2. Bakhtin e seu Círculo
2.2 Diálogos socráticos e dialogismo
incorporavam o estilo socrático de construção dialógica da verdade, retomavam conversas deste filósofo. Esses diálogos – especialmente associados a uma fase mais antiga dos diálogos de Platão36 –, embora vinculados às esferas filosófica e política, não tinham uma constituição retórica37, dialética e monológica, mas sim carnavalesca, dialógica, centrífuga, daí sua natureza política e anti‐imperialista. Com isso, o diálogo socrático centra‐se mais nos processos de compreensão, responsabilidade, argumentação e negociação de sentidos do que na persuasão, no convencimento ou apagamento de alguma verdade ou ponto de vista em prol do apaziguamento dos conflitos. Por isso, acredita‐se que sua constituição colabora para se pensar as formas de assimilação/recepção da palavra alheia.
Dentre as características do gênero socrático, Bakhtin (1929/1963) elenca:
(i) O diálogo socrático prioriza o caráter dialógico da verdade e da forma de construção da verdade em oposição à verdade monológica, oficial e previamente dada. Esse dialogismo se centra na relação que os sujeitos estabelecem com a verdade: ao invés de submeterem‐se a idéias
36 Esta fase anterior de Sócrates revelaria uma face mais ética, inconclusiva
e preocupada com questões da vida do que filosófica ou focada no conhecimento e na retórica. O interesse de Sócrates estaria mais na forma como as pessoas vivem (de maneira virtuosa) do que em suas crenças e conhecimentos. (ZAPPEN, 2004)
37 Segundo Bakhtin (apud EMERSON in BAKHTIN, 1929/1963:38): “In rhetoric there are the unconditionally right and the unconditionally guilty; there is total victory, and annihilation of the opponent. In dialogue, annihilation of the opponent also annihilates the very dialogic sphere in which discourse lives. . . . This sphere is very fragile and easily destroyed (the slightest violence is sufficient, the slightest reference to authority, etc.).”
previamente dadas e cristalizadas, eles as compreendem à luz de seu fundo aperceptivo e, com isso, respondem ativamente, ou seja, estabelecem uma relação de contraposição, polêmica, aceitação, entre outros, com aquelas idéias. Esse gênero quando incorporado por filosofias posteriores acabou tendo o seu dialogismo apagado pelo dogmatismo filosófico e religioso.
(ii) O gênero socrático apresenta duas características:
síncrese e anácrise. A primeira corresponde à confrontação de vozes e discursos sobre um mesmo objeto; a segunda diz respeito a uma certa técnica de instigar, pelo uso da palavra, o interlocutor a expressar suas idéias e de submetê‐las ao processo de construção da verdade e, portanto, às incongruências, contradições e fragilidades que poderiam portar. Ao provocar a resposta do outro, Sócrates visava acessar crenças e verdades culturais que pudessem desestabilizar a universalidade de uma dada verdade ou ponto de vista e que, muitas vezes, os próprios falantes não compreendiam (ZAPPEN, 2004).
(iii) A situação que caracteriza o diálogo socrático se sobrepõe ao uso da técnica anácrise, incitando os sujeitos a falarem suas opiniões e idéias, como uma situação de tribunal, de julgamento de sentença de morte, de confissão, etc.
(iv) As opiniões e verdades expressas vinculam‐se às imagens das pessoas, de forma que quando uma idéia é posta em cheque, os sujeitos também estão implicados nisso. Essa prática invoca os sujeitos a assumirem corajosamente e politicamente a responsabilidade (autoria) por suas crenças publicamente, de forma dialógica, ou seja, respondendo a interpelações.
(v) Os personagens do diálogo socrático são ideológicos, sejam eles os discípulos de Sócrates, o próprio
Sócrates ou qualquer outro interlocutor seu. Trata‐se de colocar as hierarquias e posições autoritárias em suspenso – inclusive a do próprio Sócrates – para que o diálogo, como carnavalização, seja possível, ou seja, um diálogo que coloca em xeque as distinções ao levar em conta todas as idéias e crenças, sem a priorização de uma (suposta) verdade essencial:
Apesar da forma literária sumamente complexificada e da profundidade filosófica do diálogo socrático, seu fundamento carnavalesco não suscita qualquer dúvida (...) A própria descoberta socrática da natureza dialógica do pensamento e da verdade pressupõe a familiarização carnavalesca das relações entre as pessoas que participam do diálogo, a abolição de todas as distâncias entre elas (BAKHTIN, 1929/1963:113‐114).
A carnavalização supõe abertura, instabilidade, paródia e zombaria dos comportamentos e discursos sérios, fechados, oficiais e hierarquizados. Essa visão de mundo foi tematizada por Bakhtin em seus estudos sobre a cultura popular na Idade Média, em que o carnaval “era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” (BAKHTIN, 1940/1965:8).
A festa do carnaval tinha como palco a praça pública onde as diferenças hierárquicas eram inexistentes e certas regras eram postas em suspenso, fazendo aparecer uma outra dinâmica de funcionamento social e político, gerando novas formas de comunicação e, portanto, novos gêneros e formas linguísticas. A praça pública também serviu de palco aos diálogos de Sócrates, inclusive à sua condenação e execução:
tratava‐se de um local onde a liberdade de pensamento e de
construção das verdades e a coragem e responsabilidade pela palavra enunciada publicamente conferiam um tom ético‐
político ao diálogo socrático. A dimensão pública que caracteriza tanto os diálogos de Sócrates quanto o carnaval medieval não existe apenas como um espaço de visibilidade e de oposição à dimensão privada e familiar, mas, sobretudo, como um espaço político de liberdade onde os embates e debates filosóficos e éticos assumem uma função de desestabilizar e de resistir às verdades e ideologias oficiais e autoritárias. Esta dimensão política do espaço público na modernidade foi, segundo Arendt e conforme será visto adiante, substituída pela dimensão social em que imperam a massificação e normatização dos comportamentos em detrimento do diálogo e da singularidade dos sujeitos.
Avaliando a partir de um prisma político essas características do diálogo socrático e as formas de recepção da palavra alheia, tem‐se que os diálogos entre culturas, sujeitos, línguas, grupos sociais etc. podem assumir dois caminhos divergentes e ás vezes relacionados de forma tensa e conflitante:
por um lado tem‐se uma forma autoritária, monológica, impositiva e cristalizadora de relação com o outro, que passa a ser objetivado e, por isso, tem suas vozes, crenças, idéias, opiniões e verdades apagadas, censuradas, excluídas ou ridicularizadas. Esse modelo monológico e retórico está na base de práticas imperialistas, colonizadoras e totalitárias, em que o poder opera negando, ocultando, silenciando ou tornando invisível.
Este tipo de poder, que opera por um modelo jurídico, funciona de forma repressiva e tem como características (FOUCAULT, 1999b): (i) rejeitar, excluir e mascarar; (ii) ditar as regras de funcionamento: o que é permitido ou não; (iii) interditar certas práticas e discursos até o seu
desaparecimento; (iv) censurar que se fale, ignorar a existência e tornar o lícito em ilícito: mutismo, inexistência e não‐manifestação; (v) operar em todos as escalas, macro (Estado, instituições) e micro (relações), produzindo submissões e assujeitamentos. Trata‐se de um poder “cujo modelo seria essencialmente jurídico, centrado exclusivamente no enunciado da lei e no funcionamento da interdição. Todos os modos de dominação, submissão, sujeição se reduziriam, finalmente, aos efeitos da obediência”
(FOUCAULT, 1999b:83).
Por outro lado, tem‐se uma forma de relação dialógica, em que os sujeitos são impelidos a responder, a partir da contraposição da palavra alheia ao próprio horizonte valorativo, garantindo ao outro e a si mesmo o direito (dialógico) à resposta. Não se trata aqui de tolerância em relação às vozes alheias e, tampouco, de uma promoção do relativismo em que as vozes coexistem “fraternalmente”.
Trata‐se, sim, de fazer com que essas vozes sociais, culturas, línguas e sujeitos estabeleçam entre si relações dialógicas, sendo tais relações necessárias para a própria constituição:
Ninguém e nenhuma cultura ou sistema de pensamento se constitui isoladamente e autonomamente – os “eus”
necessariamente requerem os “outros”. E a base ética dessas relações é a compreensão, que implica confrontos e transformações.
Existe uma concepção muito vivaz, embora unilateral e por isso falsa, segundo a qual, para compreender melhor a cultura do outro, é preciso transferir‐se para ela e, depois de ter esquecido a sua, olhar para o mundo com os olhos da cultura do outro (...) A compreensão criadora não renuncia a si mesma, ao seu lugar no tempo, à sua cultura, e nada esquece” (BAKHTIN, 1970:365‐366).
Com isso, a compreensão do outro não implica uma identificação com o outro ou um apagamento de si mesmo, mas ao contrário: é a partir de um certo fundo aperceptivo que o olhar sobre o outro o completa, conferindo‐lhe um acabamento temporário e, por isso mesmo, a possibilidade de renegociações e transformações. Esse olhar, contudo, só possibilita transformações na medida em que for dialógico, ou seja, na medida em que ao olhar para o outro, se permite também ser afetado pelo olhar alheio. Somente o outro é capaz de enxergar em nós o que não conseguimos individualmente:
Colocamos para a cultura do outro novas questões que ela mesma não se colocava; nela procuramos respostas a essas questões, e a cultura do outro nos responde, revelando‐nos seus novos aspectos, novas profundidades de sentido. Sem levar nossas questões não podemos compreender nada do outro de modo criativo (BAKHTIN, 1970:366).
O diálogo com os outros, sejam interlocutores presentes ou não, culturas, temporalidades, sistemas de pensamento, entre outros, com base na compreensão criativa, requer, retomando as características do gênero socrático, a justaposição e confrontação de vozes e verdades em que os sujeitos, ao assumirem publicamente um dado ponto de vista e submeterem‐no a apreciações valorativas, constituem também uma dada identidade. Neste caso, Sócrates não desempenhava o papel de juiz que extirpa as verdades para depois submetê‐las a uma avaliação superior, mas opera parodiando as verdades estabelecidas, construindo e hibridizando verdades, tendo como referência a responsabilidade pelo dito, a coragem de dizer e de se submeter ao exame dos outros (que coloca em xeque as inconsistências, contradições e falsidades) e a justiça das avaliações.