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Infância e educação em Platão.

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Academic year: 2017

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I n f â n c ia e e d u c a ç ã o e m P la t ã o

Walter Omar Kohan

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

R e s u m o

Est e t rabalho est uda, desde uma perspect iva f ilosóf ica, o concei-t o de inf ância em Placoncei-t ão, com ênf ase nos seguinconcei-t es diálogos: Alcibíades I, Górgias, A República e As Leis.

Num primeiro moment o, sit uamos a quest ão da inf ância no mar-co mais ampliado do projet o f ilosóf imar-co e polít imar-co de Plat ão. A seguir, propomos quat ro t raços principais do conceit o de inf ân-ci a em Pl at ão: a) com o possi bi l i dade (as cri an ças podem ser qualquer coisa no f ut uro); b) como inf erioridade (as crianças — como as mulheres, est rangeiros e escravos — são inf eriores em relação ao homem adult o cidadão); c) como superf luidade (a in-f ância não é necessária à pólis); d) como mat erial da polít ica (a ut opia se const rói a part ir da educação das crianças).

Não há a pret ensão de levar Plat ão a algum t ribunal. Busca- se apenas delimitar um problema e uma forma específica de enf rent á-lo, com vist as a cont ribuir para a análise da produt ividade dessa perspect iva na hist ória da f ilosof ia da inf ância e da educação oci-dent al, bem como nas at uais t eorias e prát icas educacionais. Ao mesmo t empo, de f orma implícit a, procura- se of erecer element os para problemat izar uma visão já consolidada ent re os hist oriado-res da inf ância — part icularment e desde o já clássico Hist ória social da inf ância e da f amília de Philippe Ariès —, segundo a qual a inf ância seria uma invenção moderna e ela não t eria sido “ pensada” pelos ant igos enquant o t al.

P a l a v r a s - c h a v e

Plat ão — Inf ância — Filosof ia da inf ância.

Correspondência: Walter Omar Kohan

Av. Sernambetiba, 4420, Bloco 12, Apto. 302

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C h ild h o o d a n d e d u c a t io n in P la t o

Walter Omar Kohan

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

A b s t r a c t

This work investigates from a philosophical perspective the concept of childhood in Plat o, wit h an emphasis on t he f ollowing dialo-gues: Alcibiades I, Gorgias, The Republic, and The Laws.

Initially, we situate the issue of childhood within the wider scenario of Plato’s political and philosophical project. We then propose four main features of the concept of childhood in Plato: a) as possibility (children can become anything in future); b) as inferiority (children – like women, foreigners and slaves – are inferior to the male adult cit izen); c) as superf luousness (childhood is not necessary t o t he polis), and d) as mat t er of polit ics (t he ut opia is built f rom t he educat ion of children).

It has not been our int ent ion here t o put Plat o on t rial. We have just sought to delimit an issue and a specific manner of tackling it wit h t he aim of cont ribut ing t o t he analysis of t he product ivit y of this perspective in the history of the philosophy of childhood and of West ern educat ion, as well as of current educat ion t heories and pract ices. At t he same t ime, w e have implicit ly t ried t o of f er elements to problematize a vision well established among historians of childhood – part icularly af t er Philippe Ariès already classic Centuries of childhood: a social history of family life – according to which childhood would be a modern invention and would not have been “ thought” as such by the ancients.

K e y w o r d s

Plat o – Childhood – Philosophy of childhood.

Contact: Walter Omar Kohan

Av. Sernambetiba, 4420, Bloco 12, Apto. 302

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Os f ilósof os gregos do período clássi-co deram, de f orma quase unânime, import ân-cia sin gu lar à edu cação. Sabemos, por exem-plo, que os sof ist as f oram educadores prof is-si on ai s. El es t eori zaram sobre o sen t i do e o val o r d e ed u car, ai n d a q u e seu s p ri n ci p ai s escrit os não t enham chegado at é nós (Plat ão, Hípi as M ai or 282b- c). En t re el es, An t i f on t e, que af irma, segundo um f ragment o conserva-do, ser a educação o que há de principal para os seres humanos e que, quando se semeia em u m corpo j ovem u m a n obre edu cação, est a f loresce para sempre, com chuva ou sem chuva (DK 87 B 60).

M esm o q u e d ecl arasse n ão t er si d o m est re de n i n gu ém , Sócrat es recon hece t er f ormado jovens que cont inuariam sua t aref a, e esse é just ament e um dos mot ivos de sua con-denação à mort e (Plat ão, Apologia de Sócrat es, 33a- c; 39c- d). O próprio Plat ão est eve preocu-pado, do princípio ao f im de seus diálogos com quest ões educacionais, t alvez porque conside-rasse que a alma, quando vai para o Hades, não l eva ou t ra coi sa sen ão su a edu cação e seu modo de vida (Fédon , 107d). Em sua últ ima obra, As Leis, af irma que é impossível não f a-lar da educação das crianças e que, dif erent e-ment e de out ras quest ões t rat adas em relação à pólis, o f ará para inst ruir e para sugerir, não para legislar (VII, 788a): acerca da educação, diz ali, “ O At eniense” , ser uma aporia legislar e ao mesmo t empo t orna- se impossível permane-cer em silêncio (788b- c).

Est e t ext o t rat a de como nesses diálo-gos de Plat ão — n os qu e habit am t raços do qu e hoje chamamos de f ilosof ia da edu cação — f oi demarcado um cert o conceit o de inf ân-cia, prof icuament e reproduzido e muit o pouco probl em at i zado n o post eri or desen vol vi -men t o da f ilosof ia da edu cação ociden t al. À su a man eira, de f orma explícit a ou implícit a, por meio de um discurso aporét ico e impossível de silenciar, com alusões diret as ou met af óri-cas, Plat ão deu f orma a um ret rat o específ ico da in f ân cia. A segu ir, n os ocu paremos de de-linear esse ret rat o.1

O s t r a ç o s d e u m p r o b le m a

Giles Deleuze e Felix Guat t ari af irmam qu e en t en der u m f i l ósof o com port a com pre-en der os probl em as qu e esse f i l ósof o t raçou e os con cei t os qu e cri ou para t en t ar resol ver t ai s probl em as (1993, p. 40). Pen sam os qu e a i n f ân ci a era part e i n di ssoci ável de u m pro-b l em a f u n d am en t al p ara Pl at ão e q u e, p o r m ei o de seu s di ál ogos, pode- se recon st i t u i r t ant o os t raços f undament ais de t al problema q u an t o a so l u ção co n cei t u al p r o p o st a p o r Plat ão.

O problema ao qu al alu dimos é con -cret o e sit uado: ent ender, enf rent ar e revert er a degradação da At en as de seu t empo. Assim colocado, o problema n ão n os remet e n eces-sariamen t e à in f ân cia. Con t u do, n a visão de Plat ão, há uma conexão diret a ent re as quali-dades de uma pólis e as dos indivíduos que a compõem, qualidades que não est ão dadas de u ma vez por t odas mas qu e depen dem f ort e-men t e do con t ext o em qu e se desen vol vem. Essa visão se apóia em u ma percepção part i-cu l ar da hi st óri a pol ít i ca qu e o precedeu e, du ran t e a qu al , n at u rezas j u ven i s excel sas, co m o as d e seu s co m p an h ei r o s d e cl asse, Alcibíades e Crít ias, se convert eram em polít icos in escru pu losos e in san os. As con seqü ên -cias f oram desast rosas para At enas e se pode-ria ler boa part e da f ilosof ia de Plat ão como uma t ent at iva de colocar as bases que permi-t issem conspermi-t ruir uma ordem social radicalmen-t e dif eren radicalmen-t e daqu ela qu e deu lu gar, pelo me-nos num nível prot agonist a, à int ervenção de t ais cidadãos.

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2 . Há, pelo menos, uma terceira palavra para referir- se à criança em grego, téknon, ligada ao verbo tíkto (‘dar a luz’), que marca mais acentua-damente a filiação, e nos trágicos se encontra usada para reforçar o vínculo afetivo, geralmente, a propósito da mãe.

Como enf rent ar o problema da degra-dação dos jovens? O que f azer para canalizar as melhores nat urezas para o melhor projet o po-lít ico? A chave de int erpret ação de Plat ão para explicar o problema é educat iva: esses jovens se corromperam porque não receberam a at enção e o cuidado que merece quem se dedicará a governar o conjunt o. Sua apost a t ambém o é: é necessário, ent ão, pensar out ro cuidado, out ra criança, out ra educação, uma experiência inf an-t il da verdade e da jusan-t iça que preserve e cul-t ive o que nessas nacul-t urezas há de melhor e o ponha a serviço do bem comum.

A visão plat ônica da inf ância se enqua-d ra, en t ão , em u m a an ál i se eenqua-d u cat i va co m int encionalidades polít icas. Plat ão não f az da inf ância um objet o de est udo em si mesmo re-levant e. De cert o, a inf ância não é, enquant o in-f ância, um problema in-f ilosóin-f ico relevant e para Pl at ão. Não há em seu s di ál ogos u m a par-t icular apar-t enção em repar-t rapar-t ar as caracpar-t eríspar-t icas psi-cológicas da inf ância (cont ra, Charlot , 1977). A inf ância é um problema f ilosof icament e relevan-t e na medida em que se relevan-t enha de educá- la de maneira específ ica para possibilit ar que a pólis at u al se aproxi m e o m ai s possível da i dea-lizada. Dessa maneira, Plat ão invent a uma po-lít ica (no sent ido mais próximo de sua et imo-logia) da inf ância, sit ua a inf ância em uma pro-blemát ica polít ica e a inscreve no jogo polít i-co que dará lugar, em sua escrit a, a uma pólis mais just a, mais bela, melhor.

Ant es de analisar a f orma em que Plat ão pensou a inf ância, é int eressant e expor algumas quest ões vindas da língua. Sabemos que a rela-ção ent re a hist ória das palavras e a hist ória do pensament o é ext raordinariament e complexa, mas, em t odo caso, não queremos deixar passar alguns esclareciment os, pist as ou sugest ões.

Plat ão se ref ere às crianças, basicamen-t e, por meio de duas palavras: paîs e néos.2

Paîs remet e a uma raiz indo- européia que t oma a f orma pa/ po em grego e pa/ pu em lat im (a palavra lat ina equivalent e a paîs é puer), cujo signif icado básico é “ aliment ar” ou “ aliment ar-se”. Da mesma raiz t emát ica são, por exemplo,

os t ermos pat éomai (“ comer” ); ápast os (“ sem comer” , “ em jejum” , em lat im impast us); pat ér (“ pai” , “ o que aliment a” , em lat im pat er); paízo (jogar como uma criança” , “ divert ir- se” , “ f azer cri an ci ces” ); póa (“ past o” , em l at i m past o); poimém (“ past or” , “ o que leva para comer” , em l at i m past or); pai díon (“ j ogo” , “ di versão” ); paidiá (“ jogo” , “ passat empo” ); paideía (“ cult u-ra” , “ educação” ); paidéúo (“ f ormar” , “ educar” ); paidagogós (“ o que conduz a criança” , “ peda-gogo” ) (Cast ello, A. ; M árcico, C., 1998).

Em grego cl ássi co, paîs t em u m a de-n ot ação m u i t o am pl a, ref ere- se a cri ade-n ças e j oven s de di versas i dades, n o caso dos m en i -n os, at é chegar à ci dada-n i a e, -n o caso das meninas, caso m en os f reqü en t e, at é o m at ri -m ôn i o (Gol den , 1990). Na verdade, paîs usse m ai s com o ussen t i do de f i l ho ou f i l ha (n a-t ural ou adapa-t ado) e menos com o sena-t ido de crianças e, por ext ensão, como escravo ou es-crava (j oven s de di versas i dades at é l i m i t es sem el han t es aos do paîs). Nesse sen t i do, seu u so é ex t r em am en t e am p l o (d esi g n a, p o r exem pl o, o m em bro su bordi n ado de u m ca-sal de homens homossexuais, não import a sua i dade) e n ão i m pl i ca u m a reação em oci on al i n t en sa en t re os m em bros de u m a f am íl i a ou do m esm o gru po soci al (Gol den , 1985). Essa m esm a asso ci ação est á p r esen t e n o t er m o l at i n o pu er. Ainda que chamat iva, essa amplia-ção pode t er com o base u m vín cu l o af et i vo e cu l t u ral qu e rel aci on ava o escravo com seu sen h o r, n ão t o t al m en t e d essem el h an t e, ao qu e vi n cu l ava o pai com seu f i l ho (Cast el l o, A. ; M árci co, C., 1998).

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pessoas, mas a objet os e, mais rarament e, a ani-mais e plant as. Só post eriorment e f oi- se espe-cializando em uma ref erência exclusivament e an t ropol ógi ca, m as con servan do su a pol i va-lência, que permit e aplicá- la a crianças e jo-vens. Algumas palavras ligadas são: neót es (“ ju-vent ude” ); neot erízo (“ t omar novas medidas” , “ f azer uma revolução” ); neot erismós (“ inova-ção” , “ revoluinova-ção” ). Nas línguas vernáculas, deu lugar a muit os compost os a part ir do primeiro t ermo neo- .

Esses exemplos ilust ram uma associa-ção muit o f ort e ent re os campos semânt icos do aliment o e da educação no mundo greco- roma-no. Aliment ar e educar não const it uem, ali, do-mínios dissociados. Out ros dois exemplos ilus-t ram cl aram en ilus-t e essa associ ação. Em grego, t réphein signif ica, em sua origem, “ espessar” , e, daí, “ coagular” , “ coalhar”. Com esse sent ido, subsist e na época clássica sob o conceit o ge-nérico de “ criar” , “ nut rir” , desenvolvido a par-t i r de “ en gordar” , “ al i m en par-t ar”. Por gradu ais t ranslações de sent ido chega a signif icar “ edu-car” , ainda que nunca chegue a ser o t ermo t ípico para ref erir- se ao que hoje ent endemos por educar e est eja mais ligado ao âmbit o da criação das crianças. Por exemplo, Plat ão (A Repú bl i ca V 450c, Al ci bíades I 122b, Crít on 50e- 51c) si t u a a t rophé (cri ação) com o u m período i n t erm édi o en t re o n asci m en t o e a paidéia (educação). Em lat im, t ant o al.umnus (“ o que recebe o aliment o” , “ criat ura” e, como segunda acepção, “ discípulo” , “ o que apren-de” ) como ad.ol.escens (“ o que começa a ser aliment ado” , “ o que recebe os primeiros ali-m en t os” e, coali-m o con seqü ên ci a, “ cresce” ) e ad .u l .t u s t êm a ver co m o ver b o al .o , “ al.i m en t ar- se” e o su bst an t i vo al.i m en t u m , “ al.iment o”.

Em grego clássico há out ras palavras, algumas derivadas daquelas, para ref erir- se às cri an ças, m as n ão há n en hu m a específ i ca e exclusiva para alguma et apa ou idade em par-t icular (Golden, 1990). Curiosa e signif icapar-t iva-ment e, t ampouco há, no mundo greco- romano, u m su bst an t i vo abst rat o deri vado dessa rai z

t emát ica que signif ique “ inf ância”. Em grego, a lógica da língua indicaria paidía ou paideía, mas daquele t ermo só se encont ra algum raro exem-plo (Chant raine, 1975) e est e t em out ra conot a-ção, l i gada t am bém ao al i m en t o (“ cu l t u ra” , “ educação” ). Em lat im exist e inf ant ia, mas é bast ant e t ardio e designa lit eralment e a ausên-cia de f ala.3

Como explicar essa ausência? Ainda que a i n f ân ci a f osse u m a et apa da vi da l egal e polit icament e irrelevant e, há muit os t est emu-nhos de vários campos int elect uais que dist in-guem diversas et apas na inf ância, o que permit e supor que essas dist inções t inham alguma re-l evân ci a soci are-l (Gore-l den , 1990). De qu are-l qu er modo, t alvez a ausência de uma palavra para marcar uma et apa possa sugerir a percepção da vida humana, pelo menos na lit erat ura domi-nant e que conhecemos, como uma t ot alidade indissociável ou, t alvez, uma unidade que pri-vilegia o comum e o t odo por sobre seus f rag-ment os ou part es dif erenciadas.

Em t odo caso, regist ramos duas marcas chamat ivas na et imologia. Por um lado, a asso-ciação ent re “ criança” e “ escravo jovem”. Por out ro lado, a ausência de uma palavra especí-f ica para se reespecí-f erir à abst ração “ inespecí-f ância”. Con-f iamos em que os sent idos dessa associação e dessa au sên ci a possam ser en ri qu eci dos n o t ranscorrer dest e t ext o.

Talvez não seja um det alhe que Plat ão, que se vale de palavras raríssimas e at é

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t ou muit as palavras para dar cont a de concei-t os ainda não pensados na culconcei-t ura de seu concei-t em-po, não t enha t ido a necessidade de f azer o mesmo com a inf ância. Cont udo, como vere-mos a seguir, não parece just if icado af irmar que a ausência de uma palavra específ ica signif ique que Plat ão não t enha pensado a inf ância. Pelo cont rário, de diversas f ormas compõe um cer-t o conceicer-t o complexo, dif uso, variado de inf ân-cia. Para uma melhor análise, dividiremos esse t rat am en t o em di versos pl an os qu e se en t recru zam : a) a pri m ei ra m arca qu e di st i n gu i -m os n o con cei t o pl at ôn i co de i n f ân ci a é a possi bi l i dade qu ase t ot al e, en qu an t o t al , a au sên ci a de u m a m arca específ i ca; a i n f ân -ci a pode ser qu ase t u do; essa é a m arca do sem m ar ca, a p r esen ça d e u m a au sên ci a; b) a segunda marca é a inf erioridade em f ace do hom em adu l t o, do ci dadão, e su a con se-qü en t e equ i paração com ou t ros gru pos soci ai s, co m o as m u l h eres, o s éb ri o s, o s an -ci ão s, o s an i m ai s; essa é a m ar ca d o ser menos, do ser desvalorizado, hierarquicamen-t e i n f eri or;4 c) em u m a t ercei ra m arca, l i

ga-da à an t eri or, a i n f ân ci a é a m arca do n ão import ant e, o acessório, o supérf luo e do que se pode presci n di r, port an t o, o qu e m erece ser excl u íd o d a p ó l i s, o q u e n ão t em n el a l u gar, o ou t ro depreci ado; d) f i n al m en t e, a i n f ân ci a t em a m arca i n st au rada pel o poder: el a é o m at eri al de son hos pol ít i cos; sobre a i n f ân ci a recai u m di scu rso de n ecessi dade e o sen t i do de u m a pol ít i ca qu e n ecessi t a da i n f ân ci a para eri gi r- se em perspect i va de u m f u t u ro m el hor. A segu i r, vam os n os ref eri r a cada u m a dessas m arcas.

A in f â n c ia c o m o p u r a p o s s ib ilid a d e

Pl at ão n ão é al hei o ao sen t i do m ai s primário da inf ância, que a associa a uma et a-pa primeira da vida humana. Como t al, a valo-riza em f unção de seus ef eit os na vida adult a. Fazendo- se eco de um dit ado popular, “ Crít ias” af irma no Timeu (26b) que é admirável como

perm an ecem n a m em óri a os con heci m en t os aprendidos quando se é criança. Na Apologia, “ Sócrat es” disse t emer muit o mais àqueles acu-sadores que f oram convencidos, quando eram crianças, de que ele era um sábio que se preo-cupava com as coisas celest es e subt errâneas e que f azia mais f ort e o argument o mais débil, d o q u e àq u el es q u e só f o ram co n ven ci d o s daquelas acusações em idade adult a (Apologia de Sócrat es 18b- c).

Não se t rat a de que, para Plat ão, a na-t ureza humana se consolide e se na-t orne imodi-f icável a part ir de cert a idade. O discurso que Sócrat es prof ere sobre o amor, no Banquet e, e que havia sido ouvido de uma mulher, Diót ima de M ant inéia, alert a que ainda que dissermos que as pessoas são as mesmas desde que nas-cem at é morrerem, n a verdade, se gera u ma nova pessoa (ou uma criança) a cada moment o (207d- e). “ O At eniense” , em As Leis, diz que os jovens sof rem muit as mudanças t odo o t empo, durant e t oda a sua vida (XI 929c).

Cont udo, alguns moment os da vida são vist os como t endo mais incidência que out ros, sobre o curso que ela t oma. Também em As Leis, esse mesmo personagem lembra um ref rão popular grego que diz “ o começo é a met ade de t oda obra”(VI 753e) e af irma que um pri-meiro cresciment o bom é o mais import ant e para uma boa nat ureza, t ant o ent re as plant as e en t re os an i m ai s, com o en t re os hu m an os (Ibi d. VI 765e). Em u m a obra an t eri or, “ Só-crat es” diz a um jovem “ Alcibíades” que, com 20 an os, est á em i dade de ocu par- se de si mesmo, porém, que isso seria muit o dif ícil de f azer aos 50 anos (Alcibíades I 127e). Em ou-t ro diálogo, “ Sócrat es” se most ra preocupado com o j ovem Cl ín i as, t em eroso de qu e, em f unção de sua idade, alguém se adiant e e diri-j a su a al m a para ou t ros m i st eres (Eu t i dem o

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275b). Em suma, ainda que Plat ão pense que a educação seja import ant e em t oda a vida de u m ser hu m an o, t am bém con si dera qu e o é muit o mais nos moment os em que se f orjam seus caract eres. Para explorar e just if icar essa af irmação adent remos A República.

No livro I, “ Sócrat es” t rava uma de suas clássicas discussões com vários int erlocut ores (“ Céf alo” , “ Polemarco” e “ Trasímaco” ) que são sucessivament e ref ut ados em sua pret ensão de def i n i r o qu e é o j u st o. O f i n al do l i vro I é aporét ico: “ Sócrat es” diz a Trasímaco que nada sabe após examinar, sucessivament e, se o jus-t o é um mal e uma ignorância ou uma sabedo-ri a e u m a excel ên ci a e se a i n j u st i ça é m ai s vant ajosa que a just iça (I 354b- c).

No começo do livro II, “ Gláucon” , ir-mão de Plat ão na vida real, convence “ Sócrat es” a ret omar a discussão e def ender a superiorida-de da just iça sobre a injust iça (II 357a — 358e). Depois que ele e “ Adimant o” , t ambém irmão “ real ” de Pl at ão, apresen t am os argu men t os corrent es de quem def enderia que a injust iça é pref erível à just iça, “ Sócrat es” t ransf ere o cam-po da análise do indivíduo para a pólis, para f acilit ar a percepção da just iça em um espaço maior (II 368d- e).

A invest igação leva “ Sócrat es” a analisar as origens da pólis: os indivíduos não são aut ár-quicos e t êm necessidade uns dos out ros (369b-c). Começa, en t ão, u m desen ho da primeira pólis (369d- 372e). Os t raços iniciais de “ Sócra-t es” , relaSócra-t ivos apenas às necessidades básicas de uma pólis, recebem uma objeção de “ Gláucon” : t rat a- se de uma pólis de suínos, já que não há nela nem prazeres nem comodidades (372e). Sem rodeios, “ Sócrat es” t oma a objeção, passa a ampliar a pólis para uma pólis de prazer, mas advert e que, enquant o aquela é sã e verdadei-ra, est a é luxuosa e doent e (372e- 373a). Ent re out ras coisas, a nova pólis gerará guerras com os vizinhos e necessit ará de guerreiros- guardiões, inexist ent es na ant erior (373d- 374a). A part ir de uma analogia com os cães de raça, “ Sócrat es” descreve as disposições nat urais que devem t er t ais guardiões: devem ser, enquant o corpo,

agu-dos de percepção, rápiagu-dos e f ort es; enquant o alma, irascíveis, suaves, amant es do saber e do aprender (374e- 376c).

Haverá, ent ão, que se criar e educar os guardiões de alguma maneira, diz “ Sócrat es” (3 7 6 c — I I I 41 2 b ). Est am o s d i an t e d e u m a quest ão chave. A educação não é um problema menor, porque o exame da quest ão educacio-nal poderá det erminar a gênese, o pont o de part ida, a cau sa da ju st iça e da in ju st iça n a pólis (376c- d; IV 423e- 424c). “ Sócrat es” pro-põe que a educação com a qual se eduquem os guardiões seja a mesma com a qual se educam, há muit o t empo, os gregos: a ginást ica para o corpo, a música para a alma (376e).

As crianças são educadas, em primeiro lu gar, n a mú sica e, logo depois, n a gin ást ica. En t re as pri m ei ras at i vi dades, i n spi radas pe-l as M u sas, i n cpe-l u em - se as f ábu pe-l as e os repe-l at os qu e as cri an ças escu t am desde a m ai s t en ra i d ad e. Esses rel at o s d everão ser esco l h i d o s co m m u i t a d i l i g ên ci a, d i z “ Só crat es” , p ara qu e con t en ham as opi n i ões qu e os con st ru -t ores da pól i s j u l gam con ven i en -t es para f or-m ar as cri an ças (377b- c).

Não se permit irá que as crianças escu-t em qualquer relaescu-t o. Não se permiescu-t irá que se lhes narrem, por exemplo, as principais f ábulas pelas quais t êm sido educados t odos os gregos, os poemas de Homero e Hesíodo, uma vez que af irmam valores cont rários àqueles que se pre-t ende que dominem a nova pólis. Esses relapre-t os, cheios de ment iras, não represent am os deuses e herói s t al com o são e est ão povoados de person agen s qu e af i rm am val ores con t rári os àqueles com que se pret ende educar os gu ar-diões (377c - III 392c).

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E b em sab es q u e o p r i n cíp i o d e t o d a a obra é o pri n ci pal , especi al m en t e n os m ai s pequenos e t ernos; porque é ent ão quando se f orma e imprime o t ipo que alguém quer di ssem i n ar em cada pessoa. (II 377a- b)

Os pri m ei ros m om en t os são os m ai s i m port an t es n a vi da, di z “ Sócrat es”. Por isso n ão se perm i t i rá qu e as cri an ças escu t em os rel at os qu e con t êm m en t i ras, opi n i ões e va-l ores con t rári os aos qu e se espera deva-l es n o f u t u ro. Porqu e se se pen sa a vi da com o u m a seq ü ên ci a em d esen vo l vi m en t o , co m o u m devi r progressi vo, com o u m f ru t o qu e resu l -t ará das sem en -t es pl an -t adas, -t u do o qu e ve-n ha depoi s depeve-n derá desses pri m ei ros passos. As m arcas qu e se recebem n a m ai s t en -ra i dade são “ i m odi f i cávei s e i n corri gívei s” (3 7 8 e). Po r i sso d eve- se cu i d ar esp eci f i cam en t e desses pri cam ei ros t raços, por su a i cam -port ância ext raordinária para conduzir alguém para a vi rt u de (i bi dem ).

Nesses t raços plat ônicos est á ret rat ada a imagem da inf ância que ainda acompanha o pensament o educacional. É f undament al, diz-nos Plat ão, que diz-nos ocupemos das crianças e de sua educação, não t ant o pelo que os peque-nos são, mas pelo que deles devirá, pelo que se gerará em um t empo post erior:

[ Su f i ci en t e] é a edu cação e a cri ação, res-pon di ; poi s se bem edu cados, su rgi rão ho-m en s ho-m edi dos qu e di st i n gu i rão cl araho-m en t e t odas est as coi sas e ou t ras (...). (IV 423e)

Nesse reg i st ro , a i n f ân ci a é u m d e-grau f u n dador n a vi da hu m an a, a base sobre a qu al se con st i t u i rá o rest o. Com o verem os, a ed u cação d a i n f ân ci a t em p ro j eçõ es p o l í-t i cas: u m a b o a ed u cação g aran í-t e u m ci d a-dão pru den t e. Esse pri m ei ro degrau n ão t em caract eríst i cas própri as m u i t o def i n i das, est á asso ci ad o à p o ssi b i l i d ad e. É cer t o q u e h á n at u rezas m ai s d i sp o st as q u e o u t ras p ara a vi r t u d e. M as t am b ém é ver d ad e q u e u m a boa edu cação pode corri gi r u m a m á n at u

re-za e q u e u m a ed u cação i n ad eq u ad a f az es-t rag o s n as m el h o res n aes-t u rezas.

Enquant o primeiro degrau da vida hu-mana, a inf ância represent a t ambém seu carát er de incomplet a, sua f alt a de acabament o. Porém, é verdade que, para Plat ão, a vida humana e o gênero humano como um t odo est ão marcados pela incomplet ude. A nat ureza dos seres huma-nos não est á dada de uma vez por t odas, mas vai se const it uindo em f unção de cert a educa-ção que a t ransf orma de geraeduca-ção em geraeduca-ção (IV 424a- b). A pólis que começa bem, diz Plat ão, avança da mesma f orma que um círculo. Uma criação e uma educação valiosas produzem boas nat urezas e, est as, valendo- se de t al educação, se t ornam melhores que as ant eriores e, assim, sucessivament e (ibidem).

A princípio, essa visão da inf ância pa-rece ext raordi n ari amen t e posi t i va, poderosa: del a pode devi r qu ase qu al qu er coi sa; del a, quase t udo pode ser. Cont udo, essa pot encia-lidade, esse ser pot encial, esconde, como con-t raparcon-t ida, uma negacon-t ividade em acon-t o, uma vi-são não af irmat iva da inf ância. Ela poderá ser qu alqu er coisa. O f u t u ro escon de u m n ão ser nada no present e. Não se t rat a de que as cri-anças já são, em est ado de lat ência ou virt uali-dade, o qu e i rá devi r; n a veruali-dade, el as n ão t êm f orm a al gu m a, são com pl et am en t e sem f orma, mal eávei s e, en qu an t o t ai s, podemos f azer delas o qu e qu isermos.

Em uma passagem de As Leis, dif eren-t e em di versos aspeceren-t os da Repú bl i ca, m as com t em át i cas af i n s, “ O At en i en se” con t a a “ Clín ias” u ma hist ória de den t es semeados e guerreiros nascidos deles e coment a sobre ela o segu in t e:

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Podemos persuadir os jovenzinhos do que se nos ocorra. O único problema é desco-brir o “ maior bem” para a pólis para depois con ven cê- los de qu e at u em segu n do ele. Os jovenzinhos não f arão senão o que lhes disser-mos. Nessa passagem se condensam os princi-pais mot ivos que dest acaremos na últ ima par-t e despar-t e par-t rabalho: par-t emos que pensar nos jovens em f unção do bem da pólis, porque deles po-dem devir out ra pólis que a at ual, porque eles são o mat erial de um sonho que podemos f orjar à nossa vont ade e que eles nos ajudarão, man-sament e, a realizar. Ant es, porém, vamos anali-sar out ra marca da inf ância: a inf erioridade.

A in f â n c ia c o m o in f e r io r id a d e

Junt o a essa visão da inf ância como o que pode ser quase t udo, nos t ext os de Plat ão há out ra visão dela como aquela f ase da vida inf erior à idade adult a masculina t ant o no as-pect o f ísico quant o no espirit ual. A obra em que esse relat o aparece mais nít ido, e t ambém mais descarnado, é seu últ imo t ext o, recém-ref erido, As Leis. Ali se af irma que as crianças são seres i m pet u osos, i n capazes de f i carem q u i et o s co m o co rp o e co m a vo z, sem p re pulando e grit ando na desordem, sem o rit mo e a harm on i a própri os do hom em adu l t o (II

664e- 665a), e que possuem t emperament o ar-rebat ado (II 666a). As crianças sem seus pre-cept ores são como os escravos sem seus donos, um rebanho que não pode subsist ir sem seus past ores (VII 808d). Por isso, devem ser sempre conduzidas por um precept or (VII 808e). Não devem ser deixadas livres at é que seja cult iva-do “ o que neles t em de melhor” (IX 590e- 591a). Também ali se af irma que a criança é a f era mais dif ícil de manejar, porque, por sua pot encial int eligência ainda não canalizada, é ast u t a, áspera e i n sol en t e (VII 808d). Nessa passagem, além da inf erioridade, aparece, ou-t ra vez, a idéia de poou-t encialidade associada à criança, t al como vimos em A República. Nist o a criança se dif erencia do escravo. Cont udo, essa pot encialidade não a t orna melhor

enquan-t o projeenquan-t a o que para Plaenquan-t ão há de inf erior no ser humano e na ordem social que o abriga: a desordem, a f alt a de harmonia, a desproporção. “ O At eniense” est ipula que uma criança, enquant o homem livre que será (no f ut uro), deve aprender diversos saberes e, enquant o escravo que é (no present e), pode e deve ser cast igada por qualquer homem livre que se encont re com ela (VII 808e). Assim descrit a a nat ureza inf an-t il, com sua criação e educação buscar- se- á acal-mar essa agit ação e desenvolver seus pot enciais em ordem e harmonia. A t aref a principal dos en-carregados da criação das crianças é “ dirigir em li-nha ret a suas nat urezas, sempre em direção para o bem segundo as leis”. (II 809a)

Em u m âm bi t o j u di ci al , as cri an ças, como os escravos, só poderão dar t est emunho em processos de assassinat o e só no caso de um adult o responder por event uais juízos con-t ra ele por f also con-t escon-t emunho (XI 937b). Quan-do se t rat a de legislar seus direit os, Plat ão diz que se uma criança quer ser af ast ada da f amí-lia por seu pai, t erá direit o a voz em um juízo com t odos os seus parent es. Se a maior part e da f amília est á de acordo em expulsá- la e ne-nhum out ro cidadão quer adapt á- la, ela deve-rá, ent ão, ser enviada para as colônias. Sust en-t a, en-t ambém, que se algum ancião é considera-do dem en t e, se l he despoj ará t oconsidera-dos os seu s bens e est e passará o rest o de sua vida como se f osse uma criança (XI 929a- e).

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como o ancião (I 646a). Ao legislar sobre quem despoja os deuses, t rai à pólis, ou corrompe suas leis, ref ere- se a quem poderia f azer essas ações como louco ou enf ermo; t rat a- se de alguém ult rapassado em velhice ou “ t omado pela inf an-t ilidade, o que em nada se dif erencia dos esan-t a-dos ant eriores” (IX 864d).

Est a vi são da i n f ân ci a t am bém est á present e em um diálogo de juvent ude, o Alci-bíades I, u m t ext o qu e m u i t os f i l ósof os da Ant iguidade (Albino, Jâmblico, Proclo e Olim-piodoro) consideraram uma excelent e int rodu-ção à f ilosof ia em geral e à plat ônica em par-t icular. O Alcibíades I pode ser dividido em par-t rês grandes seções: na primeira, “ Sócrat es” e “ Al-cibíades” discut em sobre a inserção dest e últ i-mo na vida polít ica de At enas e a respeit o de seu saber sobre os assunt os da polít ica (103a-113c); na segunda, analisam as dif erent es f or-mas de se relacionar com o conheciment o e as implicações polít icas de cada relação analisada (113d- 127e); na t erceira, propõe- se uma aná-lise f ilosóf ica do preceit o délf ico “ conhece- t e a t i mesmo” (128a- 135e).

No início, “ Sócrat es” quest iona a “ Alci-bíades” que, desde criança, não duvidara sobre o just o e o injust o, mas que f alara desses as-sunt os com segurança e presunção. “ Acredit a-vas saber, apesar de ser criança, sobre o just o e o injust o” , recrimina- o. “ Como poderia sabê-lo” , “ Sócrat es” censura a “ Alcibíades” , “ se não havia t ido t empo de aprendê- lo ou descobri-l o?”(110a- 110c). Na i n f ân ci a n ão é possível saber sobre o just o e o injust o; é o t empo da incapacidade, das limit ações no saber e, t am-bém, no t empo; é a et apa da f alt a de experiên-cia; é a imagem da ausência do saber, do t em-po e da vida.

Na part e int ermediária do diálogo, “ Só-crat es” exam i n a com o a cri ação e edu cação dos persas e espart anos, rivais polít icos, se di-f erencia da dos at enienses. O di-f inal desse exa-me marcará a necessidade de que Alcibíades conheça- se a si próprio — algo que não t inha f eit o ainda — enquant o suas possibilidades e limit es. “ Sócrat es” argument a para “ Alcibíades”

q u e se el e q u er t er al g u m su cesso n a vi d a polít ica ele deve ant es ocupar- se de si mesmo.5

“ Sócrat es” t oma como exemplo os per-sas. A primeira dif erença est á ao nascer. Quan-do nasce um f ilho de um rei persa, t oda a Ásia o f est eja. Os at enienses, queixa- se “ Sócrat es” , não comemoram os nasciment os, não lhes dão import ância, não lhes of erecem a menor at en-ção. Quando nasce um at eniense, nem os vizi-nhos f icam sabendo (121c- d).5 Tampouco

valori zam a cvalori ação (t rophé) dos pequ en os. En -qu an t o os persas dispon ibilizam os melhores eunucos e, aos 7 anos, põem os pequenos em cont at o com os cavalos e os levam à caça, os at en i en ses escol hem u m a escrava de pou co val or para cu i dar do recém - n asci do (121d); aos 14, os persas os con f iam aos seu s qu at ro melhores homens: o mais sábio, o mais just o, o mais pru den t e e o mais corajoso (121e). A u m só t em po, o pedagogo de Al ci bíades f oi Zópiro, o mais inút il ent re os escravos de Pé-ri cl es (122b). No f i n al das con t as, en t re os at enienses, a ninguém int eressa o nasciment o, a cri ação e a edu cação, sal vo a u m am an t e (ibidem).

Nessa passagem, a f igura da inf ância é, como a vergonha, uma met áf ora da inf eriorida-de. A juvent ude de Alcibíades é uma das razões pelas quais a mãe do rei persa se surpreenderia ao t ent ar rivalizar- se com At axerxes (123c- e). Do

5 . Desse texto comentou Michel Foucault: “ o cuidado de si aparece como uma condição pedagógica, ética e também ontológica, para chegar a ser um bom governante. Constituir-se em sujeito que governa implica que se tenha constituído em sujeito que se ocupa de si” (L´éthique du souci de soi comme pratique da liberté. In: Dits et Écrits, IV. Paris: Gallimard, 1994. p. 721-722).

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mesmo modo que Alcibíades sent iria vergonha perant e a opulência dos persas, se sent iria uma criança diant e da prudência, modést ia, dest reza, benevolência, magnanimidade, disciplina, valor, const ância, disposição, compet it ividade e hon-ra dos espart anos (122c).

Em muit os out ros diálogos, a inf ância ocu pa u m espaço sem el han t e de i n f eri ori da-de. Na Repú bl i ca, di z- se qu e as cri an ças, ao nascer, part icipam, sobret udo, do desejo; que al gu m as n u n ca part i ci pam da razão, da qu al m u i t os part i ci pari am som en t e bast an t e m ai s t arde (IV 441a); n as cri an ças, com o n as m u l heres e escravos, dom i n a o i n f eri or: as pai xões, os prazeres e as dores (IV 431c); cri an ças e m u l heres adm i ram o m at i zado e o art i -f i ci oso (VIII, 557c). No Teet et o, as cri an ças são al i n hadas com as m u l heres e as best as com o exem pl os de i n di vídu os de u m a cl asse qu e di f erem en t re si em su a rel ação com a saú de (171e). Em vári os l u gares e de di versas f orm as, Pl at ão di z qu e as cri an ças n ão t êm razão, com preen são ou j u ízo (Górgi as 464d-e). Para ref erir- se a um argument o óbvio, sim-pl es ou sem i m port ân ci a, m u i t as vezes, af i r-m a q u e é p r ó p r i o d e u r-m a cr i an ça; n esses caso s, o ad j et i vo “ i n f an t i l ” é si n ô n i m o d e pu eri l , i n gên u o, débi l (Crít on 46d; Górgi as, 470c, 471d; Ban qu et e 204b). No Eu t i dem o, “ Sócrat es” diz algo qu e parece t ão óbvio qu e “ at é u m a cri an ça o en t en deri a” e expl i ca o assombro de “ Clínias” ant e esse saber por ser “ jovem e ingênuo” (279e). No Lísis, “ Ct ésipo” ri de “ Hi pot al es” porqu e est e n ão é capaz de dizer à sua amant e nada que uma criança não p o ssa d i zer (2 9 5 c). No Fi l ebo , os prazeres, com o cri an ças, t êm pou ca i n t el i gên ci a (65d; cf . 14d). Di z- se de “ Cárm i des” qu e era u m caso ex cep ci o n al , p o r n ão ap resen t ar u m a imagem negat iva da criança (Cármides 154b). Em out ras ocasiões, “ Sócrat es” associa as crianças ao engano, a ser cont radit ório (di-zer uma coisa e sua negação) ou ser inconsis-t eninconsis-t e (dizer uma coisa e f azer ouinconsis-t ra). Por ou-t ro lado, susou-t enou-t a que um pinou-t or pode enganar as crianças como os t olos f azendo a aparência

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A in f â n c ia c o m o o o u t r o d e s p r e z a d o

Sócrat es conversa com jovens em mui-t os dos primeiros diálogos de Plamui-t ão e af irma na Apologia que para ele é a mesma coisa con-versar com pessoas de diversas idades (33a). Con t u do, Plat ão n ão dest in ou n en hu m lu gar especial para o diálogo f ilosóf ico com joven s n os projet os edu cat ivos de A República e de As Leis. Ao invés disso, em A República, pro-põe impedir qu e os joven s en t rem em con t a-t o com a dialéa-t ica (VII 536e- 537a). Af irma que aos guardiões, desde a inf ância, devem ser en-sinados cálculo, geomet ria e t oda a educação propedêut ica. Essa primeira educação da alma deve ser lúdica, espalhada ent re os jogos e não f orçada, já que nenhum saber permanece nela por f orça. Chegando aos 30 anos, escolher- se-á alguns ent re os mais apt os para colocse-á- los em cont at o com a dialét ica; ant es se os impedirá pelos perigos dela: os jovens de At enas cost u-m au-m t ou-m á- l a cou-m o u u-m j ogo, l evi an au-m en t e, apen as para con t radi zer, sem crer em n ada, desacredit ando- se a si mesmos e à f ilosof ia (VII 537e- 539b; cf . Filebo 14d).

Esse descrédito pela filosofia está presen-t e em ou presen-t ros diálogos de Plapresen-t ão. No Fédon , “ Cebes” af irma que em Tebas, sua pólis, t odos est ariam de acordo que os f ilósof os mereciam a mort e (64b- c). No Teeteto, “ Sócrates” admite, re-ferindo- se provavelmente a si mesmo, que os que se dedicam muit o t empo à f ilosof ia parecem ora-dores ridículos nos t ribunais, comparados com quem habitualmente freqüenta esses espaços. Para f alar dos f ilósof os, recorda uma anedot a sobre Tales, que provocou o riso de uma jovem escra-va (therapainìs), ao cair num poço enquanto con-t emplava as escon-t relas. Desde encon-t ão, essa piada acompanha os que se dedicam à f ilosof ia (174a-b). Na República, a má f ama se diversif ica e se agrava: “ Adimant o” argument a com “ Sócrat es” que quem não abandona a f ilosof ia depois de abraçá- la para complet ar sua educação na juven-t ude são, em sua maioria, pessoas esjuven-t ranhas (allokót uous) ou perversas; só os mais razoáveis

ent re eles são inút eis à pólis e est e é o mal me-nor que os f ilósof os provocam (A República VI 487c- d).

De t odos, quem apresent a o argument o mais cont undent e cont ra a f ilosof ia é “ Cálicles” no Górgias, reaf irmando essa associa- ção ent re f ilosof ia e inf ância af irmada por “ Adimant o”. “ Cálicles” en t ra n a con versa en f u recido pela f orma que “ Sócrat es” t rat ou “ Górgias” e “ Polo” , seus dois int erlocut ores ant eriores. Ele pergunt a a “ Sócrat es” se est e f ala sério ou se est á brin-can do. “ Sócrat es” respon de qu e ambos com-part i l ham u m m esm o af et o, porém , di f erem com relação ao objet o desse af et o: en qu an t o ele ama a Alcibíades e à f ilosof ia, Cálicles ama Demos e ao povo at en ien se (ou seja, ele ama a ret óri ca e a pol ít i ca, f i l odem i a) (481c- d). “ Cálicles” responde com a clássica cont ra- po-si ção en t re n at u reza (phýpo-si s) e l ei (n ó m o s) (4 8 2 e). Arg u m en t a q u e “ Só crat es” ref u t o u seus int erlocut ores ant eriores pergunt ado em u m plan o dif eren t e do qu e eles respon diam. Segu n do “ Cálicles” , “ Polo” argu men t ava, por exem pl o, qu e é pi or sof rer i n j u st i ça do qu e comet ê- la n o plan o da n at u reza e “ Sócrat es” o levava ao plan o da lei, n o qu al acon t ece o cont rário. A seguir, “ Cálicles” f az uma apolo-gia da nat ureza (na qual “ o f ort e domina o f co” ) e u ma ácida crít ica à lei (“ obra dos f ra-cos e da mult idão” ). Depois de sua apologia à n at u reza, ele diz:

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A proximidade “ nat ural” ent re f ilosof ia e i n f ân ci a se expl i ca, n essa passagem , pel a inadequação social de ambas: quando somos jovens podemos permit ir essa diversão e car- nos a coisas sem import ância, mas se dedi-camos t oda a vida à f ilosof ia seremos inexpe-rient es (apeíron) para manejarmos os assunt os mais import ant es, que são os assunt os da vida pública da pólis; desconheceremos as leis, não saberem os t rat ar os ou t ros ci dadãos, em pú -bl i co e n o cam po pri vado, n ão serem os, n es-t e caso, escl areci dos n em bem con si derados (ém p ei ro n ). É i sso o q u e su ced e a Só crat es. A f i l o so f i a, co m o a i n f ân ci a, est á l i g ad a à f al t a de experi ên ci a. O f i l ósof o é t ão ri dícu l o e i n f an t i l n o s assu n t o s p ú b l i co s co m o o s p o l ít i co s o são n as co n v er sas f i l o só f i cas (4 8 4 d - e). “ Cál i cl es” avan ça u m p o u co m ai s n a co m p aração :

Est á m u i t o b em o cu p ar- se d a f i l o so f i a n a medida em que serve para a educação e não é f ei o f i l osof ar en qu an t o se é j ovem ; m as qu an do se é vel ho, o f at o t orn a- se vergo-n h o so , Só cr at es, e eu vergo-n ão ex p er i m evergo-n t o a mesma impressão ant e os que f ilosof am do que ant e aos que f alam mal e brincam. Com ef eit o, quando vejo brincar e balbuciar uma criança, que por sua idade deve ainda f alar assim, me causa alegria e me parece gracio-so, próprio de um ser livre e adequado à sua i d ad e. De m o d o co n t rári o , q u an d o escu t o u m a cri an ça f al ar com cl areza, parece- m e al g o d esag rad ável , i rri t a- m e o o u vi d o e o julgo próprio de um escravo. De out ro lado, qu an do se ou ve u m hom em f al ar m al ou o vemos brincando, f ica ridículo, degradado e digno de açoit es. Est a mesma impressão ex-perimen t o t ambém a respeit o dos qu e f ilo-sof am. Cert ament e, vendo a f iloilo-sof ia em um jovem, t enho comprazer, me parece adequa-do e considero que est e homem é um ser li-vre; pel o con t rári o, o qu e n ão f i l osof a m e parece servil e in capaz de ser est imado, ja-m ai s di gn o de al go bel o e gen eroso. M as, por out ro lado, quando vejo um homem de

idade que ainda f ilosof a e que não renuncia a ist o creio, Sócrat es, que est e homem deve ser açoit ado. (485a- d)

De um lado a f ilosof ia, a educação, o f alar mal, o balbuciar, o brincar; de out ro lado, o homem adult o, a polít ica, o f alar bem, o f a-lar com ca-lareza. Por nat ureza, a f ilosof ia e a educação est ão junt as e são próprias de uma idade t enra, como o f alar mal, o balbuciar e o brincar. Para “ Cálicles” , o problema não est á nem na f ilosof ia, nem na inf ância, em t ermos absolu-t os. Pelo conabsolu-t rário, quando aconabsolu-t ecem junabsolu-t as em uma et apa da vida, são proveit osas: “ est á bem ocupar- se da f ilosof ia na medida em que serve para a educação (paideías)” , af irma “ Cálicles”. A filosofia vale como entretenimento e formação de algumas disposições. O problema, em sua opi-nião, é quando as coisas não respondem a seus t empos nat urais. A liberdade ou a escravidão, a complacência ou os açoites, os risos ou a fúria de “ Cálicles” virão da manut enção ou da quebra dessa linha divisória, de seguir a nat ureza ou de violentá- la. De modo que, para “ Cálicles” , a infân-cia e a filosofia podem estar juntas porque ambas são, por nat ureza, coisas sem import ância.

Plat ão responderá algumas poucas vezes a esse argument o com uma est rat égia semelhan-t e: no plano do que é, a f ilosof ia é inúsemelhan-t il, porque a pólis está sem rumo, perdida, desordenada, com os valores invert idos. No plano do que deve ser, os f ilósof os se ocupam do mais import ant e: o governo da pólis.

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jul-ga ser necessário t er em cont a as est ações, o est ado do t empo, o moviment o dos ast ros e out ras coisas t ais para conduzir adequadamen-t e a embarcação (488a- 489a). Em u m n avio como est e, af irma “ Sócrat es” , os f ilósof os são cert ament e inút eis, mas não são responsáveis por isso, já que o nat ural seria que os homens que t êm necessidade de governo f ossem em busca de quem t em capacidade para f azê- lo (489b- c).

No Górgi as, “ Sócrat es” respon de di -zendo que ele, o f ilósof o, é um dos poucos, se n ão o ú n ico, at en ien se qu e se dedica à “ ver-dadeira” art e da polít ica (521d). O qu e se f az na pólis é sof íst ica e ret órica, não polít ica. Tal q u al o “ verd ad ei ro ” p i l o t o d o n avi o , em A República, o verdadeiro polít ico se preocupa com o bem e n ão com o prazer. “ Sócrat es” considera uma hipot ét ica acusação e um even-t u al j u ízo con even-t rári o, n a pól i s, pel a segu i n even-t e imagem:

Se me ocorre o mesmo que eu dizia a Pol o, q u e serei j u l g ad o co m o o seri a, d i an t e d e u m t ri b u n al d e cri an ças, u m m éd i co acu sado por u m cozi n hei ro. Pen sa, com ef ei -t o , d e q u e m o d o p o d er i a d ef en d er - se o m éd i co p o st o em t al si t u ação : “ Cr i an ças, est e h o m em l h es cau so u m u i t o s m al es; aos m en ores de vocês, el e os dest roça cor-t an d o e q u ei m an d o seu s m em b r o s, e o s f az so f r er en f r aq u ecen d o o s, su f o can d o -o s; d á a v-o cês as b eb i d as m ai s am arg as e os obri ga a passar f om e e sede; n ão com o eu q u e o s f ar t ar ei co m t o d a a so r t e d e m an j ares ag rad ávei s”. O q u e crês q u e p o -d er i a -d i zer o m é-d i co p o st o n est e p er i g o ? Ou m el h o r, se d i ssesse a verd ad e: “ Eu f a-zi a t u d o i sso , cri an ças, p o r su a saú d e”. O q u an t o cr ê q u e p r o t est ar i am t ai s j u ízes? Não g r i t ar i am co m t o d as as su as f o r ças? (Gó rgi as 521e- 522a)

Nesse caso, “ Sócrat es” compara os po-lít icos a crianças que julgam o médico verda-deiro. Acusam- no de causar- lhes muit os males. Não percebem qu e o médico de verdade cu

i-da i-da saú de de seu s pacien t es e n ão de seu prazer. Como t ampouco os polít icos de At enas percebem qu e o verdadei ro pol ít i co bu sca o bem e n ão o prazer. Nessa imagem do ju lga-ment o, as crianças ocupam o mesmo lugar que ocupavam os bêbados e os gulosos que t oma-vam o cont role da embarcação na “ alegoria do n avi o”. São os qu e n ão t êm dom ín i o e n em con t role sobre si.

Assim, “ Sócrat es” responde a “ Cálicles” com sua mesma moeda: “ as crianças são vocês”. As crianças são sempre os out ros. Esse t alvez seja o único pont o em que “ Sócrat es” e “ Cáli-cles” coincidem. Discordam sobre quase t udo: sobre a f ilosof ia, sobre a polít ica, a ret óri ca, o bem , o prazer. M as em u m a coisa coi n ci dem : “ as cri an ças são vocês, os ou t ros”. As cri an -ças são a f i gu ra do n ão desej ado, de qu em n ão acei t a a p r ó p r i a ver d ad e, d a d esq u a-l i f i cação do ri vaa-l , de qu em n ão com part i a-l ha uma f orma de ent ender a f ilosof ia, a polít ica, a edu cação e, por i sso, dever- se- á ven cê- l a. As cri an ças são, para “ Sócrat es” e para “ Cá-l i cCá-l es” , port an t o para PCá-l at ão, u m a f i gu ra do desprezo, do exclu ído, o qu e n ão merece en -t rar n aqu i l o de m ai s val i oso di spu -t ado por Plat ão, t eoricament e, com os sof ist as: a quem co r - r esp o n d e o g o v er n o d o s assu n t o s d a pól i s, t à pol i t i kà.

A in f â n c ia c o m o m a t e r ia l d a p o lít ic a

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t erm os de se precaver de com et er i n j u st i ça, m ai s do qu e de padecê- l a, e qu e o m el hor modo de vida consist e em prat icar e exort ar os ou t ros a prat icar a ju st iça e t odas as ou t ras virt udes (527a- e). Na República, t ant os cuida-dos n a cri ação e edu cação dessas pequ en as cri at u ras se j u st i f i cam porqu e el as serão os f ut uros guardiões da pólis, seus governant es. Deve- se pen sar n isso ao desen har su a edu ca-ção. Em As Leis, os legisladores se ocupam da ed u cação n o m ei o d e u m a p o r m en o r i zad a an ál i se q u e b u sca esg o t ar at é o s m ín i m o s det alhes da vida n a comu n idade da pólis.

Volt emos à República. Como sabemos, essas crianças de cuja educação se preocupa Plat ão serão, no f ut uro, reis que f ilosof em e f i-lósof os que governem, de modo just o, a pólis (V 473c- e). O legislador se preocupa, sobret udo, com sua criação (t rophé), a et apa imediat ament e post erior ao nasciment o, por ser a mais t rabalho-sa de t odas, e t ambém com sua educação (V 450c). O princípio para organizar a vida ent re os guardiões é proverbial: “ comuns às coisas dos amigos” (IV 423e ss.; cf . V 450c ss). Ent re eles, homens e mulheres, não haverá posses individu-ais de nenhuma ordem: nem mat eriindividu-ais nem es-pirit uais. Os bens, os companheiros e os f ilhos t ambém seriam comuns (IV 421c ss.; cf . V 457d), caso se queira f oment ar a maior unidade possí-vel (que digam “ é meu” e “ não é meu” sobre o mesmo), cult ivar o int eresse de cada um pelo t odo (o comum, a comunidade) por sobre suas part es (uma hipot ét ica f amília ou propriedades individuais) e a um só t empo produzir gover-nant es “ dos mais excelsos” (V 459e).

A procri ação en t re os gu ardi ões e a criação de suas crianças est á rodeada de uma série de int rigas e mist érios just if icados pelo legislador para mant er e melhorar a “ qualidade humana” da pólis (V 459c ss). M ent iras e en-ganos diversos, sort eios espúrios, f est as orques-t radas são planejados com a inorques-t enção de per-mit ir mais procriações ent re guardiões do que ent re as classes “ inf eriores” , sem que est as o saibam. Uma vez nascidos os pequenos, ho-m en s e ho-m u l heres, especi al ho-m en t e desi gn ados

para isso, se ocuparão deles em uma casa es-pecial, em um bairro específ ico da pólis, prévio ocult ament o secret o dos que nascem com al-guma def ormidade (V 460c).

Ali, nos primeiros anos, as crianças se-rão indist int ament e aliment adas pelas mães no período de amament ação, sem que se reconhe-çam seus f ilhos. Os jogos inf ant is serão regula-ment ados rigorosaregula-ment e para que as crianças desenvolvam desde pequenas a est ima e o ape-go pelas leis. A música e a ginást ica serão pra-t icadas segundo cripra-t érios igualmenpra-t e espra-t ripra-t os, cuidando para que não se int roduza inovação nenhuma perant e a ordem est abelecida pelos f undadores da pólis (IV 424b- e; cf . V 460c- d). En con t ram os n esse esqu em a os doi s element os básicos que def inem uma clássica pedagogia f ormadora (Larrosa, 1996). Por um lado, educa- se para desenvolver cert as dispo-sições que exist em em est ado brut o, em pot ên-cia, no sujeit o a educar; por out ro lado, edu-ca- se para con f ormar, para dar f orma, n esse sujeit o, a um modelo prescrit ivo, que f oi est a-belecido previament e. A educação é ent endida como t aref a moral, normat iva, como o ajust ar o que é a um dever ser. Na medida em que a normat ividade que orient a a educação da Re-pública é um modelo de pólis just a, t rat a- se t ambém ou, sobret udo, de uma normat ividade e de uma t aref a polít icas.

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R e f e r ê n c ia s b ib lio g r á f ic a s

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Recebido em 15.10.02 Aprovado em 18.03.02

Walter Omar Kohan é professor-titular de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador das séries: Filosofia na Escola (Editora Vozes) e Educação: Experiência e Sentido (Editora Autêntica). govern arão adequ adam en t e a pól i s e, dessa

maneira, nos permit irão conf ormar a pólis que desej am os produ zi r.

Nesse regist ro, as crianças não int eres-sam pel o qu e são — cri an ças — m as porqu e serão os adu l t os qu e govern arão a pól i s n o f ut uro. Nós, os adult os do present e, os f unda-dores da pólis, os que sabemos da ausência de cert ezas e os riscos desse chegar a ser, quere-mos o melhor para eles. Ist o é, a uma só vez, o que nós consideramos melhor para nós, o que não pudemos ser, mas que queremos f azer que eles sejam. Tent aremos, ainda, acompanhá- los, ajudá- los nesse caminho. Para isso, nós os edu-caremos, desde a mais t enra idade. E o f aremos com nossas melhores int enções. Nesse acompa-nhar os novos (hoi néoi) encont ra sent ido a edu-cação f ormadora: na passagem de um mundo velho, que já não queremos, para um mundo novo — novo para nós, claro, velho para os no-vos —, que os out ros t rarão com nossa ajuda; ou que nós t raremos com a ajuda deles.

Assim, a educação da República — como t oda a educação f ormadora em sent ido clássico

— n ão resi st e à t en t ação de apropri ar- se da n ovi dade dos n ovos, à t en t ação de f azer da educação uma t aref a eminent ement e polít ica e da polít ica o sen t ido f in al de u ma edu cação, a part ir de u ma lógica da polít ica det ermin a-da com independência a-da vont ade dos novos. Educa- se para polit izar os novos, para f azê- los part icipant es de uma pólis que se def ine pre-viamen t e para eles. As relações en t re polít ica e educação são carnais: educa- se a serviço de u ma polít ica a u m só t empo em qu e a ação polít ica persegue, ela mesma, f ins educat ivos. Por isso a educação é t ão decisiva para Plat ão, porque é sua melhor f errament a para alcançar a pólis sonhada.

Referências

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