, ameaçando a própria cora- gem de quem ousa enfrentá-la. Mas ela mesmo, a coragem desafiadora, é o fio de navalha resplandecente que corta o breu da mina. Lâmina desembainhada. Coragem furiosa, desbragada, desta gente que fere a noite. Nada mais.

Eles estão aqui, mas não deveriam estar. Não pertencem aqui. Nós não pertencemos aqui. Ninguém per- tence a este reino esquecido. Aqui é onde a noite se abriga quando o mun- do, lá fora, está submerso em luz e em vida. Não se deveria incomodar a

vigília da noite. Mas fazemo-lo. Com lâminas resplandecentes de luz: a verdadeira coragem dos mineiros.

“Lá fora ainda chove?” Alguém pergunta.

“Sim, chove”. Alguém responde.

Lá fora o Mundo ainda existe? Sim, e chove no mundo. A mais de 200 me- tros de profundidade, procuram-se novas lá de cima. A luz e a sombra.

O breu que escorre pelas paredes das galerias, que abraça os mineiros, a mina de quilómetros e quilóme- tros de galerias de fazer perder os sentidos. Lá, no fundo, agora, an- tes e depois, lá; longe do mundo, de todos, da admiração devida, os mi- neiros, mecânicos, operadores de máquinas, responsáveis sectoriais.

São eles e a noite. A eterna noite. A noite que se derrama na noite. A hú- mida noite, a centenas de metros de chão seguro, tido e garantido como o limite para todos nós. Mas não, // Descida às galerias das Minas da Panasqueira

Aqui, onde a noite

Aqui, onde a noite é eterna // 75

lamento desiludir-vos, o seguro chão onde repousam os nossos pés não é o limite. Os limites de quem trabalha nos limites são outros, bem abaixo.

Eles estão lá agora. No regaço da noite, onde a escuridão é eterna.

Os limites do Mundo são aqui, onde estas botas de borracha calcam a lama, com a água a escorrer pelas paredes labirínticas, com estranhas máquinas a rosnar ferozmente pelas galerias a levantar volfrâmio, levado pelos carris desaparecidos sobre o nosso caminhar. Ninguém sabe, mas digo-vos: o mundo acaba aqui. O fim do mundo conhecido, até onde as máquinas podem perfurar, até onde a coragem de gerações de mineiros fizeram o Homem ir. São eles que de- finem onde acaba o mundo. São eles que fazem e desfazem as fronteiras do conhecido e do desconhecido.

Mais longe, mais fundo, mais noite.

Mais severa escuridão. Mais medos que têm que se dobrar. Fundo, cada vez mais fundo. Mais ousados, mais acossados para com a noite que os assombra durante o turno de oito horas.

Noite medonha, noite temível, há gente que insiste em te desafiar! No cabo do mundo. Sim, é o teu reino, o teu mundo, mas é um mundo que acaba onde estes homens quiserem.

São eles que definem a extensão da tua glória. Apenas munidos de um foco de luz e de coragem.

- “Bom dia”.

- “Bom dia”

Um aperto de mão sela o cumprimen- to. Estranha e ilusória manifestação.

Um “bom dia” na mina tantas vezes repetido. Tantas vezes enunciado em plena escuridão. Homens nas escavadoras, homens no balcão da mecânica, homens no comboio de transporte de minério. “Bom dia”.

Assim seja. Para que a noite saiba.

Para que ouça que estes homens vie- ram da luz e para lá regressarão no fim do turno. Porque a escuridão já reclamou bastantes para si. Porque todos desejam que jamais o volte a fazer. Para que todos saibamos que é o dia que nos espera lá fora. Algures.

Pedro Correia, engenheiro res- ponsável pela segurança na mina, guia-nos pela escuridão, zelando por nós e pelos outros, dando-nos detalhadamente a informação de todo o processo de extracção e en- caminhamento do volfrâmio. Uma roda viva de procedimentos enca- deados, de hercúleas máquinas que já fazem vibrar o solo, ainda não se adivinha sequer a presença das suas potentes luzes ao fundo do túnel.

Nas paredes, códigos escritos a tin- ta orientam lá em baixo, fintando os labirintos que todos unidos em linha recta teriam cerca de três mil quiló- metros de extensão. Um “Você Está Aqui” em código.

Um foco de luz no capacete é o sinal, o único, de presença. Uma luz que rompe e que depressa se extingue no caminhar. Qualquer frémito de luz, aqui, é vida. O “bom-dia”, a con- firmação de viva voz.

E lá fora... ainda choverá?

25 de Março de 2010 Nuno Francisco

É como se os tivessem posto a con- tar os tostões, na palma das mãos.

No país da insegurança social, três irmãos a que as juntas médicas diagnosticaram “grande invalidez”

recebem, em conjunto, 50 contos por mês do Centro Nacional de Pensões.

São como três não-cidadãos, com o equivalente a um só ordenado mínimo. Cegos, adultos e sem nin- guém de quem possam depender, Laurinda, Joaquim e Henrique têm nos 90 anos da mãe a última “ajuda”:

a sua pensão de 26 contos é o que vai valendo para um mês-a-mês de aflição, com os contitos a escoarem- -se em remédios, idas ao médico e pagamentos à empregada que vai lá a casa fazer o que os olhos não lhes permitem.

Para lá da pobreza, o pior é o isola- mento, a falta de apoios, a esperança quase no fim, só 40 anos e há tan- to tempo a ouvir falar de Barcelona, especialistas que devolvem a vista a quem tem dinheiro: se fôssemos ricos!

Mas não, vivem sob um tecto de ripinhas de madeira, a salinha aper- tada, com crucifixo e imagens de Nossa Senhora nas paredes, de onde também pende uma moldura com fo- tografias, retratos a preto e branco, da família, do tempo em que ainda se via mas em que já todos os dias a névoa avançava um bocadinho mais.

Pai e mãe viam bem, mas eram pri- mos. É daí, da consanguinidade – alguém lhes disse –, que deve vir a doença dos seus olhos, que nasceram // No país da insegurança social

Retiradas pensões