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Com a pandemia, a discussão rasa entre sim e não saiu de cena. É pela tela do celular que a criança se conecta com o mundo fora das paredes de sua casa. Até o conteúdo nocivo pode aduzir a debates e ensinamentos profícuos, a respeito por exemplo do

42 racismo, misoginia, ciberbullying, gordofobia, como vimos no caso de T.P e seu filho A., entre outros. Mesmo em tempos de home office, pais e mães nem sempre conseguem estar ao lado dos filhos em todos os momentos. Por isso, trabalhar a autonomia é o foco defendido por especialistas e, para nós, o objetivo final do investimento em CCI.

Tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirmam como fundamentais o direito à liberdade de expressão da criança. Considerada sujeito de direito, ela tem garantida a liberdade de procurar, receber e propagar informações e ideias. No entanto, lembramos que a criança pode desenvolver- se num jovem diferente e transformar-se num adulto com ideias até opostas às de sua criação, mas o que postou nas redes ou compartilhou ficará registrado para buscas posteriores (pegadas digitais).

O termo ética é destacado nos documentos e orientações mencionados. Como nos lembra Adolfo Sánchez Vázquez (1999), ética se adquire não no nascimento, mas por meio dos costumes, hábitos e do contexto histórico em que se vive. Por meio do pensamento crítico e do “pensar certo” freiriano é possível abordar com a criança, seja em casa ou na escola, o ensino da moral sob o aspecto normativo/jurídico (ciberbullying é considerado crime contra a honra e passível de sanções disciplinares ao menor infrator) e também social, com foco nas relações entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade.

O “pensar certo”, nos explica Freire, “é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade” e transita da ingenuidade para a curiosidade epistemológica (2019a). A ampliação da esfera moral, na qual o indivíduo faz o bem por vontade própria e não por coação, é parte da realização do progresso moral dentro de uma sociedade, onde a liberdade individual não fere a liberdade universal.

Responsabilidade e consciência são aspectos preponderantes para o estabelecimento deste progresso onde há liberdade de agir (moralmente). Nesse sentido, a liberdade acarreta, “em primeiro lugar, uma consciência das possibilidades de agir em uma ou outra direção. Contém também uma consciência dos fins ou das consequências do ato que se pretende realizar” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1999, p.131). Para ele, “a responsabilidade moral pressupõe necessariamente certo grau de liberdade” (1999, p.132).

Em perspectiva semelhante, Kant (2019) nos fala sobre a necessidade de ser livre para agir corretamente, mas conforme a razão. Sem liberdade para fazer escolhas, não há nem ética, nem moralidade. “A liberdade precisa ser pressuposta como uma propriedade da vontade de todos os seres racionais” (KANT, 2019, p. 90). Nessa abordagem, Kant

43 não defende que o indivíduo faça o que tem vontade, mas que tenha vontade intrínseca de agir de forma ética, conforme as leis e a moral, tendo em mente seu imperativo categórico: “nunca devo agir de outro modo a não ser querendo que minha máxima também se torne uma lei geral” (KANT, 2019, p.66).

Segundo o filósofo, “se prestarmos atenção em nós mesmos, em cada infração que cometemos em relação a um dever, descobriremos que realmente não queremos que a nossa máxima se torne uma lei universal” (KANT, 2019, p. 66). Dessa forma, o homem é regido pelo princípio da autonomia. Sánchez Vásquez pondera que “por conceber o comportamento moral a um sujeito autônomo e livre, ativo e criador, Kant é o ponto de partida de uma filosofia e de uma ética na qual o homem se define antes de tudo como ser ativo, produtor ou criador” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1999, p.283).

Ao defender que qualquer ser humano, por meio da razão, chegaria a mesma conclusão ao decidir sobre um ato, Kant vislumbra a autonomia do ser racional. Apesar de o “dever" estar em pauta em seu tratado, não é por meio da coação que o homem age de forma ética. Age com vontade, preservando sua liberdade. No trato com crianças, Freire menciona a atenção que o professor deve dispensar à "difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia” (FREIRE, 2019a, p.68 e p.69).

A pedagogia crítica freiriana, dialética e diametralmente oposta à educação bancária, é um projeto que posiciona a educação como catalisadora da justiça social.

Nesse diapasão, temas abrangentes relacionados à ética podem ser incluídos na introdução a um pensamento crítico infantil nos mais variados assuntos, inclusive no comportamento no universo digital. Interpretações sobre felicidade, sabedoria, virtude, justiça, coragem, prazeres, poder, solidariedade, em suas visões particulares e universais podem servir de base para a discussão de conteúdo que aborde as vicissitudes do mundo digital, mantendo em mente o "pensar certo” e a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 2019a).

Educadores e educandos não podemos, na verdade, escapar à rigorosidade ética. Mas, é preciso deixar claro que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se curva obediente aos interesses do lucro... Falo, pelo contrário, da ética universal do ser humano. (...) É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos, em nossas relações com eles. (FREIRE, 2019b, p.17 e p.18).

44 Ao debate filosófico de Kant e Sánchez Vázquez, insere-se ainda a abordagem da Ética da informação como campo disciplinar. Nascida nos anos 1980, sob a tutela da Biblioteconomia, a disciplina tornou-se um importante agente global em áreas diversas como tecnologia, mídia, humanismo global e filosofia da informação (BIELBY, 2014).

Como nota Bielby, a necessidade de uma Ética da informação advém

[...] de uma preocupação reconhecida e crescente em toda a sociedade da informação. O fato é este: a natureza e o uso da informação através de tecnologias virais e nossa interação com ela, agora comumente referida no campo das TICs (tecnologias de informação e comunicação), está à beira de superar a capacidade de seus usuários de entendê-la e controlá-la (BIELBY, 2014, s/p, tradução nossa28).

No percurso histórico que Elizete Vitorino e Daniela Piantola (2009) fazem para conceituar competência informacional, as pesquisadoras destacam o entendimento que engloba desde

[...] saber como usar os computadores e acessar a informação até a reflexão crítica sobre a natureza da informação em si, sua infraestrutura técnica, e o seu contexto e impacto social, cultural e mesmo filosófico, o que permitiria uma percepção mais abrangente de como nossas vidas são moldadas pela informação que recebemos cotidianamente (VITORINO; PIANTOLA; 2009, p. 138, grifo nosso).

Avaliamos que vivemos num tempo no qual não podemos nos abster de pensar nos aspectos políticos e econômicos das comunicações, diante da velocidade das transformações das práticas comunicacionais e da própria indústria midiática, como aponta Hardy.

Nossa dependência dos recursos comunicacionais, vivenciados no teclar e nas conexões da nossa vida diária, é acompanhada pelo aumento do interesse e preocupação em como esses recursos são controlados e organizados. Nunca foi tão grande a necessidade de se reconhecer a importância da organização política e econômica da mídia (HARDY, 2014, p. 3, tradução nossa)29.

No entanto, diante dos desafios da contemporaneidade, ele chama a atenção para algo que nos é muito caro: a incorporação do termo “crítica” a este estudo. De acordo com Hardy (2014), os estudos incluídos nesse campo consideram aspectos da economia

28 “...a recognized and growing concern across an information society. The fact is this: the nature and use of information through viral technologies and our interaction with it, now commonly referred to in the field as Information and Communication Technologies, or ICT’s, is on the cusp of outgrowing the ability of its users to understand and control it.”

29 Our dependance on communication resources, vividly realised across the keystrokes and connections of daily life, is accompanied by increasing interest and concern in how these resources and economic organisation ("political economy") of media has never been greater.

45 política da comunicação (EPC) que são críticos em relação à maneira com a qual as relações de poder são mantidas.

A ênfase na inclusão do termo “crítica” ao estudo baseia-se, pois, na desigualdade de distribuição do poder e, consequentemente, na manutenção da desigualdade social.

Calcada em Marx e também na Teoria Crítica frankfurtiana, “a economia política crítica (das comunicações) descreve uma tradição de análise que está preocupada com entender como os arranjos das mídias se relacionam com os objetivos da justiça social e da emancipação” (HARDY, 2014, p. 3, tradução nossa)30.

Também inspirada em Marx e na Escola de Frankfurt, a competência crítica em informação (CCI) quer se diferenciar do conceito de competência em informação (information literacy), que teria como principal foco a capacitação meramente instrumental dos indivíduos para lidar com o excesso de informação, convertendo “o aprendizado relacionado à aquisição da dita competência em algo maquínico, pouco reflexivo, muito operacional e, em última análise, subordinado ao mercado”. (BEZERRA, SCHNEIDER, SALDANHA, 2019, p. 14).

De acordo com os autores, a filosofia da competência em informação, sem crítica, reverbera o discurso neoliberal ao transformar o cidadão no que mencionamos na sessão anterior: um empreendedor de si. Para Eamon Tewell, que se debruçou sobre uma revisão de literatura ao longo de uma década sobre a CCI, a information literacy se furta de incluir a postura de engajamento dos estudantes no processo de aprendizagem. Por outro lado, a [...] competência crítica em informação, como expressada em sua literatura, examina a construção social e as dimensões políticas da informação, e problematiza o desenvolvimento, o uso e os propósitos da informação, com o intuito de estimular os estudantes a pensar criticamente sobre tais forças e agir de acordo com esse conhecimento.

(TEWELL, 2015, p. 36, tradução nossa)31.

Competência crítica em informação, competência midiática, multiletramento, literacia midiática ou alfabetização midiática são conceitos com certas particularidades, mas que convergem para o entendimento da construção de habilidades que facilitem o exercício do pensamento crítico para o consumo e produção de conteúdo por meio de dispositivos tecnológicos. Segundo a Unesco, o conceito de alfabetização

30 Critical political economy describes a tradition of analysis that is concern with how communications arrangements relate to goals of social justice and emancipation.

31 Critical information literacy, as expressed by its literature, examines the social construction and political dimensions of information, and problematizes information’s development, use, and purposes with the intent of prompting students to think critically about such forces and act upon this knowledge.

46 [...] foi expandido para incluir a compreensão crítica associada às características de formatos e sistemas particulares das informações e das mídias, além dos processos, dos conhecimentos, das atitudes e das habilidades cognitivas necessárias para o engajamento com a mídia e outros provedores de informação, como bibliotecas, acervos e aqueles na internet, bem como domínios de conhecimento particulares.

(UNESCO, 2013, p.45, grifo nosso).

Para Fantin (2015), as competências digitais e informacionais propostas pela Unesco relacionam-se com as midiáticas, pois estas lhe dão contextos de usos sociais e culturais. As competências passam a ser entendidas como “saber de ação” que enfatiza a ideia culturalista de competência e não a ideia comportamentalista relacionada à lógica do mercado.

As mídias eletrônicas têm um papel cada vez mais significativo na definição das experiências culturais da infância contemporânea. Não há mais como excluir as crianças dessas mídias e das coisas que elas representam, nem como confiná-las a materiais que adultos julguem bons para elas. A tentativa de proteger as crianças restringindo o acesso às mídias está destinada ao fracasso. Ao contrário, precisamos prestar muito mais atenção em como preparar as crianças para lidar com estas experiências, e ao fazê-lo, temos de parar de defini-las simplesmente em termos do que lhes falta. (BUCKINGHAM, 2007, p.32).

Nessa perspectiva, Livingstone e os outros autores mencionados defendem a necessidade de se pesquisar o relacionamento das crianças com o mundo da internet principalmente pela forma como a internet medeia a relação das crianças com o mundo.

Em outras palavras, a agenda de pesquisas mais recentes não se refere mais à relação das crianças com a internet enquanto meio, mas, mais profundamente, diz respeito à sua relação com o mundo mediado pela internet.

Isso significa que, potencialmente, qualquer e todos os elementos deste modelo por exemplo, família, educadores, cultura e desigualdade podem ser eles próprios reconfigurados na era digital.

(LIVINGSTONE; MASCHERONI, G. e STAKSRUD; 2018, p.11;

tradução nossa)32.

O uso de ferramentas digitais gera saberes e habilidades de conhecimento na construção das competências desse cidadão em formação. Aprender a enxergar com olhos críticos tem implicações na educação e (boas) perspectivas e consequências para o futuro.

Forjar a autonomia é o caminho proposto para que as crianças possam aprender a estar, na hora certa, sozinhas neste ambiente digital, mas com postura crítica. De se saber ativo

32 This means that, potentially, any and all elements in the model – consider, for example, family, educators, culture, and inequality – may themselves be reconfigured in the digital age.

47 em sua relação com as mídias, e, desta forma, (re)conhecer as responsabilidades de seus atos, de seu curtir, postar, compartilhar. Ninguém mais é apenas um consumidor passivo.

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