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PAPÉIS DO GABIRU

No documento Humus - Raul Brandao.pdf (páginas 127-132)

Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora — quase sem reparar — cismando na imortalidade da alma.

Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não sei dizer se existiu se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse à grande nódoa de humidade da parede.

Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede.

Entre mim e ela interpôs-se o sonho.

A ternura também cansa. Deixem-me! Deixem-me sonhar!

O principal para mim foi a queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes por ventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios — a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?

Não valia nada, o que vale um pássaro, e em questões afetivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo — a do silêncio — a do sonho.

Tanto se queixou baixinho que morreu de frio!

Deito-me debalde aos encontrões à noite. Nem um grito. Os remorsos são inúteis. Um passo na vida é sempre irremediável: não há forças humanas que o possam apagar.

* * *

25 de Abril

A vida tem dois períodos: o do entontecimento, o da saudade. Não sei qual é melhor. Talvez aquele em que se ouvem já os passos da morte, mais perto!

Mais perto! O frio da morte dá à vida um encanto superior e um prestígio maior.

Deixem-me! Deixem-me! Deixem-me só com isto, deixem-me viver para isto.

Deixem-me fechado a sete chaves com o sonho que me enche de ridículo, que não existe e é a razão da minha vida. Deixem-me ir para a cova agarrado a este nada imenso, que me dourou as mãos e me deixou atónito. Só no fundo da cova é que estou bem, sós a sós, fechado com ele para sempre.

Se o sentimento de beleza é a única coisa humana que não nos engana — se só a isto ficamos reduzidos — como não prever outra beleza maior?

De sobressalto em sobressalto, de assombro em assombro, de vulgaridade em vulgaridade e de contradição em contradição, assim vim até ao fim. Não consigo desprender-me de um, nem libertar-me do outro.

Atrás deste assombro há outro assombro — e depois outro assombro ainda.

Qual é a minha experiência da vida? Nenhuma. Qual é a lei que extrais da vida? Nenhuma. Só o espanto. Só uma coisa cada vez maior, sempre assumindo maiores proporções, que sinto desabar no silêncio, mais dourada e frenética que o sonho. Tudo se reduz a coisas a que damos valor, e a coisas a que não damos valor. E entretanto ao nosso lado passa o tropel mágico, desesperado e caótico. Ali fora desabam os séculos e a torrente misteriosa que leva consigo estrelas em vez de calhaus. O jacto de portento vem do infinito e caminha para o infinito, levando consigo a alma, o universo, o lógico e o ilógico, o absurdo e Deus.

Uma vida resume-se em duas linhas, sintetiza-se em dois ou três factos. Se a vida fosse só isso não valia a pena vivê-la. A vida é muito maior pelo sonho do que pela realidade. Pelo que suspeitamos do que pelo que conhecemos. Se nos contentamos com a superfície, não há nada mais estúpido — se nos quedamos a contemplá-la faz tonturas. É por isso que eu teimo que a Morte

não tem só cinco letras, mas o mais belo, o mais tremendo, o mais profundo dos mistérios. Prepara-te.

O problema capital da vida é o problema da morte. Ele resolve tudo. Não há factos isolados; não há acontecimento no universo que não gere outro acontecimento. O inconsciente não pode criar o consciente. É impossível dar um passo a que não suceda outro passo. A vida gera a morte — a morte gera a vida. Mas que vida?

Fui eu que criei tudo na vida. Destaquei da massa confusa, da mescla, o tempo

— destaquei a morte — destaquei o sonho. Fui eu que, como num quadro, lhe dei valores e perspetiva. Fui eu que lhe entornei em cima ilusão. Na realidade só existem cores — como só gritos existem. Arranquei tudo do fundo do quadro. Porque não hei de acabá-lo?

E no entanto sinto-me tocado de hesitação e de dúvida. Do que tenho saudades é desta vida. Ao que eu aspiro é a esta vida. O gesto que o moribundo faz ao arrepanhar o lençol é um gesto de náufrago.

Sou nada diante do universo. Mas teimo, mas discuto comigo e contigo ó espanto, mas defronto-me com o enigma, encarniço-me e saio daqui esfarrapado, despedaçado — mas teimo e hei de vencer-te. Não quero morrer de vez. Não quero perder a consciência do universo nem a sensibilidade do universo. Eu sou o nada, tu és o infinito — hei de por força vencer-te!

De um lado a matéria, do outro o espírito. De um lado consciência, debate, luta, do outro a impassibilidade, a fatalidade inexorável. Nenhum grito a perturba. De um lado a vida gasta num segundo, do outro a sucessão ininterrupta dos séculos, indiferente e eterna. Como acaso é atroz, a não ser que outra coisa nos espere.

Ilusão, mentira, estúpido? Mas eu é que faço a verdade e a mentira. Eu é que a crio à custa de dor. Dou-lhe o meu bafo e a minha alma. Deus cria-me a mim

— eu crio Deus. Uma verdade pode ser abjeta, uma mentira pode construir outro mundo — outro universo — outro céu.

Se não nos detivéssemos com palavras, se avançássemos todos ao mesmo tempo, esquecendo o que é inútil, para esta coisa que nos devora, subjugávamo-la. Conquistávamo-la por uma vez, por maior que ela fosse. Mas nenhum de nós se atreve e passamos a vida a fingir que não existe. E só ela existe.

CAPÍTULO X

No documento Humus - Raul Brandao.pdf (páginas 127-132)