dada época histórica. As transformações se inscrevem na relação entre as práticas (discursivas e não‐discursivas), as relações sociais e os sistemas ideológicos estabilizados ou flutuantes. E nesse processo, Bakhtin/Voloshinov (1929) afirma que a palavra, por ser o fenômeno ideológico por excelência, assume papel fundamental de sinalização, de indicação (e de produção) dessas mudanças.
O estudo das transformações históricas das ideologias circulantes poderia ser feito, segundo Bakhtin/Voloshinov (1929) a partir de três direções: (a) estudo da evolução semântica, da história das verdades (do conhecimento) e da história da literatura (da arte); (b) vinculado à anterior, estudo da evolução das línguas como material ideológico que reflete e refrata uma dada realidade social e os sujeitos sociais; e (c) “estudo da evolução social da palavra na própria palavra” (1929:199), que trata, por exemplo, da maneira pela qual a transmissão dos discursos alheios se materializa na língua.
Sobre a mudança da língua, Bakhtin/Voloshinov (1929) propõe o seguinte percurso: há transformações nas relações sociais Æ as interações verbais que caracterizam essas relações se alteram Æ as formas de comunicação verbal (os gêneros dos discursos) se modificam Æ as formas da língua mudam. A questão inicial que se faz a este modelo retoma a pergunta que abre a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem: Se não há relação de causalidade entre a realidade social e a linguagem, de que maneira os processos de mudança linguística podem ser pensados em relação à realidade sócio‐econômica‐política‐cultural e vice‐versa?
Para refletir sobre essa questão, a noção de evolução/mudança será esmiuçada a partir dos trabalhos de Bakhtin, envolvendo tanto seus escritos iniciais de cunho
sociológico até seus escritos posteriores, de natureza mais literária e epistemológica. Antes de proceder ao tema da mudança, julga‐se pertinente retomar a noção de língua envolvida: Bakhtin desmembra essa noção em língua‐
estrutura (o sistema das formas abstratas) e língua‐enunciado (os signos ideológicos e singulares), estando ambas vinculadas. As teorias de mudança e variação que tradicionalmente têm se ocupado do estudo das formas linguísticas18, embora criem possibilidades teóricas pertinentes para se refletir acerca da questão dos sentidos ideológicos e dos discursos, dedicam pouca atenção ao estudo dos processos de mudança envolvendo a língua‐
enunciado e seus efeitos sobre a estrutura das línguas. Com isso, embora Bakhtin não tematize diretamente o fenômeno de mudança linguística (assim como não o faz com a noção de história), esse assunto está fortemente presente, porém de uma forma um pouco obscura, não linear e não sistematizada em seus trabalhos.
Assim, nesta seção serão retomadas algumas idéias vinculadas à noção de mudança da língua, entendida como língua‐enunciado e, na medida do possível, refletir acerca dos efeitos que as mudanças discursivas produzem sobre a
18 Em 1968, Weireinch, Labov e Herzog formularam cinco problemas a serem solucionadas por uma teoria da mudança, que foram retomados por Labov (1982) na sua revisão daqueles escritos. Os problemas elencados são: a restrição, o encaixamento, a avaliação, a transição e a implementação. Para uma aproximação entre as idéias de Labov e de Bakhtin, ver: SEVERO, C. G.. O estudo da linguagem em seu contexto social: um diálogo entre Bakhtin e Labov. DELTA. PUC‐SP, v. 25:267‐284, 2009.
_____. Por uma perspectiva social dialógica da linguagem: repensando a noção de indivíduo. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós‐Graduação em Lingüística. Florianópolis:2007.
língua‐sistema. De início, retomando a seção 1.1, nota‐se que a relação entre realidade e língua é complexa e envolve uma série de fatores interligados entre si. Contudo, a maneira pela qual língua e mundo se relacionam não parece estar totalmente clara – embora se saiba que estes não estabelecem entre si uma relação de exterioridade – nos escritos de Bakhtin. A seguir apresenta‐se uma longa citação de Marxismo e Filosofia da Linguagem a partir da qual se pretende destrinchar a visão bakhtiniana concernente à mudança linguística:
À medida que a base econômica se expande, ela promove uma real expansão no escopo de existência que é acessível, compreensível e vital para o homem. O criador de gado pré‐histórico não tinha preocupações, não havia muita coisa que realmente o tocasse. O homem do fim da era capitalista está diretamente relacionado com todas as coisas, seus interesses atingem os cantos mais remotos da terra e mesmo as mais distantes estrelas. Esse alargamento do horizonte apreciativo efetua‐se de maneira dialética. Os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles, submetem‐nos a uma reavaliação, fazem‐nos mudar de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética reflete‐se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí‐la. O resultado é uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da existência. Não há nada na composição do sentido que possa colocar‐se acima da evolução, que seja independente do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade
em transformação alarga‐se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias. (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, 1929:139)
Nota‐se neste trecho uma filiação forte de Bakhtin/Voloshinov a uma visão marxista da realidade sócio‐
histórica. As relações sociais são vistas como relações de produção e a realidade social que engloba tais relações é a realidade econômica, sendo que mudanças linguísticas e ideológicas seriam determinadas por mudanças na infra‐
estrutura19. Essa relação de determinação/ causalidade é atribuída por Morson e Emerson (2008:222) a uma perspectiva marxista da linguagem compartilhada por Voloshinov. Bakhtin se distanciaria desta visão, pois a
“causalidade pertence apenas ao dado e não deixa espaço conceitual para o criado. As explicações causais de qualquer tipo negam, em última análise, a não finalizabilidade e a responsabilidade”, temas tão caros à teoria bakhtiniana.
Um resgate sucinto da noção de história para Marx talvez ajude a elucidar a perspectiva de mudança presente na longa citação acima. Para o intelectual alemão, a concepção de história engloba duas visões, uma empírica e outra filosófica. A
19 “A evolução semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte apreciativo – no sentido da totalidade de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo – é inteiramente determinada pela expansão da infra‐estrutura econômica.”
(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929:139).
primeira – denominada de materialismo histórico – é entendida como “[de um lado] uma teoria geral da estrutura e da dinâmica de qualquer modo de produção; de outro, é uma teoria da sequência histórica de modos de produção” (ELSTER, 1989:120), sendo que cada modo desses possui uma certa base econômica – onde há contradições entre as relações de produção e as forças produtivas – e uma superestrutura política e ideológica20. A segunda visão, filosófica, foi influenciada pelos escritos de Hegel e baseia‐se em uma perspectiva histórica de desenvolvimento (sociedade de pré‐classes → de classes → de pós‐classes), que se volta para um fim. Assim, a filosofia de Marx foi influenciada pela idéia dominante no século XIX de progresso como regra universal, de modo que o capitalismo seria apenas uma etapa do processo econômico, vindo a ser substituído pelo socialismo e pelo comunismo. Numa visão dialética, o comunismo, como sociedade sem classes, seria o resultado da luta dialética – a luta de classes.
A história, portanto, pode ser definida como “sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores” (MARX, 1996:70). O desenvolvimento histórico se fundamentaria em três aspectos:
(a) na produção de meios que possibilitem suprir as necessidades básicas de existência; (b) na produção de novos meios estimulada por novas necessidades geradas a partir das primeiras, e assim por diante; (c) no surgimento de famílias (economias domésticas) que, posteriormente, estariam
20 A perspectiva de base e de superestrutura de Marx não parece postular uma relação de causalidade entre ambas, mas “afirma que tipos específicos de atividades políticas e intelectuais observados em sociedades de classes podem ser explicados por referência a formas igualmente específicas de organização econômicas.” (ELSTER, 1989:130).
vinculadas à idéia de propriedade privada. Esses três aspectos aproximam as necessidades e os modos de produção às relações cooperativas; ou seja, a história é feita a partir dos meios de produção mediados pelas relações (MARX, 1996).
Nesta perspectiva, as novas relações de produção instauradas por um novo sistema econômico criam condições para novas percepções e avaliações do mundo, que passam a entrar em relação de tensão com as avaliações e formas de ver o mundo anteriores. Essas contradições, ao se materializarem nos signos ideológicos, potencializam sua natureza polissêmica e pluriacentuada e, portanto, as disputas pela verdade e pelos sentidos. É na relação de choque entre os horizontes avaliativos – instaurado, na ótica marxista, pelos conflitos econômicos e de relações de produção – que os processos de mudança e de transformação linguístico‐
semântico‐ideológicos podem ser vistos. Nesta abordagem, as revoluções sociais teriam um papel crucial na instauração de novas formas de percepção e de avaliação do mundo e, por tabela, de novas possibilidades semântico‐ideológicas.
Esse sentido ideológico, por sua vez, absorveria e modificaria os sentidos cristalizados, normatizados e dicionarizados.
Note‐se que o viés marxista presente na linguística soviética dos anos 1920‐5021: (i) reconhecia que a língua seria parte da superestrutura e, dessa forma, passaria por mudanças, ou seja, estágios de desenvolvimento de acordo
21 Um outro trabalho de peso da época, que trata do pensamento marxista foi
de Polivanov, 1931, intitulado Za marksistskoe yazykoznanie [For Marxist Linguistics] (REZNICK, 2001). Salienta‐se que a partir dos anos 1920, com as influências de Stalin, o pensamento marxista na política oficial se deteriorou; contudo, essa influência não atingiu diretamente o pensamento acadêmico devido à distância de muitos intelectuais da vida política, mesmo sendo eles vítimas de acusações de serem “protetores da cultura proletária” no decorrer da Revolução Cultural (1928‐31) (BRANDIST, 2005).
com a base econômica de diferentes sociedades; (ii) postulava que as línguas não seriam “nacionais”, mas operariam conforme o funcionamento social de classes – línguas faladas pela mesma classe em diferentes países seriam mais semelhantes do que línguas faladas por classes diferentes em um mesmo país. (BRANDIST, 2005).
Distanciando‐se desta visão tradicional, Bakhtin/
Voloshinov (1929) afirmava que (i) a superestrutura não seria suficiente, conforme acreditava Marr (1865‐1934) – fundador do marrismo, doutrina oficial na União Soviética entre os anos 1920 e 1950 –, para especificar as características do signo verbal, uma vez que esse desempenha o papel de mediador entre a infra‐estrutura e a superestrutura: as condições materiais da vida e a divisão do trabalho estão em relação dialética com os valores ideológicos do signo; (ii) a comunidade linguística não poderia se identificar com uma única classe, em uma sociedade de classes, já que o signo linguístico, conforme Bakhtin/Voloshinov é plural, ou seja, é constituído por vários acentos de valores (PONZIO, 1998).
Ademais, Bakhtin/Voloshinov também se distancia da visão marxista tradicional quanto a dois outros aspectos: (a) a relação entre a realidade e as ideologias: para o filósofo russo, a ideologia não é apenas determinada pelas condições concretas, mas também determinante destas; (b) o lugar central conferido à dimensão econômica como reguladora das relações: embora a obra Marxismo e Filosofia da Linguagem mencione reiteradamente os efeitos da esfera econômica22 e
22 “A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos
sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas. A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica.” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1929:34).
das relações de produção nas formas de comunicação verbal, nota‐se, nos escritos posteriores de Bakhtin, que essa centralidade vai sendo dissolvida especialmente pelas idéias de forças operantes sobre a língua e pelo dialogismo.
Assim, Bakhtin/Voloshinov diverge de um marxismo tradicional em que as relações intersubjetivas são determinadas pela base econômica das relações de produção.
Para o filósofo russo, os sujeitos são tanto determinados como determinam sua relação com a língua e, por tabela, com outros sujeitos. Neste caso, o que as teorias marxista e bakhtiniana não parecem destrinchar é a maneira pela qual os sujeitos mudam sua forma de organização e relação social alterando, com isso, suas condições materiais de existência;
ou seja, esclarece pouco os processos de mudança social (BERNARD‐DONALS, 1994).
Embora Bakhtin não trate diretamente do tema da história, esta, visivelmente, realiza‐se nos horizontes avaliativos dos sujeitos e, portanto, nos enunciados produzidos por esses sujeitos em dada realidade sócio‐
econômico‐política de interação verbal. Ademais, embora a idéia de revolução ocupe um papel importante na teoria marxista, não se trata de pensar, no viés bakhtiniano, as mudanças linguísticas (semântico‐axiológicas) atreladas às revoluções, dado que as mudanças são contínuas, ininterruptas, permanentes, operando localmente nas relações intersubjetivas, ou seja, no processo dialógico de negociação de sentidos.
Tendo feito essa apresentação e discussão geral da idéia de mudança/evolução de Bakhtin/Voloshinov, especialmente em relação à fase intelectual sociológica dos anos 1920‐1930, passa‐se a seguir a refletir mais especificamente sobre a noção de heterogeneidade e
diversidade (linguístico‐discursiva) nos trabalhos de Bakhtin, fortemente presente em O Discurso no Romance (1934‐35), em que o filósofo russo complexifica sua concepção enunciativa e plural de língua ao abordar as noções de plurilinguismo, heteroglossia (dialogizada), plurivocalidade e pluridiscursividade. Trata‐se de pensar a língua como uma realidade heterogênea, mutável e dinâmica ao colocar em evidência sua realidade discursiva. Uma “mesma” língua (língua nacional, língua de trabalho, dialetos etc.) é habitada por uma variedade de vozes sociais, de linguagens sociais, de
“pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas” (p. 98), que estabelecem entre si relações dialógicas. Note‐se que, embora Bakhtin defenda a coexistência de vozes plurais e sociais, não se trata de um relativismo, em que cada verdade ou ponto de vista exista de forma autônoma e monológica, mas de vozes que estabelecem entre si relações dialógicas, em que as verdades são construídas nas relações de sentido (e de poder) que estabelecem entre si23. As relações dialógicas entre essas vozes sociais e ideológicas definem processos de evolução e mudança semântica e, por tabela, linguística.
A estratificação das línguas em linguagens sociais e a variabilidade de vozes ideológicas que ressoam nas línguas estão intrinsecamente vinculadas à relação entre língua, mundo e sujeitos. As forças sociais que operam no mundo, produzindo tanto homogeneizações como desestabilizações
23 “We see no special need to point out that the polyphonic approach has nothing in common with relativism (or with dogmatism). But it should be noted that both relativism and dogmatism equally exclude all argumentation, all authentic dialogue, by making it either unnecessary (relativism) or impossible (dogmatism).” (BAKHTIN, 1929/1963: 69).
operam também sobre as percepções, as avaliações sociais, os regimes de subjetivação e os enunciados. Trata‐se das forças centrípetas (oficiais) e centrífugas (não‐oficiais), sendo que as primeiras atuam normalizando, unificando e apagando a heterogeneidade e as segundas atuam produzindo estratificações, variações e desestabilizações. No universo da língua‐enunciado, “cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação seja das forças centrípetas, como das centrífugas” (BAKHTIN, 1934‐35:82).
Embora as forças centrífugas desestabilizem a dimensão oficial, elas não constituem um bloco homogêneo e único, mas são variadas, desordenadas, sem centro e distribuídas de forma desigual, produzindo estratificações das linguagens, práticas sociais e ideologias que circulam e caracterizam a vida cotidiana e trivial. Com isso, “a mudança linguística não é sistêmica, mas desordenada, produzida por eventos imprevisíveis da atividade cotidiana (...) ela não resulta de forças puramente abstratas (desequilíbrios sistêmicos), mas de ações de pessoas reais em resposta às suas vidas diárias” (MORSON & EMERSON, 2008:160).
Dessa forma, é nas esferas móveis de circulação das ideologias cotidianas que os germes das mudanças sociais e linguísticas circulam e produzem desestabilizações, deslizes e pequenas transformações.
Como visto, o resultado da tensão entre as forças centrífugas e centrípetas é a produção da heteroglossia, que confere existência: (i) a uma pluralidade de vozes sociais em uma “mesma” língua; (ii) à relação dialógica de línguas e dialetos; (iii) à relação dialógica entre vozes sociais circulantes por diferentes línguas e dialetos; (iv) à hibridação de línguas/dialetos e vozes sociais. Essa heteroglossia é fruto de relações de sentidos, de tensão e de confronto existentes
em um mesmo espaço‐tempo ou em temporalidades e espacialidades diferentes: “Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos do diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando‐se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo”
(BAKHTIN, 1970‐71:410).
E dado que as forças centrífugas operam desestabilizando, desorganizando, desestruturando e conservando o caos e a abertura, a Linguística ou qualquer outro campo de estatuto científico não consegue lidar com essa realidade pluralizada e complexa, visto que objetifica, sistematiza e reifica seu objeto de estudo, o que se evidencia, por exemplo, na criação de dicionários e gramáticas como forma de normatização das línguas24. Aliados a esta tradição centralizadora e unificadora da língua estariam, segundo Bakhtin, a poética de Aristóteles e de Agostinho, a teoria gramatical de Leibniz e o ideologismo de Humboldt ao, de formas diferentes, favorecerem
a vitória de uma língua proeminente (dialeto) sobre outras, a expulsão de certas línguas, sua subjugação, o esclarecimento graças à palavra verdadeira, a participação dos bárbaros e das camadas sociais numa língua única da cultura e da verdade, a canonização dos sistemas ideológicos, a filologia e seus métodos de estudo e ensino de línguas mortas (...) (BAKHTIN, 1934‐35:81).
Com isso, o desafio da Metalinguística seria, a partir de um certo diálogo com a Linguística, focalizar o estudo da
24 Sobre a normatização/gramatização da língua como tecnologia de poder,
ver AUROUX (2009).
linguagem como um fenômeno singular, único e dialógico, integrante de uma realidade fluida, tensa e em constante movimentação, na qual indivíduos se constituem em sujeitos sociais. Uma direção temática de estudo metalinguístico que integre vozes sociais, língua‐enunciado, contexto social e variabilidade gira em torno da noção de estilo, que será sucintamente desmembrada a seguir.
A relação entre estilo e gramática retoma a distinção entre língua‐enunciado e língua‐sistema ou entre tema e significação. Os estilos constituem os enunciados e estão sempre ligados à: situação social imediata de produção dos enunciados (às formas de interação verbal, os gêneros discursivos), ao tema do enunciado, a sua composição, às escolhas gramaticais (léxico, sintaxe, fonologia), ao tipo de relação do falante com os interlocutores, à relação de valor que o sujeito estabelece com o enunciado e à relação que o enunciado produzido estabelece com outros enunciados. Note‐
se, em especial, a relação entre estilo e gênero discursivo: uma dada forma de interação sócio‐verbal constituída histórico‐
socialmente (gênero) define também estilos específicos que caracterizam, por exemplo, as linguagens científica, popular, familiar, jurídica etc. Assim, por um lado, mudanças sociais interferem nas formas de interação verbal (e estas influenciam aquelas), que produzem efeitos sobre os estilos e estes, por sua vez, afetam as formas da língua, sendo que os limites que diferenciam a língua e o enunciado ficam mais fluidos nos processos de variação/mudança:
Do nosso ponto de vista, é impossível estabelecer uma fronteira estrita entre a gramática e a estilística, entre o esquema gramatical e sua variante estilística. Essa fronteira é instável na própria vida da língua, onde algumas formas se encontram num processo de gramaticalização, enquanto
outras estão em vias de desgramaticalização, e essas formas ambíguas, esses casos limítrofes, é que apresentam maior interesse para o linguista; é justamente neles que se podem captar as tendências da evolução da língua (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, 1929:158‐159)
Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são as correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. Nenhum fenômeno novo (fonético, lexical, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter sido percorrido um complexo e longo caminho de experimentação e elaboração de gêneros e estilos. (BAKHTIN, 1952‐53:285)
Os processos de variação/mudança linguística têm como porta de entrada os gêneros discursivos, nos quais a história sócio‐cultural e a história da língua se materializam.
Os gêneros discursivos, neste caso, possuem uma memória discursiva que carrega formas (relativamente) cristalizadas da comunicação sócio‐cultural‐verbal: “Um gênero vive no presente, mas sempre relembra seu passado, seu início”25 (BAKHTIN, 1929/1963:106). Quanto mais esses gêneros definem formas de interação verbal complexas e reificadas, mais eles tendem à estabilidade, sem, contudo, perderem seu caráter de singularidade. Diferentemente, os gêneros fortemente ligados às esferas cotidianas tendem a ser mais plásticos, maleáveis, adaptáveis e abertos a reacentuações e a hibridações, dado que nestas esferas as ideologias circulantes são heterogêneas, cambiantes e diretamente vinculadas à vida diária e concreta dos sujeitos.
25 “A genre lives in the present, but always remembers its past, its beginning.”