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Empoleirada num cabeço cheio de pinhais, a aldeia de Adurão tem al- turas em que deve bater o recorde nacional de licenciados por metro quadrado. A povoação, com apenas 61 moradores, resume-se a um lar- guinho, três ou quatro quelhas e 25 casas bem contadas. Não há escola, nem nunca houve, e uma estrada de terra ainda é o caminho mais curto para a sede de freguesia, Dornelas do Zêzere.

Se não é prodígio, é pelo menos um orgulho da terra ter servido de ber- ço a uma mão cheia de professores e engenheiros. Já são 20 os naturais da aldeia com estudos superiores: 15 licenciados e cinco bacharéis. Mais os actuais estudantes universitários, que são outros cinco doutores na forja. Verdadeiro feito são os cem por cento de aproveitamento – nunca um filho da terra entrou na universidade sem ir até ao fim.

Fruto da vontade em romper o iso- lamento e melhorar a vida, a história das famílias de Adurão representa o Portugal que chegou ao fim deste

milénio. Um país a vários tempos.

Que saltou para a universidade, mas continua com falta de saneamento básico.

Apoiando os 72 anos num cajado, Maria José Simão não conhece as letras, porque no seu tempo poucos rapazes iam à escola, quanto mais as raparigas. Nunca saiu da aldeia, en- tre a horta e a mercearia, mas levou os filhos ao canudo: um professor, uma enfermeira, uma engenheira físico-química. Não discriminou as que nasceram mulheres, “para todos terem um futuro melhor que os pais”.

Aí está o Adurão para confirmar que a formação dos filhos é a principal aspiração dos portugueses, como di- zem os sociólogos.

Os filhos doutores da terra estão em Coimbra, em Lisboa, na Covilhã.

Estudar obrigou-os a sair muito novos da aldeia e a passar por semi- nários e lares de acolhimento, que o dinheiro não abundava. Nunca volta- ram para viver em Adurão. Vêm nas férias, quando a concentração de doutores é capaz de bater recordes.

// Educação

O futuro é dos doutores // 39

Durante o ano, as crianças são só sete e o problema da desertificação não é uma frase feita.

Quando se sobe ao Adurão num dia de semana é impossível descobrir um dos doutores licenciados da ter- ra. Difícil, porém, é não dar de caras com quem tenha filhos formados.

Aparecem mães de doutor umas atrás das outras. Alice Martins, 70 anos, tem três filhos engenheiros. Ângela Cebola, 63 anos, é mãe de uma pro- fessora de português. Maria de Jesus Simão, 67, tem quatro filhos, todos com diploma. Belmira Antunes, 76 anos, já tem filho e netos formados.

Nenhuma destas mães foi à escola. A sua mestria é, de lenço posto e aven- tal, a tratar das azeitonas e do milho.

Mas aprenderam a escrever o nome e a conhecer os números do telefone.

Nos dias de Américo Santos, que tem 70 anos e foi o primeiro da aldeia a acabar a primária, era preciso cal- correar os montes a pé até Dornelas para chegar à escola. A maior parte dos garotos acabava por desistir e dedicar-se às cabras. Mas no jovem Américo a semente pegou. “A quar- ta classe foi a melhor coisa que o meu pai me deixou”, diz este refor-

mado que é leitor diário de jornais e revistas, com preferência para ar- tigos de fundo. Andou emigrado só o tempo justo para poder pagar os estudos das três filhas: uma médica, uma professora e uma educadora de infância.

Agora a escola básica é na Seladinha, a dois quilómetros. Vai uma carri- nha buscar crianças à terra, mas não há muitas para transportar. O país escorreu para as cidades e para o li- toral. Os moradores a tempo inteiro em Adurão são quase todos reforma- dos a tratar das hortas. Chegou-se ao ponto de os naturais com estudos superiores serem o triplo das crian- ças em idade escolar.

Em confidência, há quem revele que a catadupa de doutores, numa terra tão pequena, também se deve a uma espécie de concorrência entre famí- lias. Uns mandam os filhos estudar – os vizinhos não querem ficar atrás.

Seja como for, os de Adurão são tudo menos duros de cabeça. O país é que não tem acompanhado o esforço e só lhes dá futuro longe de casa. À beira do século XXI, o médico e o sanea- mento básico ainda não chegaram a Adurão.

O concelho de Pampilhosa da Serra tinha 15 mil habitantes há cem anos e hoje só tem seis mil pessoas. Adurão já teve cento e tal moradores, agora não passa dos 60. O esvaziamento populacional é gritante nesta zona do interior.

Em redor não há empregos, muito menos para licenciados. E ainda não chegou a estas serras o teletraba- lho, modernidade das europas onde

se trabalha em casa, à distância do computador. Também não se sabe se haveria doutores candidatos a viver onde não chega o médico e a ausên- cia de esgotos faz transbordar as fossas.

O Estado pode ser padrasto, mas o ar é puro e o silêncio de ouro. Por cau- sa disso, há licenciados a construir casa no lugar da infância.

Desertificação

12 de Novembro de 1999 José Ricardo Carvalheiro

O que mais lhe custa, ao fim de 70 anos, é ver o povo dividido. Mas é quando confessa faltar à missa que aquela idosa da Bendada des- via o olhar e aponta as lágrimas ao infinito. Nunca pensou atraiçoar a devoção para ficar ali, com os pés descalços, sentada à sombra da casa.

Desde que os telemóveis se deram mal com a Senhora do Castelo, em Maio passado, a aldeia entrou em convulsão e anda gente em pé de guerra, como se houvesse um muro invisível entre uns e os outros. Os da antena e os opositores da antena. Os que acusam o padre de travar o pro- gresso e os que chamam autoritário ao presidente da junta. Os que deixa- ram de ir à igreja e os que continuam a organizar as festas. No auge da dis- cussão chegou a haver confrontos físicos. Agora, o clima é de guerra

fria, naquela aldeia do concelho do Sabugal.

A mágoa da idosa é com o padre da freguesia. A tecnologia das comuni- cações foi capaz de voltar uma cristã contra o prior. A estória começou com uma empresa de telemóveis a tentar instalar uma antena no alto da Senhora do Castelo. As contra- partidas para a aldeia eram o arranjo do caminho, energia eléctrica até ao santuário e 300 contos por ano, a administrar pela junta. O presidente da junta deu o aval, mas um membro da oposição pôs-se contra e o pare- cer pedido ao Instituto Português de Arqueologia acabou por inviabilizar, na prática, a instalação da antena no alto da serra, a poucos metros da capela.

O argumento dos opositores da an- tena era a proximidade com a capela.

// Guerra da antena na Bendada

Um “muro” a dividir