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Mudanças linguísticas e discursivas

No documento NO MUNDO DA LINGUAGEM: (páginas 71-86)

dada  época histórica. As  transformações  se inscrevem na  relação entre as práticas (discursivas e não‐discursivas), as  relações sociais e os sistemas ideológicos estabilizados ou  flutuantes.  E  nesse  processo,  Bakhtin/Voloshinov  (1929)  afirma que a palavra, por ser o fenômeno ideológico por  excelência,  assume  papel  fundamental  de  sinalização,  de  indicação (e de produção) dessas mudanças.  

  O estudo das transformações históricas das ideologias  circulantes  poderia  ser feito,  segundo  Bakhtin/Voloshinov  (1929)  a  partir  de  três  direções:  (a)  estudo  da  evolução  semântica, da história das verdades (do conhecimento) e da  história  da  literatura  (da  arte);  (b)  vinculado  à  anterior,  estudo da evolução das línguas como material ideológico que  reflete  e  refrata  uma  dada  realidade  social  e  os  sujeitos  sociais; e (c) “estudo da evolução social da palavra na própria  palavra” (1929:199), que trata, por exemplo, da maneira pela  qual a transmissão dos discursos alheios se materializa na  língua.     

  Sobre  a  mudança  da  língua,  Bakhtin/Voloshinov  (1929) propõe o seguinte percurso: há transformações nas  relações  sociais Æ  as interações verbais que  caracterizam  essas relações se alteram Æ as formas de comunicação verbal  (os gêneros dos discursos) se modificam Æ as formas da  língua mudam. A questão inicial que se faz a este modelo  retoma a pergunta que abre a obra Marxismo e Filosofia da  Linguagem: Se não há relação de causalidade entre a realidade  social  e  a  linguagem,  de  que  maneira  os  processos  de  mudança  linguística  podem  ser  pensados  em  relação  à  realidade sócio‐econômica‐política‐cultural e vice‐versa? 

  Para  refletir  sobre  essa  questão,  a  noção  de  evolução/mudança será esmiuçada a partir dos trabalhos de  Bakhtin, envolvendo tanto seus escritos iniciais de cunho 

sociológico até seus escritos posteriores, de natureza mais  literária e epistemológica. Antes de  proceder ao  tema da  mudança,  julga‐se  pertinente  retomar  a  noção  de  língua  envolvida:  Bakhtin  desmembra  essa  noção  em  língua‐

estrutura (o sistema das formas abstratas) e língua‐enunciado  (os  signos  ideológicos  e  singulares),  estando  ambas  vinculadas.  As  teorias  de  mudança  e  variação  que  tradicionalmente  têm  se  ocupado  do  estudo  das  formas  linguísticas18,  embora  criem  possibilidades  teóricas  pertinentes para se refletir acerca da questão dos sentidos  ideológicos  e  dos  discursos,  dedicam  pouca  atenção  ao  estudo  dos  processos  de  mudança  envolvendo  a  língua‐

enunciado e seus efeitos sobre a estrutura das línguas. Com  isso, embora Bakhtin não tematize diretamente o fenômeno  de mudança linguística (assim como não o faz com a noção  de história), esse assunto está fortemente presente, porém de  uma forma um pouco obscura, não linear e não sistematizada  em seus trabalhos.  

  Assim, nesta seção serão retomadas algumas idéias  vinculadas à noção de mudança da língua, entendida como  língua‐enunciado e, na medida do possível, refletir acerca  dos efeitos que as mudanças discursivas produzem sobre a 

18 Em 1968, Weireinch, Labov Herzog formularam cinco problemas  serem solucionadas por uma teoria da mudança, que foram retomados  por  Labov  (1982)  na  sua  revisão  daqueles  escritos.  Os  problemas  elencados são: restrição, encaixamento, avaliação, transição  implementação. Para uma aproximação entre as idéias de Labov de  Bakhtin, ver: SEVERO, C. G.. estudo da linguagem em seu contexto  social: um diálogo entre Bakhtin e Labov. DELTA. PUC‐SP, v. 25:267‐284,  2009. 

_____. Por uma perspectiva social dialógica da linguagem: repensando a noção  de indivíduo. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina,  Programa de Pós‐Graduação em Lingüística. Florianópolis:2007. 

língua‐sistema. De início, retomando a seção 1.1, nota‐se que  a relação entre realidade e língua é complexa e envolve uma  série de fatores interligados entre si. Contudo, a maneira pela  qual  língua  e  mundo  se  relacionam  não  parece  estar  totalmente clara – embora se saiba que estes não estabelecem  entre  si  uma  relação  de  exterioridade  –  nos  escritos  de  Bakhtin.  A  seguir  apresenta‐se  uma  longa  citação  de  Marxismo e Filosofia da Linguagem a partir da qual se pretende  destrinchar  a  visão  bakhtiniana  concernente  à  mudança  linguística: 

 

À medida que a base econômica se expande, ela promove  uma real expansão no escopo de existência que é acessível,  compreensível e vital para o homem. O criador de gado  pré‐histórico  não  tinha preocupações,  não  havia  muita  coisa que realmente o tocasse. O homem do fim da era  capitalista  está  diretamente  relacionado  com  todas  as  coisas, seus interesses atingem os cantos mais remotos da  terra e mesmo as mais distantes estrelas. Esse alargamento  do horizonte apreciativo efetua‐se de maneira dialética. Os  novos aspectos da existência, que foram integrados no  círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e  da emoção humana, não coexistem pacificamente com os  elementos que se integraram à existência antes deles; pelo  contrário, entram em luta com eles, submetem‐nos a uma  reavaliação, fazem‐nos  mudar  de  lugar  no  interior  da  unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética  reflete‐se na evolução semântica. Uma nova significação se  descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar  em contradição com ela e de reconstruí‐la. O resultado é  uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da  existência. Não há nada na composição do sentido que  possa colocar‐se acima da evolução, que seja independente  do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade 

em  transformação  alarga‐se  para  integrar  o  ser  em  transformação.  Nada  pode  permanecer  estável  nesse  processo. É por isso que a significação, elemento abstrato  igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por  suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de  uma  nova  significação  com  uma  estabilidade  e  uma  identidade  igualmente  provisórias.  (BAKHTIN/ 

VOLOSHINOV, 1929:139)   

Nota‐se  neste  trecho  uma  filiação  forte  de  Bakhtin/Voloshinov a uma visão marxista da realidade sócio‐

histórica.  As relações sociais são vistas como relações de  produção e a realidade social que engloba tais relações é a  realidade  econômica,  sendo  que  mudanças  linguísticas  e  ideológicas  seriam  determinadas  por  mudanças  na  infra‐

estrutura19.  Essa  relação  de  determinação/  causalidade  é  atribuída  por  Morson  e  Emerson  (2008:222)  a  uma  perspectiva  marxista  da  linguagem  compartilhada  por  Voloshinov.  Bakhtin  se  distanciaria  desta  visão,  pois  a 

“causalidade pertence apenas ao dado e não deixa espaço  conceitual para o criado. As explicações causais de qualquer  tipo negam, em última análise, a não finalizabilidade e a  responsabilidade”, temas tão caros à teoria bakhtiniana.  

Um resgate sucinto  da noção de história para  Marx  talvez ajude a elucidar a perspectiva de mudança presente na  longa citação acima. Para o intelectual alemão, a concepção de  história engloba duas visões, uma empírica e outra filosófica. A 

19 “A evolução  semântica na língua  é sempre  ligada  à evolução  do  horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte  apreciativo  – no  sentido  da totalidade  de  tudo  que  tem  sentido  importância  aos  olhos  de  um  determinado  grupo –  é  inteiramente  determinada  pela  expansão  da  infra‐estrutura  econômica.” 

(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929:139).  

primeira – denominada de materialismo histórico – é entendida  como  “[de  um  lado]  uma  teoria  geral  da  estrutura  e  da  dinâmica de qualquer modo de produção; de outro, é uma  teoria da sequência histórica de modos de produção” (ELSTER,  1989:120), sendo que cada modo desses possui uma certa base  econômica – onde há contradições entre as relações de produção  e  as  forças  produtivas  –  e  uma  superestrutura  política  e  ideológica20. A segunda visão, filosófica, foi influenciada pelos  escritos de Hegel e baseia‐se em uma perspectiva histórica de  desenvolvimento (sociedade de pré‐classes → de classes → de  pós‐classes), que se volta para um fim. Assim, a filosofia de  Marx foi influenciada pela idéia dominante no século XIX de  progresso como regra universal, de modo que o capitalismo  seria apenas uma etapa do processo econômico, vindo a ser  substituído pelo socialismo e pelo comunismo. Numa visão  dialética, o comunismo, como sociedade sem classes, seria o  resultado da luta dialética – a luta de classes.  

A história, portanto, pode ser definida como “sucessão  de  diferentes  gerações,  cada  uma  das  quais  explora  os  materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas  pelas  gerações  anteriores”  (MARX,  1996:70).  O  desenvolvimento histórico se fundamentaria em três aspectos: 

(a)  na  produção  de  meios  que  possibilitem  suprir  as  necessidades básicas de existência; (b) na produção de novos  meios estimulada por novas necessidades geradas a partir das  primeiras, e assim por diante; (c) no surgimento de famílias  (economias  domésticas)  que,  posteriormente,  estariam 

20 A perspectiva de base e de superestrutura de Marx não parece postular  uma  relação  de  causalidade  entre  ambas,  mas  “afirma  que  tipos  específicos  de  atividades  políticas  intelectuais  observados  em  sociedades de classes podem ser explicados por referência formas  igualmente específicas de organização econômicas.” (ELSTER, 1989:130). 

vinculadas à idéia de propriedade privada. Esses três aspectos  aproximam  as  necessidades  e  os  modos  de  produção  às  relações cooperativas; ou seja, a história é feita a partir dos  meios de produção mediados pelas relações (MARX, 1996).  

Nesta  perspectiva,  as  novas  relações  de  produção  instauradas por um novo sistema econômico criam condições  para novas percepções e avaliações do mundo, que passam a  entrar em relação de tensão com as avaliações e formas de ver  o mundo anteriores. Essas contradições, ao se materializarem  nos  signos  ideológicos,  potencializam  sua  natureza  polissêmica e pluriacentuada e, portanto, as disputas pela  verdade e pelos sentidos. É na relação de choque entre os  horizontes avaliativos – instaurado, na ótica marxista, pelos  conflitos econômicos e de relações de produção – que os  processos  de  mudança  e  de  transformação  linguístico‐

semântico‐ideológicos podem ser vistos. Nesta abordagem,  as revoluções sociais teriam um papel crucial na instauração  de novas formas de percepção e de avaliação do mundo e,  por tabela, de novas possibilidades  semântico‐ideológicas. 

Esse sentido ideológico, por sua vez, absorveria e modificaria  os sentidos cristalizados, normatizados e dicionarizados.  

   Note‐se que o viés marxista presente na linguística  soviética dos anos 1920‐5021: (i) reconhecia que a língua seria  parte  da  superestrutura  e,  dessa  forma,  passaria  por  mudanças, ou seja, estágios de desenvolvimento de acordo 

21 Um outro trabalho de peso da época, que trata do pensamento marxista foi 

de Polivanov, 1931, intitulado Za marksistskoe yazykoznanie [For Marxist  Linguistics] (REZNICK, 2001). Salienta‐se que a partir dos anos 1920, com  as influências de Stalin, pensamento marxista na política oficial se  deteriorou; contudo, essa influência não atingiu diretamente o pensamento  acadêmico devido à distância de muitos intelectuais da vida política,  mesmo sendo eles vítimas de acusações de serem “protetores da cultura  proletária” no decorrer da Revolução Cultural (1928‐31) (BRANDIST, 2005).    

com a base econômica de diferentes sociedades; (ii) postulava  que  as  línguas  não  seriam  “nacionais”,  mas  operariam  conforme o funcionamento social de classes – línguas faladas  pela  mesma  classe  em  diferentes  países  seriam  mais  semelhantes do que línguas faladas por classes diferentes em  um mesmo país. (BRANDIST, 2005).  

Distanciando‐se  desta  visão  tradicional,  Bakhtin/ 

Voloshinov (1929) afirmava que (i) a superestrutura não seria  suficiente, conforme acreditava Marr (1865‐1934) – fundador  do marrismo, doutrina oficial na União Soviética entre os  anos 1920 e 1950 –, para especificar as características do signo  verbal, uma vez que esse desempenha o papel de mediador  entre  a  infra‐estrutura  e  a  superestrutura:  as  condições  materiais da vida e a divisão do trabalho estão em relação  dialética  com  os  valores  ideológicos  do  signo;  (ii)  a  comunidade linguística não poderia se identificar com uma  única classe, em uma sociedade de classes, já que o signo  linguístico, conforme Bakhtin/Voloshinov é plural, ou seja, é  constituído por vários acentos de valores (PONZIO, 1998).  

Ademais, Bakhtin/Voloshinov também se distancia da  visão marxista tradicional quanto a dois outros aspectos: (a) a  relação entre a realidade e as ideologias: para o filósofo russo,  a  ideologia  não  é  apenas  determinada  pelas  condições  concretas,  mas  também  determinante  destas;  (b)  o  lugar  central conferido à dimensão econômica como reguladora  das relações: embora a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem  mencione reiteradamente os efeitos da esfera econômica22 e 

22 “A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos 

sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são  diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais econômicas.  realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima  da base econômica.” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929:34). 

das relações de produção nas formas de comunicação verbal,  nota‐se,  nos  escritos  posteriores  de  Bakhtin,  que  essa  centralidade vai sendo dissolvida especialmente pelas idéias  de forças operantes sobre a língua e pelo dialogismo. 

 Assim, Bakhtin/Voloshinov diverge de um marxismo  tradicional  em  que  as  relações  intersubjetivas  são  determinadas pela base econômica das relações de produção. 

Para o  filósofo  russo,  os  sujeitos são  tanto determinados  como determinam sua relação com a língua e, por tabela, com  outros  sujeitos.  Neste  caso,  o  que  as  teorias  marxista  e   bakhtiniana   não parecem destrinchar é a maneira pela qual  os sujeitos mudam sua forma de organização e relação social  alterando, com isso, suas condições materiais de existência; 

ou  seja,  esclarece pouco  os  processos  de mudança  social  (BERNARD‐DONALS, 1994). 

Embora Bakhtin não trate diretamente do tema da  história,  esta,  visivelmente,  realiza‐se  nos  horizontes  avaliativos  dos  sujeitos  e,  portanto,  nos  enunciados  produzidos  por  esses  sujeitos  em  dada  realidade  sócio‐

econômico‐política de interação verbal. Ademais, embora a  idéia  de revolução ocupe  um papel importante na teoria  marxista, não se trata de pensar, no viés bakhtiniano, as  mudanças  linguísticas  (semântico‐axiológicas)  atreladas  às  revoluções,  dado  que  as  mudanças  são  contínuas,  ininterruptas,  permanentes,  operando  localmente  nas  relações intersubjetivas, ou seja, no processo dialógico de  negociação de sentidos.  

  Tendo feito essa apresentação e discussão geral da  idéia  de  mudança/evolução  de  Bakhtin/Voloshinov,  especialmente em relação à fase intelectual sociológica dos  anos  1920‐1930,  passa‐se  a  seguir  a  refletir  mais  especificamente  sobre  a  noção  de  heterogeneidade  e 

diversidade (linguístico‐discursiva) nos trabalhos de Bakhtin,  fortemente presente em O Discurso no Romance (1934‐35), em  que o filósofo russo complexifica sua concepção enunciativa e  plural de língua ao abordar as noções de plurilinguismo,  heteroglossia  (dialogizada),  plurivocalidade  e  pluridiscursividade. Trata‐se de pensar a língua como uma  realidade heterogênea, mutável e dinâmica ao colocar em  evidência  sua  realidade  discursiva. Uma “mesma”  língua  (língua nacional, língua de trabalho, dialetos etc.) é habitada  por uma variedade de vozes sociais, de linguagens sociais, de 

“pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua  interpretação  verbal,  perspectivas  específicas  objetais,  semânticas e axiológicas” (p. 98), que estabelecem entre si  relações dialógicas. Note‐se que, embora Bakhtin defenda a  coexistência de vozes plurais e sociais, não se trata de um  relativismo, em que cada verdade ou ponto de vista exista de  forma  autônoma  e  monológica,  mas  de  vozes  que  estabelecem entre si relações dialógicas, em que as verdades  são construídas nas relações de sentido (e de poder) que  estabelecem  entre  si23.  As  relações  dialógicas  entre  essas  vozes sociais e ideológicas definem processos de evolução e  mudança semântica e, por tabela, linguística.  

  A estratificação das línguas em linguagens sociais e a  variabilidade de vozes ideológicas que ressoam nas línguas  estão  intrinsecamente  vinculadas  à  relação  entre  língua,  mundo e sujeitos. As forças sociais que operam no mundo,  produzindo tanto homogeneizações como desestabilizações 

23 “We see no special need to point out that the polyphonic approach has  nothing in common with relativism (or with dogmatism). But it should be  noted  that  both  relativism  and  dogmatism  equally  exclude  all  argumentation, all authentic dialogue, by making it either unnecessary  (relativism) or impossible (dogmatism).” (BAKHTIN, 1929/1963: 69). 

operam também sobre as percepções, as avaliações sociais, os  regimes de subjetivação e os enunciados. Trata‐se das forças  centrípetas (oficiais) e centrífugas (não‐oficiais), sendo que as  primeiras  atuam  normalizando,  unificando  e apagando  a  heterogeneidade  e  as  segundas  atuam  produzindo  estratificações, variações e desestabilizações. No universo da  língua‐enunciado, “cada enunciação concreta do sujeito do  discurso  constitui  o  ponto  de  aplicação  seja  das  forças  centrípetas, como das centrífugas” (BAKHTIN, 1934‐35:82). 

Embora  as  forças  centrífugas  desestabilizem  a  dimensão oficial, elas não constituem um bloco homogêneo e  único,  mas  são  variadas,  desordenadas,  sem  centro  e  distribuídas de forma desigual,  produzindo estratificações  das linguagens, práticas sociais e ideologias que circulam e  caracterizam a vida cotidiana e trivial. Com isso, “a mudança  linguística não é sistêmica, mas desordenada, produzida por  eventos  imprevisíveis  da  atividade  cotidiana  (...)  ela  não  resulta  de  forças  puramente  abstratas  (desequilíbrios  sistêmicos), mas de ações de pessoas reais em resposta às  suas  vidas  diárias”  (MORSON  &  EMERSON,  2008:160). 

Dessa  forma,  é  nas  esferas  móveis  de  circulação  das  ideologias cotidianas que os germes das mudanças sociais e  linguísticas circulam e produzem desestabilizações, deslizes e  pequenas transformações.  

  Como visto, o resultado  da tensão  entre as  forças  centrífugas e centrípetas é a produção da heteroglossia, que  confere existência: (i) a uma pluralidade de vozes sociais em  uma “mesma” língua; (ii) à relação dialógica de línguas e  dialetos;  (iii)  à  relação  dialógica  entre  vozes  sociais  circulantes por diferentes línguas e dialetos; (iv) à hibridação  de línguas/dialetos e vozes sociais. Essa heteroglossia é fruto  de relações de sentidos, de tensão e de confronto existentes 

em  um  mesmo  espaço‐tempo  ou  em  temporalidades  e  espacialidades diferentes: “Nem os sentidos do passado, isto  é, nascidos do diálogo dos séculos passados, podem jamais  ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles  sempre  irão  mudar  (renovando‐se)  no  processo  de  desenvolvimento  subsequente,  futuro  do  diálogo” 

(BAKHTIN, 1970‐71:410). 

E  dado  que  as  forças  centrífugas  operam  desestabilizando,  desorganizando,  desestruturando  e  conservando o caos e a abertura, a Linguística ou qualquer  outro campo de estatuto científico não consegue lidar com  essa realidade pluralizada e complexa, visto que objetifica,  sistematiza e reifica seu objeto de estudo, o que se evidencia,  por exemplo, na criação de dicionários e gramáticas como  forma de normatização das línguas24. Aliados a esta tradição  centralizadora  e  unificadora  da  língua  estariam,  segundo  Bakhtin, a poética de Aristóteles e de Agostinho, a teoria  gramatical de Leibniz e o ideologismo de Humboldt ao, de  formas diferentes, favorecerem  

 

a vitória de uma língua proeminente (dialeto) sobre outras,  a  expulsão  de  certas  línguas,  sua  subjugação,  o  esclarecimento graças à palavra verdadeira, a participação  dos bárbaros e das camadas sociais numa língua única da  cultura  e  da  verdade,  a  canonização  dos  sistemas  ideológicos, a filologia e seus métodos de estudo e ensino  de línguas mortas (...) (BAKHTIN, 1934‐35:81). 

 

Com isso, o desafio da Metalinguística seria, a partir  de um certo diálogo com a Linguística, focalizar o estudo da 

24 Sobre a normatização/gramatização da língua como tecnologia de poder, 

ver AUROUX (2009). 

linguagem como um fenômeno singular, único e dialógico,  integrante de uma realidade fluida, tensa e em constante  movimentação, na qual indivíduos se constituem em sujeitos  sociais. Uma direção temática de estudo metalinguístico que  integre  vozes  sociais,  língua‐enunciado,  contexto  social  e  variabilidade  gira  em  torno  da  noção  de  estilo,  que  será  sucintamente desmembrada a seguir. 

  A relação entre estilo e gramática retoma a distinção  entre  língua‐enunciado  e  língua‐sistema  ou  entre  tema  e  significação.  Os  estilos  constituem  os  enunciados  e  estão  sempre ligados à: situação social imediata de produção dos  enunciados  (às  formas  de  interação  verbal,  os  gêneros  discursivos), ao tema do enunciado, a sua composição, às  escolhas gramaticais (léxico, sintaxe, fonologia), ao tipo  de  relação do falante com os interlocutores, à relação de valor que  o  sujeito  estabelece  com  o  enunciado  e  à  relação  que  o  enunciado produzido estabelece com outros enunciados. Note‐

se, em especial, a relação entre estilo e gênero discursivo: uma  dada forma de interação sócio‐verbal constituída histórico‐

socialmente (gênero) define também estilos específicos que  caracterizam, por exemplo, as linguagens científica, popular,  familiar, jurídica etc. Assim, por um lado, mudanças sociais  interferem nas formas de interação verbal (e estas influenciam  aquelas), que produzem efeitos sobre os estilos e estes, por sua  vez, afetam as formas da língua, sendo que os limites que  diferenciam a língua e o enunciado ficam mais fluidos nos  processos de variação/mudança: 

 

Do nosso ponto de vista, é impossível estabelecer uma  fronteira estrita entre a gramática e a estilística, entre o  esquema gramatical e sua variante estilística. Essa fronteira  é instável na própria vida da língua, onde algumas formas  se encontram num processo de gramaticalização, enquanto 

outras estão em vias de desgramaticalização, e essas formas  ambíguas, esses casos limítrofes, é que apresentam maior  interesse para o linguista; é justamente neles que se podem  captar as tendências da evolução da língua (BAKHTIN/ 

VOLOSHINOV, 1929:158‐159)   

Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos,  são as correias de transmissão entre a história da sociedade  e  a  história  da  linguagem.  Nenhum  fenômeno  novo  (fonético, lexical, gramatical) pode integrar o sistema da  língua  sem ter  sido percorrido  um  complexo e longo  caminho de experimentação e elaboração de gêneros e  estilos. (BAKHTIN, 1952‐53:285) 

 

Os  processos  de  variação/mudança  linguística  têm  como porta de entrada os gêneros discursivos, nos quais a  história sócio‐cultural e a história da língua se materializam. 

Os gêneros discursivos, neste caso, possuem uma memória  discursiva que carrega formas (relativamente) cristalizadas  da comunicação sócio‐cultural‐verbal: “Um gênero vive no  presente, mas sempre relembra  seu  passado, seu início”25  (BAKHTIN,  1929/1963:106).  Quanto  mais  esses  gêneros  definem formas de interação verbal complexas e reificadas,  mais eles tendem à estabilidade, sem, contudo, perderem seu  caráter  de  singularidade.  Diferentemente,  os  gêneros  fortemente ligados às esferas cotidianas tendem a ser mais  plásticos, maleáveis, adaptáveis e abertos a reacentuações e a  hibridações, dado que nestas esferas as ideologias circulantes  são  heterogêneas,  cambiantes  e  diretamente  vinculadas  à  vida diária e concreta dos sujeitos.  

25  “A  genre  lives  in  the  present,  but  always  remembers  its  past,  its  beginning.” 

No documento NO MUNDO DA LINGUAGEM: (páginas 71-86)