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Diálogos socráticos e dialogismo

No documento NO MUNDO DA LINGUAGEM: (páginas 133-140)

2. Bakhtin e seu Círculo

2.2 Diálogos socráticos e dialogismo

incorporavam o estilo socrático de construção dialógica da  verdade, retomavam conversas deste filósofo. Esses diálogos –  especialmente associados a uma fase mais antiga dos diálogos  de Platão36 –, embora vinculados às esferas filosófica e política,  não tinham uma constituição retórica37, dialética e monológica,  mas sim carnavalesca, dialógica, centrífuga, daí sua natureza  política  e  anti‐imperialista.  Com  isso,  o  diálogo  socrático  centra‐se  mais  nos  processos  de  compreensão,  responsabilidade,  argumentação e negociação de sentidos do  que  na  persuasão,  no  convencimento  ou  apagamento  de  alguma verdade ou ponto de vista em prol do apaziguamento  dos  conflitos.  Por  isso,  acredita‐se  que  sua  constituição  colabora para se pensar as formas de assimilação/recepção da  palavra alheia. 

Dentre as características do gênero socrático, Bakhtin  (1929/1963) elenca:  

(i) O diálogo socrático prioriza o caráter dialógico da  verdade e da forma de construção da verdade em oposição à  verdade  monológica,  oficial  e  previamente  dada.  Esse  dialogismo se centra na relação que os sujeitos estabelecem  com  a  verdade:  ao  invés  de  submeterem‐se  a  idéias 

36 Esta fase anterior de Sócrates revelaria uma face mais ética, inconclusiva 

preocupada com questões da vida do que filosófica ou focada no  conhecimento e na retórica. O interesse de Sócrates estaria mais na forma  como as pessoas vivem (de maneira virtuosa) do que em suas crenças  conhecimentos. (ZAPPEN, 2004) 

37 Segundo Bakhtin (apud EMERSON in BAKHTIN, 1929/1963:38): “In  rhetoric  there are the unconditionally  right and the unconditionally  guilty;  there  is  total  victory,  and  annihilation  of  the  opponent.  In  dialogue, annihilation of the opponent also annihilates the very dialogic  sphere in which discourse lives. . . . This sphere is very fragile and easily  destroyed (the slightest violence is sufficient, the slightest reference to  authority, etc.).” 

previamente dadas e cristalizadas, eles as compreendem à  luz  de  seu  fundo  aperceptivo  e,  com  isso,  respondem  ativamente,  ou  seja,  estabelecem  uma  relação  de  contraposição, polêmica, aceitação, entre outros, com aquelas  idéias.    Esse  gênero  quando  incorporado  por  filosofias  posteriores  acabou tendo  o seu dialogismo apagado  pelo  dogmatismo filosófico e religioso. 

(ii) O gênero socrático apresenta duas características: 

síncrese e anácrise. A primeira corresponde à confrontação de  vozes e discursos sobre um mesmo objeto; a segunda diz  respeito a uma certa técnica de instigar, pelo uso da palavra,  o interlocutor a expressar suas idéias e de submetê‐las ao  processo  de  construção  da  verdade  e,  portanto,  às  incongruências,  contradições  e  fragilidades  que  poderiam  portar. Ao  provocar  a resposta do  outro, Sócrates visava  acessar  crenças  e  verdades  culturais  que  pudessem  desestabilizar a  universalidade  de uma dada  verdade ou  ponto de vista e que, muitas vezes, os próprios falantes não  compreendiam (ZAPPEN, 2004). 

(iii) A situação que caracteriza o diálogo socrático se  sobrepõe ao uso da técnica anácrise, incitando os sujeitos a  falarem  suas  opiniões  e  idéias,  como  uma  situação  de  tribunal, de julgamento de sentença de morte, de confissão,  etc. 

(iv) As opiniões e verdades expressas vinculam‐se às  imagens das pessoas, de forma que quando uma idéia é posta em  cheque, os sujeitos também estão implicados nisso. Essa prática  invoca os sujeitos a assumirem corajosamente e politicamente a  responsabilidade (autoria) por suas crenças publicamente, de  forma dialógica, ou seja, respondendo a interpelações. 

(v)  Os  personagens  do  diálogo  socrático  são  ideológicos, sejam eles os discípulos de Sócrates, o próprio 

Sócrates  ou  qualquer  outro  interlocutor  seu.  Trata‐se  de  colocar as hierarquias e posições autoritárias em suspenso –  inclusive a do próprio Sócrates – para que o diálogo, como  carnavalização, seja possível, ou seja, um diálogo que coloca  em xeque as distinções ao levar em conta todas as idéias e  crenças,  sem  a  priorização  de  uma  (suposta)  verdade  essencial:  

 

Apesar da forma literária sumamente complexificada e da  profundidade  filosófica  do  diálogo  socrático,  seu  fundamento carnavalesco não suscita qualquer dúvida (...)  A própria descoberta socrática da natureza dialógica do  pensamento  e  da  verdade  pressupõe  a  familiarização  carnavalesca das relações entre as pessoas que participam  do diálogo, a abolição de todas as distâncias entre elas  (BAKHTIN, 1929/1963:113‐114). 

 

A carnavalização supõe abertura, instabilidade, paródia  e zombaria dos comportamentos e discursos sérios, fechados,  oficiais e hierarquizados. Essa visão de mundo foi tematizada  por Bakhtin em seus estudos sobre a cultura popular na Idade  Média, em que o carnaval “era o triunfo de uma espécie de  liberação temporária da verdade dominante do regime vigente,  de  abolição  provisória  de  todas  as  relações  hierárquicas,  privilégios, regras e tabus” (BAKHTIN, 1940/1965:8).  

A festa do carnaval tinha como palco a praça pública  onde as diferenças hierárquicas eram inexistentes e certas  regras eram postas em suspenso, fazendo aparecer uma outra  dinâmica de funcionamento social e político, gerando novas  formas de comunicação e, portanto, novos gêneros e formas  linguísticas. A praça pública também serviu de palco aos  diálogos de Sócrates, inclusive à sua condenação e execução: 

tratava‐se de um local onde a liberdade de pensamento e de 

construção das verdades e a coragem e responsabilidade pela  palavra enunciada publicamente conferiam um tom ético‐

político  ao  diálogo  socrático.  A  dimensão  pública  que  caracteriza tanto os diálogos de Sócrates quanto o carnaval  medieval não existe apenas como um espaço de visibilidade e  de oposição à dimensão privada e familiar, mas, sobretudo,  como um espaço político de liberdade onde os embates e  debates  filosóficos  e  éticos  assumem  uma  função  de  desestabilizar e de resistir às verdades e ideologias oficiais e  autoritárias. Esta dimensão  política do espaço público na  modernidade  foi,  segundo  Arendt  e  conforme  será  visto  adiante, substituída pela dimensão social em que imperam a  massificação  e  normatização  dos  comportamentos  em  detrimento do diálogo e da singularidade dos sujeitos.   

Avaliando  a  partir  de  um  prisma  político  essas  características do diálogo socrático e as formas de recepção da  palavra alheia, tem‐se que os diálogos entre culturas, sujeitos,  línguas,  grupos  sociais  etc.  podem  assumir  dois  caminhos  divergentes e ás vezes relacionados de forma tensa e conflitante: 

por  um  lado  tem‐se  uma  forma  autoritária,  monológica,  impositiva e cristalizadora de relação com o outro, que passa a  ser  objetivado e,  por  isso,  tem  suas  vozes,  crenças,  idéias,  opiniões  e  verdades  apagadas,  censuradas,  excluídas  ou  ridicularizadas. Esse modelo monológico e retórico está na base  de práticas imperialistas, colonizadoras e totalitárias, em que o  poder  opera  negando,  ocultando,  silenciando  ou  tornando  invisível.  

Este tipo de poder, que opera por um modelo jurídico,  funciona  de  forma  repressiva  e  tem  como  características  (FOUCAULT, 1999b): (i) rejeitar, excluir e mascarar; (ii) ditar  as regras de funcionamento: o que é permitido ou não; (iii)  interditar  certas  práticas  e  discursos  até  o  seu 

desaparecimento;  (iv)  censurar  que  se  fale,  ignorar  a  existência e tornar o lícito em ilícito: mutismo, inexistência e  não‐manifestação;  (v)  operar  em  todos  as  escalas,  macro  (Estado,  instituições)  e  micro  (relações),  produzindo  submissões e assujeitamentos. Trata‐se de um poder “cujo  modelo  seria  essencialmente  jurídico,  centrado  exclusivamente no enunciado da lei e no funcionamento da  interdição.  Todos  os  modos  de  dominação,  submissão,  sujeição se reduziriam, finalmente, aos efeitos da obediência” 

(FOUCAULT, 1999b:83). 

  Por  outro  lado,  tem‐se  uma  forma  de  relação  dialógica, em que os sujeitos são impelidos a responder, a  partir  da  contraposição  da  palavra  alheia  ao  próprio  horizonte valorativo, garantindo ao outro e a si mesmo o  direito (dialógico) à resposta. Não se trata aqui de tolerância  em relação às vozes alheias e, tampouco, de uma promoção  do relativismo em que as vozes coexistem “fraternalmente”. 

Trata‐se, sim, de fazer com que essas vozes sociais, culturas,  línguas e sujeitos estabeleçam entre si relações dialógicas,  sendo tais relações necessárias para a própria constituição: 

Ninguém e nenhuma cultura ou sistema de pensamento se  constitui  isoladamente  e  autonomamente  –  os  “eus” 

necessariamente requerem os “outros”. E a base ética dessas  relações  é  a  compreensão,  que  implica  confrontos  e  transformações.  

 

Existe uma concepção muito vivaz, embora unilateral e por  isso falsa, segundo a qual, para compreender melhor a  cultura do outro, é preciso transferir‐se para ela e, depois  de ter esquecido a sua, olhar para o mundo com os olhos da  cultura do outro (...) A compreensão criadora não renuncia  a si mesma, ao seu lugar no tempo, à sua cultura, e nada  esquece” (BAKHTIN, 1970:365‐366). 

Com isso, a compreensão do outro não implica uma  identificação com o outro ou um apagamento de si mesmo,  mas ao contrário: é a partir de um certo fundo aperceptivo que  o  olhar  sobre  o  outro  o  completa,  conferindo‐lhe  um  acabamento temporário e, por isso mesmo, a possibilidade de  renegociações  e  transformações.  Esse  olhar,  contudo,  só  possibilita transformações na medida em que for dialógico, ou  seja, na medida em que ao olhar para o outro, se permite  também ser afetado pelo olhar alheio. Somente o outro é capaz  de enxergar em nós o que não conseguimos individualmente: 

 

Colocamos para a cultura do outro novas questões que ela  mesma não se colocava; nela procuramos respostas a essas  questões, e a cultura do outro nos responde, revelando‐nos  seus novos aspectos, novas profundidades de sentido. Sem  levar nossas questões não podemos compreender nada do  outro de modo criativo (BAKHTIN, 1970:366). 

   

O diálogo com os outros, sejam interlocutores presentes  ou  não,  culturas,  temporalidades,  sistemas  de  pensamento,  entre  outros,  com  base  na  compreensão  criativa,  requer,  retomando as características do gênero socrático, a justaposição  e confrontação de vozes e verdades em que os sujeitos, ao  assumirem  publicamente  um  dado  ponto  de  vista  e  submeterem‐no a apreciações valorativas, constituem também  uma dada identidade. Neste caso, Sócrates não desempenhava  o papel de juiz que extirpa as verdades para depois submetê‐las  a uma avaliação superior, mas opera parodiando as verdades  estabelecidas, construindo e hibridizando verdades, tendo como  referência a responsabilidade pelo dito, a coragem de dizer e de  se submeter ao exame dos outros (que coloca em xeque as  inconsistências,  contradições  e  falsidades)  e  a  justiça  das  avaliações.  

No documento NO MUNDO DA LINGUAGEM: (páginas 133-140)