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NOVAS MÁXIMAS

No documento Humus - Raul Brandao.pdf (páginas 178-187)

Se Deus não existe e a outra vida não existe — se disponho só desta vida, os deveres que tenho a cumprir são apenas os do instinto. Só tenho deveres enquanto não me pesam. Não te deixes iludir.

Era sempre com secreta irritação que eu fazia o bem. O bem contraria. Fugi sempre a este problema... Era sempre num impulso de paixão — e com todo o meu ser, que eu fazia o mal. O sacrifício, a piedade, a bondade só têm lugar no mundo como culturas artificiais.

Repete isto: a bondade é um sentimento falso e o mais artificial de todos os sentimentos.

O mal é uma prova de saúde. Até o povo diz que os bons são os que Deus leva primeiro.

Ah sim, a ironia... Há de te servir agora de muito a ironia!

O dever acabou, o estúpido dever, o dever que me dominava a vida com um peso de chumbo, o dever de fazer todos os dias as mesmas coisas inúteis.

Respiro.

Sim, a amizade... Falemos aqui baixinho um com o outro. Essa amizade era o meu interesse ou o teu interesse. Dominavas-me ou dominava-te. Passei anos sob esse jugo, e agora descubro com alegria que te detesto. Detestei-te sempre.

Odeio-te porque vales mais do que eu; odeio-te porque podes mais do que eu.

Assistir à ruína dos nossos amigos é talvez melhor do que assistir à ruína dos nossos inimigos.

Agora Deus é um deus amorfo e prestável. Cada um faz dele o que quer: está por tudo. É um deus cómodo. Para os pobres é necessário inventar outro deus, um deus que não tenha onde cair morto e que lhes prometa, como compensação, o outro mundo: «É mais fácil um camelo entrar pelo fundo de uma agulha que um rico no reino dos céus», etc.

Eu sou a única consciência nesta barafunda cega e sôfrega.

Há que tempos que eu sabia que tu não existias. Restava-me certo medo, não sei que receio indefinido e vago. Esse pudor desapareceu.

O adultério é uma questão de teatro.

Acaba de tirar a máscara. Arranca de vez a máscara... A mulher honesta só tem deveres a cumprir; a outra atirou com o fardo pela borda fora e afronta-a.

Põe-nos à vontade. Com ela avançamos e regressamos: é a besta e a mulher de luxo. Até agora a ideia religiosa constrangia a mulher dentro do que

chamamos os seus deveres. Só a mulher cristã pode lutar com o instinto e vencê-lo... Sê lógico e prático: para maior comodidade exige para ti a liberdade de consciência e mantém-na a ela dentro de ideias absurdas.

Temos de fabricar novas leis. As que estão já não têm serventia: falta-lhes consistência. Uma lei só tem ação interior enquanto é religiosa. Já há muito que ninguém acredita nas leis, mantemo-las como defesa da sociedade. Ah, mas então acabemos de vez com a hipocrisia... Façamos leis para as classes superiores, e leis para as classes inferiores — leis para os pobres e leis para os ricos. As leis modificam-se com as consciências, e as consciências modificaram-se.

Roubar já se não chama roubar. Este homem que comanda uma frota da Baía a Tunis, é um financeiro e um poeta. Faz a fome e a fartura. Arruína um povo

— e enriquece. Uma revolução, dois, três navios vão pelos ares... Mais negócio, melhor negócio. Este médico, este advogado, este honrado comerciante, exploram-te. Enriquecem. Desçamos na escala: ali à esquina levam-te a carteira com uma nota de dez mil réis. A isto é que se chama roubar.

Não percas a consideração. É o que ninguém te perdoa. Conserva as aparências. É o que exigem de nós. Respeita a fórmula. A fórmula é o principal.

Não hesitemos em modificar a educação. Tudo o que fizermos noutro sentido é perigoso. Pobres educam-se como pobres, ricos educam-se como ricos.

Formemos classes — as de cima e as de baixo. O problema da educação é um problema capital.

O corpo médico também evolucionou. A sua grande missão consiste em matar, em suprimir os sifilíticos, os paranoicos, os tuberculosos, todos os que constituem um perigo para a humanidade futura.

O futuro há de dividir a história em três períodos: o dos senhores; o da Igreja que manteve os desgraçados na subordinação, prometendo-lhes o reino dos céus; o dos escravos...

O amor é um único minuto. Um minuto esplêndido. O resto é hábito, palavras, hesitações, trampolinice, livros de capa amarela...

O super-homem refastelou-se enfim na vida. É um tipo louro, eloquente e perspicaz. (As pessoas honestas conhecem-se logo pela falta de ironia e pelo coçado...) Tem diante de si séculos de existência — e aborrece-se. Tal horror ao nada que — para viver ainda mais — alimenta-se de côdeas. Todo o esforço lhe parece vão, tudo lhe parece falho de nexo: só os charlatães têm ainda algum domínio sobre ele. Imponentes criados de farda servem-lhe dois pedaços de pão na baixela armoriada: come-os devagarinho — e, para não pensar, para não cismar, toda a noite lê romances de Gaborieu, onde o mesmo

polícia persegue o mesmo gatuno, onde o mesmo gatuno foge sempre ao mesmo polícia.

A vida modifica-se noutro sentido. Falta ternura ao mundo. Acabou a piedade que provinha de nos sentirmos transitórios e o egoísmo redobra. Os ouvidos cerraram-se de todo à desgraça. A base da existência é um cálculo. As manias engrandeceram. Acabou o amor, e a mulher é um mero animal de presa. O drama do trapo assume proporções de tragédia. Sobre as tábuas e os muros só se leem cartazes de unguentos, pílulas, remédios secretos ou máquinas de escrever. Todas as florestas se converteram enfim em papéis, jornais, Séculos;

todas as aves do céu em chapéus de mulher.

Muitos prefeririam voltar para trás, para a toca cómoda da mentira e do hábito, a que à força de uso desgastaram as arestas. Não podem. Olham direitos para o sonho. Estavam habituados a tirá-lo de longe a longe, a medo e a furto, de um fundo recôndito, para só viverem nesse instante supremo.

Agora expõem-no ao sol. Outros tinham acabado por suportar o que se chama a felicidade conjugal, o hábito de se dizerem ano atrás de ano as mesmas ninharias, no relento suspeito da mesma cama, e de se adaptarem tolerando-se. Alguns chegavam a julgar-se felizes... Atiram-se a infâmia, o deboche, o tédio e o nojo, como farrapos que de si próprios arrancassem, e partem cada um para seu lado, livres e fartos de mentira.

Na pequena vila já havia, como em todas as almas, um Robespierre, um cadafalso, um Shylock interior, ódios, ganância e uma serigaita a cantar. O quinhão é igual para todos — o que pode é estar sepultado. A questão era de proporções: os valores já não estão na mesma escala. Desapareceu o ridículo.

Pensem nisto: desapareceu o ridículo.

Tu lutas contra esta figura que dentro de ti te impele; — tu queres fugir de ti próprio, queres separar-te de ti mesmo, e não podes. Só consegues, à custa de esforços desesperados, manteres-te dentro da fórmula ou da máscara que escolheste, e arredar o crime e a loucura, e fingir e sorrir; tu pudeste iludir o fantasma, seguindo pelo caminho trilhado. Iludiste os outros e a ti próprio te iludiste. Agora não. Agora sentes-te capaz de tudo. As grandes sombras que se entravaram a vida, ei-las reduzidas a dois punhados de cinza. Valia a pena a luta? O homem é sempre a mesma lama, os mesmos despeitos e os mesmos rancores, com resquícios de oiro à mistura. O que pode fazer é dominá-los.

Mas sai sempre da luta esfarrapado e perguntando a si mesmo baixinho: — Valeu a pena? Valeu a pena? Depois que se venceu que lhe resta? Ele e o vácuo, ele e a saudade da lama que fazia parte integrante do seu ser. Ficou diminuído. A escuma também tem os seus direitos. Tudo se lhe afigura agora sob novo aspeto, e surpreende-se a rir de si mesmo. Bem vês a insignificância tem de durar mil anos, a vulgaridade e a ternura têm séculos diante de si, de forma que tanto vale a ternura como a vulgaridade, tanto me pesa uma como a outra. Abafo. Tenho de durar mil anos, tenho de durar dois mil anos, tenho

estas coisas diante de mim hoje, amanhã, sempre. É escusado lutar. Enquanto era a razão que me guiava, andava às apalpadelas: agora é o inconsciente e cessaram de todo as dúvidas.

* * *

23 de Junho.

Todos nós pelo pensamento somos capazes de hecatombes. Detinha-nos a vida artificial, uma arquitetura mais temerosa que todas as catedrais do globo postas umas em cima das outras.

Se me esqueço o meu pensamento disforme deita-se logo a caminho...

Vejo-o caminhar e não o posso deter. Por mais esforços que faça não o posso deter. É como se eu criasse figuras, que se pusessem logo a caminho. Todos os fantasmas se dissolviam à luz da madrugada. Agora estas figuras têm de cumprir um destino. E pergunto a mim mesmo baixinho se na verdade eu não desejo que avancem um passo — e outro passo ainda...

Tinha medo de aparecer no outro mundo deformado e grotesco, e agora tanto faz entrar na morte repulsivo, como transfigurado e só dor.

Olhava este momento que ia desaparecer, com saudade — porque nunca mais se repetiria no mundo. Nunca mais outro segundo igual nem na luz, nem vibração, nem na ternura... O momento em que me sorriste, baloiçado entre o nada e o nada, nunca mais se tornaria a repetir, idêntico e completo, em todos os séculos a vir! Estava ali a morte — está aqui a vida. Agora pergunto a mim mesmo se te deixo morrer; e a pergunta obsidia-me e exige resposta imediata.

Sei tudo, tudo o que me podes dizer — já eu o disse a mim próprio. Até hoje falava a alguma coisa que me ouvia, hoje só interrogo a mudez, só a mim mesmo me interrogo.

Há entre as figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.

Mas há entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça. — Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!

Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão verde dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!

Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço.

Talvez as almas fossem mal conduzidas, talvez já adivinhássemos o universo e depois o esquecêssemos. Creio que se não complicássemos a vida e a dirigíssemos noutro sentido, pressentiríamos tudo e resolveríamos tudo. Há em todas as existências alguns segundos em que sentimos o contacto do mistério — de que nos separam logo léguas de impenetrabilidade.

Alguma coisa porém se interessa pela minha dor. Todas as noites grito, todas as noites sufoco os gritos. Todas as noites me debato com o mesmo problema e a mesma angústia. E há uma coisa que assiste a este espetáculo e se interessa, que cada vez me mergulha mais fundo para que eu me despedace — e se interessa...

CAPÍTULO XIV

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