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CAPÍTULO XI

me aceitar a mim mesmo. Toda a minha vida foi inútil! Tudo o que fiz foi inútil! Foi grotesco e inútil!

Sacrifiquei tudo a quê? Sacrifiquei o melhor da minha vida ao vácuo. Ofereci- lhe em espetáculo a minha dor. Mas então que existe? Qual a diretriz da minha vida? Qual a ilusão com que hei de encher isto? E para que hei de viver? Qual o sonho imenso capaz de substituir este sonho? Que é Deus agora? Deus é tudo e nada. É uma força. Deus é uma lei inexorável. Mas então tu que podes tudo — tu não podes nada. És uma lei — e hás de cumprir essa lei. És um destino e não podes dar um passo fora desse destino. Não vês, não ouves, não sentes. Eu sou uma insignificância e valho mais do que tu. Porque eu grito, eu sofro, eu atrevo-me. Amanhã quebro o meu destino. Tenho uma consciência.

Sou ilógico e absurdo. Debato-me. E tu, Deus, não passas de uma força cega e estúpida. Não me serves de nada.

Preciso de um Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. Preciso de um Deus que me salve ou que me condene. Preciso de um Deus que me ampare. Preciso de uma inteligência superior à minha e em comunicação com a minha.

Um Deus-força, um Deus que não se comove com os meus gritos nem com as minhas súplicas, não me interessa. Um Deus que caminha para um fim que não atinjo, é um Deus absurdo. De que me serve este Deus? Não ouve os gritos — destrói; não sente a dor — destrói. Destrói e caminha. É inalterável.

Ilude-nos. Deixa-nos um segundo diante deste espetáculo, para nos mergulhar no nada. A nossa aspiração não cabe aqui: entrevemos, sonhamos, e, a meio do caminho, talvez no início de sonho maior, destrói-nos. Pior: tem uma necessidade de sofrimento cada vez maior, de sofrimento inocente ou culpado. Revê-se na dor. Deus é cego.

Debalde grito — não há quem me ouça. Debalde sofro — ninguém o detém.

Tanto faz viver como morrer. Deus, tu és monstruoso! Destróis — caminhas.

Destróis e não sentes. Vens do infinito, e atrás de ti fica um infinito de dores, uma massa de gritos e de seres espezinhados. Segues e destróis. Constróis não sei o quê de portentoso com que não posso arcar. Dessa pata monstruosa escorre sempre ternura. Não e indiferente que calques e recalques. Quanto mais espezinhas, mais gritos, mais ternura nas árvores, mais estrelas nos céus.

Parece que a dor é inseparável da ternura, como a morte é inseparável da vida.

— Até aqui eu tinha uma tábua a que deitar a mão. Até agora tinha um nome

— agora não sei como me chamo. Agora tenho medo de mim mesmo, agora sinto-me isolado neste caos infinito, neste repelão desabalado, que me leva sem sentido e sem fim. Eu e a noite — eu e o doido! Até agora supunha-me tudo, eu e Deus, eu e a mão enorme que me conduzia e amparava. — Sofras ou não sofras, vais para a mesma cova, para o mesmo nada, para o mesmo silêncio. Antes o inferno! Antes o inferno! Tu que foste desgraçado, ou tu que foste feliz, tu que te descarnaste até à medula e tu que passaste indiferente pela desgraça — vais para a mesma cova profunda, inútil, absurda e muda. Antes o

inferno, antes a dor pelos séculos dos séculos a vir, do que a mudez e o horrível silêncio atroz! — Tudo foi indiferente, tudo foi indiferente para o monstro que passa e esmaga, que não ouve e esmaga, que não vê e esmaga.

Indiferentes os teus gritos e as tuas súplicas; indiferentes a tua renúncia, a tua dor, as tuas lágrimas. Foi indiferente que fosses bom ou mau, que tentasses subir ao topo do calvário. Não existe na realidade nem vida nem morte — não há na realidade senão quimera e dor — não há na realidade senão este monstro que passa e esmaga, que caminha e esmaga.

Deus é cego! Deus é cego!

Enquanto te importaste comigo no mundo, foste o meu único pensamento e só tu me importavas no mundo. Agora não posso, agora não dou contigo.

Agora não te encontro. Agora sou mais pequeno e maior. Agora meto-me medo. Que voz pode ecoar e sobressaltar esta solidão infinita, este mundo infinito, onde os gritos se não ouvem a cem passos, e tudo que chamamos amargura, dor, grandeza, se apaga logo e se reduz a zero? O meu dever já não é o mesmo dever, a minha consciência já não é a mesma consciência. Só os meus instintos se conservam de pé.

Acuso-te de teres comprometido a minha situação no universo. Acuso-te de não me deixares ser infame. Acuso-te de me dares o remorso. Acuso-te de me impedires o instinto. Acuso-te de teres transformado a vida e criado a consciência. Acuso-te de me deixares sozinho com este peso em cima, com a

ideia da vida e com a ideia da morte. Acuso-te de me levares para um calvário como o teu, para me tornares grotesco, e de me colocares em frente de ideias com que não posso arcar. Acuso-te de não poder mais, e de me instigares a mais ainda. De me obrigares a olhar cara a cara o assombro que não existe; a morte que não existe; a consciência que não existe. Subverteste o mundo.

Forçaste-me a criar outro mundo, a olhar para cima e a clamar no vácuo.

Acuso-te de não me deixares atascar à minha vontade em lodo, de não me deixares mentir, matar, chafurdar. Acuso-te de me impelires para cima, quando a minha vontade era ir para o fundo. Acuso-te de não me deixares ser bicho.

Estou pronto para tudo. Desde que não há Deus tudo são palavras. Desde que não há outra vida, só há esta vida. Só há este minuto, esta hora presente.

Sinto-me capaz de tudo. Estive anos a rezar a uma cómoda, a falar a uma cómoda, a sofrer diante de uma cómoda. Fui grotesco! Fui grotesco e tu não vias! Fui grotesco e tu não ouvias! Fui grotesco e tu não existias!»

Resta um Santo só orgulho, um Santo só desespero. Orgulho e cólera. Fica mais seco, calcinado, maior. Não admite que o contrariem e quer ser obedecido e temido. Tem inveja das infâmias dos outros, inveja dos que se atrevem, inveja amarga como fel. «-Dói-me tudo, dói-me principalmente sentir-me grotesco! Sentir que perdi a vida e sou grotesco! Sentir que me deti e fiquei descarnado, impotente e grotesco!

Por uma palavra fui absurdo. Por uma palavra tenho atrás de mim uma arquitetura desconforme e destroços que enchem o mundo — por uma palavra e mais nada. Tu não existias!

Resta-me o bem. Mas fazer 'o bem para quê se tudo acaba ali, se não há outra vida consciente, se não tenho de responder perante ti pelos meus actos? E mesmo diante do escantilhão sôfrego, o que é o bem e o mal? A que eu tenho de obedecer é ao instinto e mais nada. Se não estás aí para me julgar e para me ouvir, que importa fazer isto ou fazer exatamente o contrário? Só uma coisa resta: iludir os desgraçados, levá-los para uma mentira cada vez maior, para que possam suportar a vida. Não se trata do bem ou do mal, do justo ou do injusto — trata-se de mentir, de mentir sempre — de mentir cada vez mais.»

CAPÍTULO XII

No documento Humus - Raul Brandao.pdf (páginas 143-149)