UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIDNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E FORMAÇÃO DO LEITOR
AFFONSO HENRIQUES DA SILVA REAL NUNES
O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA NA TELEVISÃO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO PROGRAMA AFINANDO A LÍNGUA
AFFONSO HENRIQUES DA SILVA REAL NUNES
O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA NA TELEVISÃO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS
DO PROGRAMA AFINANDO A LÍNGUA
NATAL - RN
2006
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.
AFFONSO HENRIQUES DA SILVA REAL NUNES
O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA NA TELEVISÃO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO PROGRAMA AFINANDO A LÍNGUA
Aprovada em 10 de agosto de 2006.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Arnon Alberto Mascarenhas de Andrade – Orientador
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Antônio de Carvalho Lopes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
___________________________________________________________________ Prof. Dr. Manoel Pereira da Rocha Neto
Universidade Potiguar
AGRADECIMENTOS
Aos amigos que sempre estiveram ao meu lado durante o difícil processo de realização deste trabalho.
Ao Professor Dr. Arnon Alberto Mascarenhas de Andrade, que me acolheu como seu orientando, depois de ter me possibilitado participar de sua base de pesquisa, mesmo antes de inscrito regularmente no Programa de Pós-graduação em Educação.
Ao Professor Dr. Marcos Costa, do Departamento de Lingüística da UFRN, pela sua atenção, simpatia, paciência e inestimáveis contribuições para a redação deste texto.
Ao Professor Dr. Alípio Souza Filho, do Departamento de Ciências Sociais da UFRN, pelo incentivo e orientações referentes à sua área de pesquisa, fundamentais para a concreta definição do meu objeto de estudo.
À Professora Dra. Marta Araújo, pelo incentivo, elogios – que sempre nos dão confiança – e exemplo de atitude profissional, importante para nos orientarmos no meio acadêmico.
=
A sociedade hierárquica só é possível nas bases da pobreza e ignorância. George Orwell
RESUMO
Esta dissertação trata do ensino da Língua Portuguesa na televisão sobe o viés de uma possível contribuição deste mnio dn comunicação no sentido de conferir um maior dinamismo e interesse por parte dos estudantes desta disciplina. O programa Afinando a Língua, exibido no Canal Futura, tem como um dos seus objetivos ser exibido na sala de aula como ferramenta que ampliasse o universo das aulas para uma disciplina que é considerada de difícil apreensão.
Confinadas ao ensino gramaticista, as aulas de português têm sido, há muito tempo, encaradas como herméticas e pouco condizentes à realidade do idioma praticado pelos brasileiros. Acaba-se, então, por criar-se mitos que levam os alunos a crer que o idioma português é um dos mais complicados e inacessíveis e que, no Brasil, não se fala bem o idioma – fala-se bem português, continuam a pregar os mitos, apenas em Portugal.
A distorção começa exatamente pelo tipo de ensino que se baseia numa norma-padrão, apenas uma das variações linguísticas de um idioma em qualquer lugar do mundo, ditada por regras ancestrais, escritas no país de origem do nosso idioma. A escola não aceita as diversas outras variações linguísticas do português praticado em nosso extenso País, com quase 190 milhões de habitantes, taxando-as de formas “erradas” de falar. A repressão que persegue o aluno desde os primeiros anos de sua vida escolar o faz se afastar do idioma e a considerá-lo como algo estranho à sua cultura, aquela que aprendeu em casa, com a família e os vizinhos.
Ao invés de oferecer novas possibilidades para o aprendizado do idioma, a televisão, com seu poder audiovisual, apenas reforça a idéia de que todos, em qualquer situação de vida, deveriam falar o português-padrão, dando as costas para aquilo que aprenderam bem antes de entrar na escola. Com esta postura conservadora, pouco acrescenta às tradicionais aulas de português, desperdiçando ferramentas valiosas como o poder de trazer o mundo exterior, as diferenças de cada região do Brasil, para a sala de aula numa atitude que poderia ampliar, e muito, o universo cultural e lingüístico dos alunos.
ABSTRACT
The present dissertation aims to an approach of the teaching of Portuguese language on television, trying to find how possible is the contribution of this communication mndia in the sense to give a higher classroom dynamism and to excite the students for that subject. The TV show “Afinando a Língua” (roughly, “putting the language in tune”), a Canal Futura feature, have as one of these main purpose be shown on the classrooms as a tool that could enlarge the possibilities of a subject often took as particularly difficult.
Blocked by the traditional grammatical teaching, the Portuguese lessons have been for years pictured as hermetic and far from the Brazilian speakers reality. So, people create myths around the language that earns adjectives as complicate and inaccessible and that Brazilians can’t speak the Portuguese really good, because it only happens in Portugal, the original country of the language.
These myths start exactly because the teaching orientation take their basis only on the standard language, in fact just one of the language variations – by the way, anywhere in the world – dictated by ancestral rules, once produced in Portugal. The regular school don’t accept the Portuguese variation as a natural fact for a huge country as Brazil, with almost 190 million people, regarding it as a “wrong” way of talking. The repression that follows the students from the early school days make them repel the language supposedly learned at school. In fact, they normally face it as something unfamiliar, different from the language that they have use to learn at home, from the family and neighbors
Instead of giving new possibilities for the language learning, the television, a powerful audiovisual device, only reinforces the idea that everyone, in any life situation, should talk the standard Portuguese, turning its back to the learning acquired much earlier that any person reach the school. This conservative attitude brings almost no changes, between the shows that try to teach the idiom and the traditional Portuguese lessons, wasting valuable tools that could lead to the possibility to open the classroom to the outside world, and to the wider knowledge of the differences from each Brazilian region culture, a positive attitude that could much enlarge the cultural and linguistic students universe.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO... 10
1. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO... 15
1.1. Análise crítica vnrsus análise de discurso... 15
1.2. Língua: a fala da sociedade... 17
1.3. Ensino da língua para o mundo... 23
1.4. O preconceito lingüístico... 29
1.5. Televisão e imposição do idioma... 37
2. A LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL... 42
2.1. O idioma dos portugueses e dos brasileiros: os primeiros contatos... 42
2.2. A Língua Portuguesa no Brasil de hoje... 47
2.2.1. A ortografia da Língua Portuguesa e o ensino... 50
2.3. A Língua Portuguesa na sociedade da informação... 56
3. TELEVISÃO E EDUCAÇÃO... 58
3.1. Aspectos da influência social da televisão... 58
3.2. Televisão e a idéia de cultura para a massa... 69
3.3. A televisão e a escola... 74
3.3.1. A escola e os programas educativos de televisão... 79
3.4. A televisão e a Língua Portuguesa... 83
4. O PROGRAMA AFINANDO A LÍNGUA E O CANAL FUTURA... 87
4.1. O Canal Futura e as TVs educativas: algumas considerações... 87
4.2. Análise crítica do programa Afinando a Língua... 90
4.2.1. O apresentador e a gramática intuitiva... 92
4.2.2. Os temas do programa e sua relação com o ensino do idioma... 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 107
REFERÊNCIAS... 114
INTRODUÇÃO
A tradição da navegação fez com que os portugueses atravessassem os oceanos nos
séculos XV e XVI e difundissem a língua de Portugal em terras tão distantes da Europa
quanto a Ásia, a África e o continente americano. Assim, os povos nativos que habitavam a
região que hoje se chama Brasil tomaram contato, é verdade que a base de muita agressão,
com um idioma que, com o passar dos tempos, se tornaria a língua oficial do nosso país.
Apesar da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) estimar que ainda existam cerca de 200
línguas faladas por diferentes segmentos da população – além da população indígena,
descendentes de imigrantes italianos, japoneses, alemães entre outros permanecem praticando
o idioma natal (As línguas indígenas, 2006) – a esmagadora maioria dos brasileiros fala o
idioma português. O nosso falar é fruto de uma miscigenação cultural, estrangeira e nativa,
que se deu num processo histórico que nos levou a comunicarmos basicamente em um único
idioma num país com um território capaz de abrigar fisicamente várias nações e, como
poderia se prever, vários tipos de cultura. Mas somos uma única nação.
A Língua Portuguesa é o nosso idioma nacional e se transformou na principal forma
de comunicação de Norte a Sul. Compartilhamos o idioma português com seis países
(MEDEIROS, 2005) – Angola, com 13,9 milhões de habitantes, Cabo Verde, 446 mil, Guiné
Bissau, 1,3 milhão, Moçambique, 19 milhões, Portugal, 10 milhões e São Tomé e Príncipe,
148 mil. Reunimos, de longe, o maior número de falantes da língua lusitana – cerca de 186,4
milhões, em junho de 2006, pelas estimativas atualizadas diariamente pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2006). Os seis países, acima citados, representam, juntos,
cerca de 24% da nossa população. A comparação permite estimar a que ponto pode chegar a
A língua é uma das principais manifestações da cultura de um povo, assim, o idioma
adotado no Brasil, como acontece em outros países, além de diferir da língua original, espelha a
heterogeneidade de nossa população.
Todas as línguas apresentam um dinamismo inerente, o que significa dizer que elas são heterogêneas. Encontram-se assim formas distintas que, em princípio, se equivalem semanticamente no nível do vocabulário, da sintaxe e morfossintaxe, do subsistema fonético-fonológico e no domínio pragmático-discursivo. O português falado no Brasil está repleto de exemplos (MOLLICA, BRAGA, 2003, p. 9).
Entendemos que existem maneiras particulares de usar a Língua Portuguesa nas diversas
regiões do país, e mesmo numa única cidade, os diferentes sotaques e os distintos vocabulários
específicos. Se isso é tão claro, podemos pensar que esta informação poderia ser discutida nas aulas
de Língua Portuguesa – ela não é. Veremos durante este trabalho o que leva os professores a se
prender a uma gramática que serve tanto a Portugal, quanto a todos os outros países lusófonos,
inclusive o Brasil. A percepção de que este guia da língua se afasta da realidade brasileira já é
compreendida por um razoável número de professores, mas a falta de um instrumento que o
substitua perpetua a sua utilização.
[...] os professores sentem que a doutrina gramatical é ultrapassada, incoerente e muitas vezes simplista até a ingenuidade; os alunos tendem a desencantar-se de uma disciplina que só tem a oferecer-lhes um conjunto de afirmações aparentemente gratuitas e sem grande relação com fatos observáveis. Na sala de aula, às vezes o único refúgio são as atitudes autoritárias, quando o professor não se sente em condições de liderar discussões verdadeiramente racionais sobre gramática (PERINI, 1995, p. 5).
O ensino que prioriza a gramática da Língua Portuguesa se torna ultrapassada nas salas de
aula brasileiras justamente porque a diversidade cultural do país levou à formação de uma série de
variedades lingüísticas típicas do Brasil (e não de Portugal). Essas variedades são desprezadas pelo
ensino oficial do idioma, que as consideram “erros de português”, manifestações que devem ser
estratificação social, passou a ser considerada a língua “culta”, desejável como pretenso meio de
ascensão social e possibilidade de compartilhar dos segmentos mais ricos da sociedade.
As falhas da gramática tradicional podem ser resumidas em três grandes pontos. Sua
inconsistência teórica e falta de coerência interna; seu caráter predominantemente normativo;
e o enfoque centrado em uma variedade da língua, o dialeto padrão (escrito), com exclusão de
todas as outras variantes. Assim, a gramática deverá, primeiro, colocar em seu devido lugar as
afirmações de cunho normativo: não necessariamente suprimindo-as, mas apresentando o
dialeto padrão como uma das possíveis variedades da língua, adequada em certas
circunstâncias e inadequada em outras (é tão "incorreto" se apresentar a um cargo empresarial
no dialeto coloquial quanto discutir futebol no dialeto padrão). Depois, a gramática deveria
descrever pelo menos as principais variantes (regionais, sociais e situacionais) do português
brasileiro, abandonando a ficção, cara a alguns, de que o português do Brasil é uma entidade
simples e homogênea.
Uma vez que a noção de variedade lingüística é negada pelo ensino oficial, a escola
contribui não apenas dificultar a comunicação na língua materna, mas ainda para acentuar
problemas de afirmação cultural e de distinção entre classes, com a idéia de que quem não adota a
língua padrão está excluído dos círculos de prestígio e estigmatizado com adjetivos referentes à falta
de conhecimento.
Da mesma maneira, a televisão brasileira contribui para esta descriminação ao exibir
programas – entre eles os humorísticos – que apresentam tipos como Snu Crnysson do programa Casseta & Planeta (CASSETA, 2006) que se propõem a fazer humor com uma forma de falar fora
do padrão. As maneiras de expressão em variantes lingüísticas à norma estipulada nas gramáticas
vira motivo de piada – coisa que poucos desejam para si – além de ampliar a idéia, reforçada pela
televisão brasileira apresenta os programas que se propõem a ensinar a Língua Portuguesa “correta”.
Um desses programas é o Afinando a Língua, exibido pelo Canal Futura.
Segundo a apresentação do seu sitn o programa propõe:
A partir da exibição comentada de videoclipes musicais, com apoio de diferentes textos e entrevistas, o Afinando a Língua é um programa semanal que oferece ao jovem uma nova visão sobre o aprendizado da língua portuguesa. Com apresentação de Tony Bellotto, o Afinando a Língua utiliza letras de músicas, textos diversos e entrevistas com convidados como ferramenta para abordar questões ligadas a gêneros literários, gramática, estilo e etc. (AFINANDO, 2004).
Os produtores ainda tentam alinhar o programa com os Parâmetros Curriculares Nacionais:
[...] a centralidade do conhecimento nos processos de produção e organização da vida social rompe com o paradigma segundo o qual a educação seria um instrumento de "conformação" do futuro profissional ao mundo do trabalho.
Disciplina, obediência, respeito restrito às regras estabelecidas, condições até então necessárias para a inclusão social, via profissionalização, perdem relevância, face às novas exigências colocadas pelo desenvolvimento tecnológico e social (AFINANDO, 2004, grifo nosso).
Apesar da intenção do Afinando a Língua de ser mais dinâmico e criativo se comparado a
outros do mesmo gênero, como o Nossa Língua Portuguesa, apresentado na TV Cultura pelo
professor Pascale Cypro Neto, o programa segue basicamente a linha de ensinar os conceitos
convencionais da Língua Portuguesa, como interjeição, substantivação, concordância etc. Em
nenhum momento mostra como “[...] disciplina, obediência, respeito restrito às regras estabelecidas,
condições até então necessárias para a inclusão social, via profissionalização, perdem relevância
[...]”, como proclama no texto de apresentação no sitn.
Produzido no Rio de Janeiro, apresentado por Tony Bellotto, que não disfarça o sotaque
carioca, o Afinando a Língua exibe clipes musicais e indica livros, referentes aos temas de cada
edição. Nota-se que a estética do programa traz uma clara referência ao universo da classe
dominante, seja nas entrevistas de rua no Rio de janeiro, seja no cenário do estúdio. Tudo com a
cara do sul do país, no caso, o Rio de Janeiro. Um programa essencialmente carioca, pretende
das TVs por assinatura, o sinal do Canal Futura é aberto a qualquer um que possua uma antena
parabólica. Que português é esse? A norma padrão, com tempero do sul do país.
A partir do conceito de variedade lingüística, da Sociolingüística, da idéia de uma Educação
para o mundo, que abre a escola para a sociedade que a cerca, e da Comunicação, que pode
incentivar uma maior integração entre as pessoas, o objetivo deste trabalho é mostrar que a TV pode
ser uma grande aliada na transformação do ensino da Língua Portuguesa nas salas de aula
brasileiras, a partir de uma possível tomada de consciência dos produtores de que não devem
retratar uma única realidade lingüística para espectadores tão heterogêneos, espalhados por todo o
Brasil.
Os programas de TV que se propõe a ampliar as possibilidades de ensino da Língua
Portuguesa na escola poderiam se tornar porta-vozes da diversidade lingüística como um traço
cultural, e não depreciativo, do nosso povo. Alguns fatores os tornam aptos a isso.
Possibilidade de ampla difusão, audiência diversificada, caráter não escolar com a
possibilidade de exibir contextos de difíceis acessos na sala de aula. Isso poderia fazer com
que os alunos compreendessem melhor o idioma que falam e escrevem, através de exemplos e
informações das formas mais diversas do português falado país afora. A TV, bem ou mal, tem
esta capacidade, trazer um universo inteiro para uma sala.
Assim, os alunos talvez rejeitassem menos o ensino da língua padrão nas escolas, uma
vez que teriam a informação de que a forma como aprenderam o idioma em casa, na sua
comunidade, não deve ser jogada fora, como nada do nosso passado se deve jogar fora.
Talvez aprendessem que é preciso sim se apropriar de uma língua oficial para poder usá-la em
momentos específicos. Talvez passassem a gostar de aprender a língua que existe para que
eles se expressem da melhor maneira possível, porque esta língua faz parte da sua realidade e
As detestadas "aulas de Português", o desânimo dos professores dessa matéria (que deveria ser a preferida, pois lida com nosso instrumento de expressão mais pessoal); o malogro desse ensino, comprovado em concursos, em textos falados e escritos de nossos diplomados universitários; tudo isso demonstra as deficiências e má orientação de nosso ensino de língua materna (LUFT, 1993, p. 12).
É com a esperança de que a comunicação, através da televisão, possa lançar uma luz,
mesmo que a de uma vela, na reformulação do ensino da Língua Portuguesa nas escolas que
Referencial teórico-metodológico
1.1 – Análise crítica versus análise de discurso
O trabalho que ora se apresenta é orientado, principalmente, por questões desenvolvidas
pelos teóricos da Educação, Paulo Freire e John Dewey, da Comunicação, Muniz Sodré e Joan
Ferréz, e da Lingüística, mas especificamente a Sociolingüística, desenvolvida, inicialmente, por
Willam Labov, nos anos 1960. Esta dissertação pretende realizar uma hermenêutica a respeito do
ensino da língua portuguesa na televisão, especialmente através do programa Afinando a Língua,
exibido pelo Canal Futura, ensino este diretamente relacionado ao realizado nas escolas de nível
fundamental, médio e superior. Tomamos como pressuposto – levando em conta a orientação da
própria emissora, o Canal Futura – que a principal função do Afinando a Língua seja o de ser
gravado em fitas de videocassete, ou DVD (digital vidno disc), para ser exibido em sala de aula como complemento às aulas. Esta é a política do Canal Futura desde a sua inauguração, não apenas
para o referido programa como para toda a sua grade de programação.
A primeira possibilidade metodológica para a análise do programa de TV seria adotar a análise de
discurso, mas a idéia foi abandonada assim que se percebeu a dimensão que este texto poderia
tomar, possivelmente tendendo à ampliação demasiada do tema sem chegar ao objetivo de analisar
objetivamente o assunto proposto. Chegou-se à conclusão de que a análise de discurso não se
encaixaria como possibilidade metodológica na nossa proposta de estudo já que:
Muitas vezes, o discurso toma dimensões além do que é simplesmente dito através de
palavras: significa uma postura ou tomada de partido de uma pessoa, ou um grupo de pessoas, em
relação a determinado assunto como forma de se posicionar frente ao mundo e, ao mesmo tempo,
criar um mundo ao seu redor.
Os discursos não apenas refletem ou representam entidades e relações sociais, eles as constroem ou as “constituem”; diferentes discursos constituem entidades-chave (sejam elas a “doença mental”, a “cidadania” ou o “letramento”) de diferentes modos e posicionam as pessoas de diversas maneiras como sujeitos sociais (por exemplo, como médicos ou pacientes), e são esses efeitos sociais do discurso que são focalizados na análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p. 22).
Assim, um trabalho de análise de discurso sobre um programa de televisão não estaria
completo se levasse em conta apenas o que é dito, mas teria que levar em conta também o contexto
em que o discurso é proferido. Seria preciso analisar conceitos como ideologia, entendendo-o não
apenas com a interpretação marxista de luta de classes.
Primeiro que tudo, uma palavra para expor a razão de princípio que me parece, se não fundamentar, pelo menos autorizar o projecto de uma teoria da ideologia nm gnral, e,não o de uma teoria das ideologias particulares, que exprimem sempre, seja qual for a sua forma (religiosa, moral, jurídica, política), posiçõns dn classn. Será sem dúvida necessário desenvolver uma teoria das ideologias consideradas no duplo aspecto acima indicado. Veremos então que uma teoria das ideologias repousa em última análise na história das formações sociais, portanto na dos modos de produção combinados nas formações sociais e da história das lutas de classes que nelas se desenvolvem. Neste sentido, é claro, que não se pode formular uma teoria
das ideologias nm gnral, pois que as ideologias (definidas sob a dupla relação que indicamos acima: regional e de classe) têm uma história, cuja determinação em última instância se encontra, como é evidente, fora das ideologias em si, embora dizendo-lhes respeito (ALTHUSSER, 1974,p. 71 e 72, grifos do autor).
A ideologia a qual nos referimos seria aquela que perpassa toda a sociedade sem distinção,
que promove a alienação na cultura, uma realidade construída pela razão humana e que coloca o
[...] no sentido forte do termo, a ideologia só pode efetivar-se plenamente nas sociedades históricas, isto é, naquelas sociedades para as quais a questão de sua origem ou de sua instituição é não só um problema teórico, mas sobretudo uma exigência prática renovada. Em sentido amplo, toda sociedade, por ser sociedade, é histórica: possui data própria, instituições próprias e precondições específicas, nasce, vive e perece, transforma-se internamente. O que estamos designando, aqui, como sociedade
propriamnntn histórica é aquela sociedade para a qual o fato mesmo de possuir uma data, de pressupor condições determinadas e de repô-las, de transformar-se e de poder perecer não é um dado, mas uma questão aberta. [...] Produtora de sua alteridade, a sociedade propriamente histórica é aquela que não pode, senão sob a forma da violência e da máscara, repousar numa identidade fixa, onde se reconheceria a si mesma. Justamente por isso nessa sociedade o fenômeno da ideologia ganha sentido concreto (CHAUÍ, 1981, p. 15 e 16, grifos da autora).
Os motivos acima expostos nos levaram a optar por uma análise crítica do programa
Afinando a Língua como uma forma de investigar o que uma emissora de televisão como o Canal
Futura, que se declara como uma nova proposta de TV educativa, propõe quando se lança na área de
ensino da língua portuguesa. Uma vez que nos lançamos à tarefa de analisar criticamente um
programa de televisão que se propõe educativo, esperamos vincular esta análise ao poder de
penetração e à representatividade social que a televisão adquiriu desde a sua criação no Brasil em
1950. Desta forma, pretendemos não só analisar o programa em si, mas também contextualizá-lo no
universo do ensino da língua portuguesa no Brasil.
1.2 – Língua: a fala da sociedade.
Acredita-se que um estudo sobre ensino da língua portuguesa na televisão não pode se furtar
a falar de Comunicação, Educação e Lingüística e espera-se deixar claro como são tênues as
fronteiras entre estas três áreas, já que nenhum indivíduo se apropriaria da língua sem que alguém
lhe houvesse algum dia ensinado, fato que não ocorreria sem o processo de educação e de
comunicação. Por ser um processo social, dado fundamental para o trabalho que ora se realiza,
adota-se os conceitos da Lingüística, e da Sociolingüística, que não compreendem a língua sem que
haja povo que a fale. Dever-se-ia também incluir a Sociologia neste grupo, o que daria um enfoque
ideológicos. Apesar de se pretender citar questões sociais, que envolvem o preconceito lingüístico e
a dominação, não é intenção deste trabalho ampliar demasiadamente o objeto de pesquisa, fato que
envolveria os complexos dos mecanismos da sociedade. Porém, deve-se insistir uma abordagem
social, já que, sem ela, este trabalho não poderia ter avançado, ou melhor, nem poderia ter
começado.
Assim como não há sociedade sem linguagem, não há sociedade sem comunicação. Tudo o que se produz como linguagem ocorre em sociedade, para ser comunicado, e, como tal, constitui uma realidade material que se relaciona com o que lhe é exterior, com o que existe independentemente da linguagem. Como realidade material – organização de sons, palavras, frases – a linguagem é relativamente autônoma; como expressão de emoções, idéias, propósitos, no entanto, ela é orientada pela visão de mundo, pelas injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante (PETTER, 2002, p.11).
Esta dissertação, ainda em estado de projeto, começou a se construir a partir das idéias de
Paulo Freire e John Dewey que pregaram uma educação voltada para o mundo, para a vida, e
tiraram a escola da condição de micro-célula social para integrá-la à sociedade como um todo.
Encontrou respaldo no discurso de Muniz Sodré que descreve a televisão não como meio de
comunicação – já que, para tal, seria necessário a realização do diálogo não existente nesta mídia,
que opera através da transmissão unilateral –, mas como uma forma de organização social que
delimita claramente os papéis de cada indivíduo na sociedade através da apresentação de
esteriótipos sociais: o negro subempregado, o habitante kitsh da periferia, o homossexual afetado, o branco bem sucedido, a jovem bela e sensual, o gordo engraçado, e assim por diante.
caracterizada pela mediação tecnologizada (o medium) entre falante e ouvinte (SODRÉ, 1984, p. 25, grifos do autor).
A delimitação precisa do nosso objeto de pesquisa só pôde se concretizar a partir dos
conceitos extraídos da Sociolinguísta, ramo da Lingüística, que deram os verdadeiros subsídios para
o começo da discussão sobre os conteúdos apresentados pelos atuais programas de televisão que se
propõem a ensinar a língua portuguesa. A Sociolingüística, que se desenvolveu a partir dos estudos
do norte-americano William Labov, nos Estados Unidos dos anos 1960, procura relacionar língua e
sociedade e propõe um campo de estudo onde os fatores sociais são levados em consideração para a
investigação sobre as diferentes maneiras de se falar o mesmo idioma – as chamadas variações
linguísticas. Labov criou um novo paradigma ao estudar a língua não como elemento isolado, mas
em constante transformação, segundo o ambiente social, observando o que acontece em diferentes
sociedades. Ao assumir o papel da língua como um mecanismo de expressão que revela quem
somos e de onde viemos, sem qualquer possível preconceito em relação ao fato, a Sociolingüística
repudia as noções de “fala errada” e de “fala culta” para encarar todas as variações linguísticas
como manifestações autênticas dos diversos atores sociais.
[...] para Labov, o estudo da estrutura lingüística deve se dar em termos do exame dos fatos lingüísticos, conforme manifestados no dia-a-dia das pessoas, no contexto social da comunidade de fala (entendida como sendo um grupo que compartilha um mesmo sistema normativo de valores na interpretação dos fenômenos lingüísticos). Isto não significa, contudo, que Labov tenha pretendido desenvolver uma espécie de teoria da fala, ou do uso. Para Labov, o estudo dos fenômenos da fala valem por aquilo que eles podem nos dizer sobre a estrutura lingüística. E é exatamente neste contexto que Labov procura, através do estudo da variação lingüística, esclarecer-nos sobre a questão da mudança lingüística, usando o presente para explicar o passado (OLIVEIRA, 1999, p.3).
Baseado nestes conceitos, esta dissertação também levanta questões a respeito da pretensão
dos programas de televisão em se apresentar como “nova” a metodologia que empregam para
relações relativas ao meio social de cada falante aí envolvido, nem tão pouco dos aspectos relativos
ao modo de se falar – fato que não se verificou na análise crítica dos referidos programas de
televisão –, já que este é um dos principais usos correntes de um idioma. Assim, os fundamentos da
Lingüística, palavra que surgiu no século XIX, tornam-se fundamentais para este trabalho.
[...] a palavra lingüística é atestada pela primeira vez em 1833, mas o termo lingüista já se encontra em 1816 em Raynouard, in. Choix dns poésins dns troubadours., tomo I, p. 1 –, a ciência da linguagem avança a um ritmo acelerado, e ilumina sob ângulos sempre novos essa prática que sabemos exercer sem a conhecermos (KRISTEVA, 1999, p. 14).
A Lingüística passou a ser reconhecida como estudo científico após a publicação, em 1916,
do livro Cours dn Linguistiqun Généraln (Curso de Lingüística Geral), baseado nos trabalhos, realizadas entre 1897 e 1911, de Ferdinand de Saussure, professor da Universidade de Genebra, a
partir das anotações feitas por dois de seus alunos. Antes dos estudos de Saussure, os lingüistas se
ocupavam em definir o caráter histórico da língua e a analisar como os diferentes idiomas se
formavam, em um método diacrônico de análise. O avanço do professor suíço foi propor que os
estudos sobre a língua deveriam acontecer em um determinado momento histórico. Como diz Petter
“a descrição lingüística observaria ‘a relação entre coisas coexistentes’, que constituiriam o sistema
lingüístico” (2000, p. 18). O livro Curso de Lingüística geral foi publicado depois da morte de
Saussure, que teria destruído os textos originais de seu trabalho pioneiro, (PETTER, 2002, p. 13 e
BEAUGRANDE, 2000) e deu à Lingüística status de ciência, já que no passado, ainda segundo Petter, esta área de conhecimento “submetia-se às exigências de outros estudos, como a lógica, a
filosofia, a retórica, a história, ou a crítica literária” (2002, p. 13).
A Lingüística como ciência moderna opera num sistema de classificação como instrumento
para o estudo das diversas línguas, diferente do que tenta fazer a nossa Gramática, base para o
ensino tradicional do português em sala de aula ou em programas de televisão que têm o mesmo
sem um método formal, e que precisa, no senso comum tradicional, ser sistematizada através de
regras que serão transmitidas às futuras gerações. Acontece que, e este é um dos temas centrais deste
trabalho, a Gramática não leva em consideração o fato de que uma mesma língua existe para ser
falada por indivíduos que se encontram em diferentes situações dentro da sociedade a qual
pertencem. Estes indivíduos nasceram e vivem em diferentes realidades sociais, é, pois, razoável
reconhecer que não podem falar a língua da mesma maneira. No sentido contrário a este raciocínio,
a Gramática propõe que todos devam falar de uma forma padrão, única, aquela estipulada pela
classe dominante, calcada em regras que mais têm a ver com a escrita do que com a fala, o que cria
uma inversão de valores, já que foi falando que o ser humano desenvolveu o sistema lingüístico.
[...] o lingüista deve estar apto a falar "sobre" uma ou mais línguas, conhecer seus princípios de funcionamento, suas semelhanças e diferenças. A Lingüística não se compara ao estudo tradicional da gramática; ao observar a língua em uso o lingüista procura descrever e explicar os fatos: os padrões sonoros, gramaticais e lexicais que estão sendo usados, sem avaliar aquele uso em termos de um outro padrão: moral, estético ou crítico (PETTER, 2002, p.17).
Assim, a proposta que a Lingüística nos traz é a de analisar a língua, levando-se em
consideração a forma como ela é falada na sociedade, postura coerente com a diversidade social que
se encontra em todo e qualquer país, principalmente naqueles de grandes dimensões – sustentamos
que o fato poderia se estender ao ensino do idioma tanto em sala de aula, como na televisão. A
questão não é abandonar a língua padrão ou desprezar o seu valor, mas sim entender que, para se
aprender um idioma, é preciso que haja uma identificação, o que, geralmente não acontece quando
se impõe em sala de aula, ou em programas de televisão, uma forma de falar que pouco ou nada tem
a ver com a realidade do falante.
Se pensarmos que o Brasil tem cerca de 186,4 milhões (IBGE, 2006), espalhados por mais
de 8 milhões e 500 mil quilômetros quadrados em 26 estados e um Distrito Federal, por 5 regiões,
falassem o português de uma única maneira. Um país com essas dimensões e com uma história de
colonização que envolveu misturas étnicas e culturais só poderia apresentar uma diversidade
lingüística como é vista na vida cotidiana. E é para a vida cotidiana que o português precisa ser
ensinado. Ao se autodenominar inovadores deste processo, os programas de televisão deveriam
assumir a proposta iniciada pela Lingüística como seu método principal.
O lingüista procura descobrir como a linguagem funciona por meio do estudo de línguas específicas, considerando a língua um objeto de estudo que deve ser examinado empiricamente, dentro de seus próprios termos, como a Física, a Biologia etc. A metodologia de análise lingüística focaliza, principalmente, a fala das comunidades e, em segunda instância, a escrita (PETTER, 2002, p.17).
A “fala das comunidades” é a fala do aluno que chega ainda criança na sala para as aulas de
português do Ensino Fundamental e, geralmente, se depara com uma estrutura de língua que
desconhece, que lhe é estranha, que não coincide com aquela que aprendeu em casa, que usa com os
amigos, aquela que se acostumou a ouvir e a falar – fato que se estenderá até o nível superior. O
respeito do professor por esta realidade poderia ser o ponto de partida para a adoção de uma postura
que transformasse o ensino da língua, seja na escola, seja na televisão, numa possibilidade efetiva
do desenvolvimento das possibilidades linguísticas dos alunos. Portanto, acredita-se que o caminho
para uma possível renovação das aulas de português passe pelas noções da Lingüística e, mais
especificamente, da Sociolingüística. Negar esta acepção é concordar com o ensino gramaticista que
se tornou tradição em nossas escolas e que reduz a língua a um punhado de normas que,
deficientemente, tentam codificar o idioma com a intenção de regulamentar a fala através de regras
que servem para a escrita. Entende-se que as duas formas de expressão, falada e escrita, não podem
ser confundidas, dadas as circunstâncias em que cada uma delas é empregada e que o estudo que os
alunos fazem de uma língua deva ir muito além da preocupação normativa que a Gramática tenta
[...] é necessário conhecer tanto a linguagem vocal como a escrita, tanto a língua como o discurso, a sistemática interna dos enunciados e a sua relação com os sujeitos da comunicação, a lógica das mudanças históricas e a ligação entre o nível lingüístico e o real. Aproximamo-nos assim das leis especificas do trabalho simbólico. [...] No exterior da lingüística, o estudo psicanalítico da relação do sujeito com o seu discurso indicou que não se pode tratar da linguagem – por mais sistemática que a língua possa parecer –sem se ter em conta o seu sujeito. A língua – sistema formal – não existe fora da fala, a língua é antes de tudo o mais discurso (KRISTEVA, 19999, p. 23 e 374).
Preocupados com os aspectos da fala, e não apenas os da escrita, o trabalho de ensino de
uma língua passa, necessariamente, pela aquisição de conhecimentos pelo professor e produtores
que realizam os programas de televisão que envolvam uma questão maior que é a da nxprnssão e comunicação através de um idioma. As regras gramaticais e os estilos literários são meras conseqüências de uma estrutura criada pelo homem para falar: uma necessidade primeira de
comunicação.
1.3 – Ensino da língua para o mundo
Espera-se demonstrar nesta dissertação que o ensino da língua portuguesa não deve ser
reduzido em termos de importância à escrita, mas que também a fala deve ser valorizada, no sentido
de dar ao aluno uma consciência a respeito do próprio idioma, um idioma que, em última análise,
servirá para que ele se relacione com o mundo que o cerca.
Os teóricos da Educação Paulo Freire e John Dewey basearam seus estudos na idéia de que
a escola deveria ser uma porta para o mundo e o lugar onde o indivíduo deveria buscar as
ferramentas para encontrar o seu lugar na sociedade com possibilidades para desenvolver todo o seu
potencial humano. Esta visão não poderia ser mais pertinente quando falamos no ensino da língua
portuguesa e na abordagem a que nos propomos com esta dissertação.
O checo Jan Amos Comenius (1592-1670), precursor da pedagogia, já pregava uma
educação universal para homens e mulheres, pobres e ricos, normais ou deficientes, uma escola
Entendia que o processo de ensino era indispensável para a humanização do ser humano e a
importância do processo de aprendizagem das línguas.
A língua é ensinada a partir das experiências da criança e não de textos literários e regras gramaticais. Tudo segundo criteriosa graduação, indo do mais fácil ao mais difícil. Como se vê, Comenius propõe o ensino da língua pela própria língua: a idéia antes da palavra, o exemplo antes da regra (COVELLO, 1991, p. 45).
Portanto, o teórico repelia o ensino gramaticista do idioma e, no texto didático Porta abnrta das línguas, de 1631, Comenius profere:
“Qualquer que seja a língua que a juventude aprender, ela deve servir para que os jovens possam prontamente reconhecer o que ouvem e o que lêem... e, além disso, conduzi-los a aprender a denominar tudo o que vêem, tudo o que executam, tudo o que sentem a fim de aguçar simultaneamente tanto a razão como a língua” (COVELLO, 1991, p. 42 e 45).
O trabalho do teórico da educação foi deixado no esquecimento por 200 anos, sob o manto
da tendência racionalista da segunda metade do século XVII e, ao que parece, ainda não é
completamente percebido nos dias de hoje, inclusive pelos programas de televisão que tentam
ensinar a língua portuguesa, operando através das ditas “novas tecnologias”, não tão novas assim.
Na verdade, a “nova educação” de Paulo Freire e John Dewey também há muito deixou de ser nova
nas amareladas páginas de seus livros. Continuam novas, sim, na maioria das escolas e televisões
educativas brasileiras. Em seu artigo My pndagogic crnnd (Minha crença pedagógica), publicado em janeiro de 1897 no Thn School Journal, John Dewey (xxxx – xxxx) afirmava acreditar que “toda educação operara como uma forma de integrar o indivíduo na consciência social de uma raça. Um
processo que começa inconscientemente, praticamente no nascimento, e continuamente molda as
potencialidades individuais, completando a consciência, criando hábitos, formando idéias,
relacionam ensino e sociedade e mostram que a escola não faz sentido quando não está aberta para o
ambiente que a cerca.
Da mesma maneira, Paulo Freire (xxxx-xxxx) foi um humanista, sempre em defesa de uma
educação libertadora. Nas primeiras páginas de seu Pedagogia do oprimido escreve:
Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem, a si mesmos, como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos", e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura (FREIRE, 1975).
As linhas de pensamento sobre educação que escolhemos como referencial
teórico-metodológico para nossa análise crítica de um programa que se propõe a ensinar através da
televisão – no nosso caso, a língua portuguesa – nos levam a afirmar que o ensino não faz sentido se
não estiver inserido na realidade social. Como, então, no universo lingüístico brasileiro ditado pelo
tamanho e pela diversidade cultural de nosso país se poderia esperar que as pessoas para falar
“corretamente” deveriam adotar sem exceção a norma padrão do idioma que é justamente aquela
restrita à sala de aula e que tem pouco a ver com a realidade das crianças, jovens e pessoas em
geral? Se aceitarmos que a educação é para o mundo, como limitar as expressões lingüística às
normas gramaticais enquanto elas vivem livres pelas diferentes regiões do nosso país?
Um ensino de português que se baseie exclusivamente na variedade padrão da língua exclui
qualquer outro tipo de manifestação lingüística classificando-a como própria de “ignorantes”. No
caso do português, é extremamente indesejável que uma pessoa troque consoantes como o L pelo R
em palavras como chiclete (chicrete), placa (praca), bloco (broco), planta (pranta). No entanto, historicamente, as variações sempre aconteceram e, por vezes, acabaram por se transformar em
normas padrão de línguas oficiais, como foi o caso dos idiomas latinos em relação ao latim original,
[...] estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de "atraso mental" dos falantes "ignorantes" do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão (BAGNO, 1999, p. 40).
Marcos Bagno exibe um quadro onde palavras em português padrão cometem o mesmo
“erro” em relação aos idiomas nos quais nossa língua se baseou.
PORTUGUÊS PADRÃO ETIMOLOGIA ORIGEM
branco blank germânico
brando blandu latim
cravo clavu latim
dobro duplu latim
escravo sclavu latim
fraco flaccu latim
frouxo fluxu latim
grude gluten latim
obrigar obligare latim
praga plaga latim
prata plata. provençal
prega plica latim
(BAGNO, 1999, p. 40)
Deveríamos, então, considerar o hoje português padrão como uma variedade “não culta”
dos idiomas originários? A Sociolingüística dá o nome de “preconceito lingüístico” à inclusão na
categoria de “ignorantes” pessoas que trocam o L pelo R, por exemplo, no português – o conceito é
uma das principais referências teóricas da nossa dissertação. Poderíamos, então, pensar que os
falantes de latim no passado teriam a prerrogativa de classificar como ignorantes aqueles que
começaram a se exprimir em variedades do latim que formariam os atuais idiomas latinos. O que se
apresenta de fato é que:
O idioma pertence ao povo que o fala, como disse Ferdinand Saussure, “a linguagem é
multiforme e heteróclita; abrangendo vários domínios, simultaneamente física, fisiológica e
psíquica, pertence ainda ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em
nenhuma categoria de fatos humanos porque não sabemos como destacar a sua unidade” (apud Kristeva, 1999, p. 20). Restringir a forma de expressão a uma única estrutura padrão é limitar a
possibilidade de comunicação que, em última análise, seria a função principal de qualquer idioma.
O que acontece é que a maioria das escolas e os programas de televisão educativos, assim como as
políticas de educação, mostram uma clara tendência a perpetuar a idéia da exclusão e a falta de
autonomia.
Essa vontade (consubstanciada nas relações de poder instituídas, quer pela hegemonia, quer pela força) – inspirada nas políticas da educação “esclarecidas”, que afirmam buscar um saber e um fazer comprometidos com a promoção da autonomia – instala-se entre nós, determinando, por sucessivas mediações, desde as relações que estabelecemos na academia às nossas práticas em sala de aula e os conteúdos e programas “ensinados” como meios para um fazer educativo que, embora prescrevam a liberdade, a emancipação e a autonomia, instauram e reforçam, ao contrário, o autoritarismo e a heteronomia sociais (GIORDANO, 2005).
Paulo Freire trabalhou com seu método de alfabetização que, em 40 horas, dava conta de
alfabetizar adultos, fato que assustou as classes dominantes como, em tão pouco tempo, conseguia
despertar pessoas de baixa renda para uma tomada de consciência a respeito da situação ao seu
redor, processo que o educador chamava de conscinntização (Lima, 1981, p. 23). Ainda segundo Lima, Paulo Freire acreditava que “toda prática educacional implica um posicionamento teórico da
parte do educador. Este posicionamento, por sua vez, implica – em algumas ocasiões mais, em
outras menos explicitamente – numa interpretação do homem e do mundo” (1981, p. 60). Daí a
idéia de que um ensino exclusivamente gramaticista da língua não poder dar conta de um universo
de possibilidades da qual as pessoas necessitam estar cientes para realizar suas possibilidades de
Entende-se que a norma padrão da língua tem a sua função importante em determinadas
situações de vida e serve para possibilitar o acesso às diferentes idéias transcritas em livros e outros
impressos, mas esta não é a única que necessitamos desenvolver, pesquisar. Falar, é dar vazão aos
seus sentimentos, é expressar aquilo que vai dentro de cada um da forma que melhor lhe convém, é
desenvolver uma dialética com o mundo que nos cerca. Uma vez que programas que ensinam a
língua portuguesa não dão importância às variações linguísticas, como acontece na sala de aula,
criam um limite na comunicação, e, pior, jogam na vala do preconceito todas as expressões culturais
legítimas que determinam as diferenças locais como se elas não representassem a identidade de um
povo. As palavras de Paulo Freire nos dizem:
A cultura, criada pelos homens através de sua práxis e de seu trabalho, é o universo simbólico e “abrangente” em que eles atuam como seres conscientes. Entretanto, na medida em que os homens, em sua relação dialética com o mundo, o transformam por meio do seu trabalho, são condicionados pelos produtos de sua ação. Assim, ao objetivar o mundo, os homens se objetivam a si mesmos e a cultura surge como a alienação ou estranhamento do próprio ser que a cria. Mas, dialeticamente, a alienação original constitui um momento fundamental do próprio processo de desalienação (LIMA, 1981, p. 83).
Aprisionar os falantns às regras de um idioma ditadas por cartilhas e gramáticas é impor-lhes uma condição que originalmente não é a sua. Devemos sempre nos lembrar da nossa condição
histórica de povo colonizado, a começar pelo idioma que falamos. Herdamos uma língua
estrangeira que se fundiu a tantas outras faladas por índios nativos, por povos vindos de outros
países de todo o tipo de condição social. Estas diferentes realidades encontraram convívio comum e
se mesclaram para formar um idioma que hoje, ainda que o mesmo falado em Portugal, encontra
uma diferenciação da matriz original que nada mais tem a ver com a cultura brasileira.
Podemos concordar que o fato de falar “errado” e “certo” são peças do jogo que a classe
dominante realiza para manter a sua posição de pretensa superioridade. Não pretendemos nos
exclusão social. Uma vez que as pessoas entendessem que a sua forma original de falar é uma
representação de sua verdadeira identidade, da sua história, um emblema de sua cultura, poderiase
criar uma imunização contra a idéia de que a única forma “correta” de se expressar é falando a
língua padrão. Conforme nos ensina Paulo Freire:“herdando a experiência adquirida, criando e
recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se
a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da
História e o da Cultura (Lima, 1981, p. 62).
John Dewey dizia acreditar que:
A única verdadeira educação acontece através do estímulo das potencialidades da criança frente às demandas das situações sociais onde ela se encontra. Através destas demandas ela é estimulada a agir como membro de uma unidade, a emergir de sua estreiteza de ações e sentimentos para conceber-se como um ponto de apoio ao bem-estar do grupo ao qual pertence (Dewey, 2004, tradução nossa).
Se assumimos que os princípios da educação devem se basear no desenvolvimento da
criança, do jovem e do adulto para a sua melhor atuação na sociedade, Dever-se-ia refletir a respeito
do que se espera do ensino da língua portuguesa atualmente praticado no Brasil. Se a maioria das
escola continua amarrada a políticas educacionais que mantêm os paradigmas do passado, que
pregam um ensino baseado em rígidos conteúdos, seriam os programas de televisão, a “nova
tecnologia”, que poderiam assumir o papel de se empenhar em realizar uma real função de prover
aquilo que não se vê na sala de aula. Já dissemos que a política do Canal Futura é de estimular o uso
de seus programas em auxílio ao professor durante suas aulas, para que o Afinando a Língua
concretize tal pretensão seria preciso levantar novas questões sobre o ensino do idioma. Estas
questões estariam relacionadas com a realidade do idioma português falado no Brasil e como o
aluno poderia lidar com elas. Tornar-se, como pensava Dewey, “um ponto de apoio ao bem-estar do
grupo” (Dewey, 2004) pode significar o surgimento de uma consciência a respeito de si próprio e
daqueles que nos rodeiam e esta consciência, passando pela cultura, não pode estar desvinculada do
1.4 – O preconceito lingüístico
Já foi dito que um dos principais referenciais teórico-metodológicos de nossa dissertação diz
respeito ao preconceito, que acontece não apenas no Brasil, sobre o modo de fala de pessoas de
diferentes classes sociais. Estabeleceu-se que a linguagem utilizada pelos diversos membros de
nossa sociedade se relaciona diretamente com o nível de letramento das pessoas. Uma das principais
razões do avanço do preconceito lingüístico num país como o nosso é a qualidade do ensino público
que, no momento em que escrevemos este texto, se encontra em estado de miséria, apesar de 97%
das crianças entre 7 e 14 anos estarem matriculadas no Ensino Fundamental e do número de alunos
que freqüentam o Ensino Médio ter aumentado de 1,1 milhão, em 1971, para 8,7 milhões, em 2002
(último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE), uma expansão de 690% em
três décadas (Almanaque Abril, 2003).
É preciso sempre enfatizar que a proposta desta dissertação não é a de criticar o ensino da
língua padrão, útil em diversas situações em que um indivíduo possa se encontrar, mas sim de
propor possibilidades ao aluno, através de um ensino de qualidade, de ter plena consciência do
idioma que pratica, optando por uma ou outra forma verbal no momento que lhe convier.
O preconceito lingüístico está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada, no curso da história entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão. Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... Também a gramática não é a língua (BAGNO, 1999, grifos do autos).
Uma das referências teórico-metodológias principais que nosso texto pretende seguir é da
variedade lingüística que combate frontalmente a noção de preconceito. O norte-americano William
Labov foi o primeiro a estudar a questão da mudança lingüística nos anos 1960 e 1970 nos Estados
Unidos quando “investigou o efeito de diversos fatores sociais [...] sobre traços do inglês padrão e
extremamente estigmatizada, sofre preconceito em razão de pressões étnicas, escolarização e classe
social” (Mollica nt allis, 2003). Labov instituiu um novo paradigma onde a língua deixava de ter uma concepção estática e passava a se configurar através de uma possibilidade mutante que seguiria
de perto as transformações sociais e as necessidades de cada grupo de falantes. Sua opção foi fugir
dos métodos da Lingüística tradicional e não estudar a fala daqueles que haviam estudado nas
melhores escolas, mas sim procurar conhecer o inglês falado nas ruas pela classe trabalhadora, que,
na verdade, forma a esmagadora maioria de qualquer país.
Foi uma visão ampla do estudo do idioma, e que rumos o seu uso pode tomar, que o
norte-americano buscou em suas pesquisas. O nome Sociolingüística já relaciona língua com sociedade e
o texto desta monografia se orienta por esta estrada sem conseguir admitir que se possa separar o
idioma do povo que a fale. Ao seguir este referencial teórico-metodológico, não pretendemos
sugerir que os professores ou programas de televisão que se propõem a ensinar a língua portuguesa
se lancem numa pesquisa de campo para descobrir as variações do português em cada uma das
regiões brasileiras. A idéia é que se reconheça essa variação, mesmo a nível local, nas diferentes
camadas sociais e que, a partir deste reconhecimento, tenha-se uma preocupação sobre os rumos
que tem tomado o ensino da língua no Brasil.
[...] a verdade é que no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, não pela grande extensão territorial do país – que gera as diferenças regionais, bastante conhecidas e também vítimas, algumas delas, de muito preconceito –, mas principalmente por causa da trágica injustiça social [...] (BAGNO, 1999, p. 16, grifos do autor).
A situação da educação brasileira, descrita no início deste capítulo, exige uma tomada de
postura por parte dos envolvidos no sentido que possa permitir um maior desenvolvimento dos
diferentes grupos sociais, independente da condição que estes se encontrem. Imaginar o fim do
preconceito apenas tomando diferentes posturas em relação ao idioma seria, mais do que uma
acesso à norma culta da língua. Ainda que o ensino a distância, que também pode ser feito através
da televisão, chegue a estes lugares, podemos nos perguntar como ele será compreendido,
lingüisticamente, pelos receptores, já que os conteúdos e a produção deste material,
invariavelmente, é realizada em grandes centros pela intnllignntsia brasileira ligada ao ensino e à comunicação. O fato é que, independente dos esforços governamentais ou de qualquer tipo de
instituição, como o Canal Futura, criar alternativas ao ensino convencional – no nosso caso, o da
língua – deve passar por uma avaliação das condições populares e dos sentidos que certas camadas
da população poderão apreender das idéias e informações apresentadas, já que a variação
lingüística, como temos insistido, é uma realidade que não se pode negar. Impor um vocabulário
próprio do sul do país em programas de televisão, entendemos, é começar já aí a excluir as outras
possibilidades da fala, denotando o preconceito.
No livro Preconceito lingüístico, Marcos Bagno enumera uma série de mitos criados no
Brasil a respeito da língua portuguesa e que são cultuados até mesmo por importantes intelectuais
brasileiros. O autor mostra a incoerência de idéias que persistem através do tempo como:
Mito 1: “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente”.
Mito 2: “Brasileiro não sabe português. Só em Portugal se fala bem português”. Mito 3: “Português é muito difícil”.
Mito 4: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”.
Mito 5: “O lugar onde melhor se fala Português no Brasil é o Maranhão.” Mito 6: “O certo é falar assim porque se escreve assim”.
Mito 7: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”.
Mito 8: “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”. (BAGNO, 1999, p. 15, 20, 35, 40, 46, 52, 62 e 69)
A cada um dos mitos estabelecidos podemos estabelecer correlações com o preconceito. Já
mostramos como seria impossível num país do tamanho do Brasil haver uma real unidade
lingüística (mito 1), apesar de nos compreendermos, as diversas formas de falar apresentam uma
distribuição de renda, ficando atrás apenas de Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia
(ALMANAQUE, 2003).
O mito 2 traz em sua essência duas idéias: elitismo e sentimento de inferioridade em relação
a um país mais antigo e mais desenvolvido. A proposta de que no Brasil Dever-se-ia continuar
falando o idioma tal qual é praticado em Portugal seria o mesmo que aceitar a negação de nossa
cultura e das diversas influências que nosso povo sofreu durante sua história, em poucas palavras,
seria negar a nossa identidade. Por isso, Marcos Bagno é taxativo:
O brasileiro sabe português, sim. O que acontece é que nosso português é diferente do português falado em Portugal. Quando dizemos que no Brasil se fala português, usamos esse nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica, justamente a de termos sido uma colônia de Portugal. Do ponto de vista lingüístico, porém, a língua falada no Brasil já tem uma gramática – isto é, tem regras de funcionamento – que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Por isso os lingüistas (os cientistas da linguagem) preferem usar o termo português brasileiro, por ser mais claro e marcar bem essa diferença (BAGNO, 1999, p. 23 e 24, grifos do autor).
O terceiro mito se refere à forma de como se ensina português no Brasil. Já que o idioma
que falamos tem uma coerência própria e já incorporou modificações que o diferem muito da língua
original, o ensino da língua através das regras gramaticais – instituídas em Portugal – nos parece
estranho, já que não significam muito na prática. A obrigação de decorar regras, que pouco serão
lembradas e utilizadas durante nossa vida, torna o aprendizado uma tarefa enfadonha e pouco
interessante. Além disso, podemos pensar na incoerência de se ensinar gramática para uma criança
que mal domina a língua que fala, já que o estudo minucioso de um idioma, ou de qualquer outro
objeto, só tem sentido quando já o dominamos e procuramos entendê-lo a fundo, com mais
precisão. São estas situações que fazem o português ter a definição de uma língua difícil quando, na
verdade, ela é assimilada por nós perfeitamente desde os primeiros anos de vida.
naturalidade as regras básicas de funcionamento dela. Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4 anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidades no uso dessas regras, coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar (BAGNO, .1999, p. 35).
Quando é instituído que as pessoas, para falar bem um idioma, precisam seguir
necessariamente a norma padrão e aqueles que não tiveram acesso à escola falam “errado” (mito 4),
caímos na concepção de que a diversidade de culturas é um fato impossível de acontecer. Insistimos
na idéia de que a língua padrão – e não apenas no Brasil – é apenas uma das maneiras que as
pessoas têm de se expressar em um idioma. É a falta de possibilidade de freqüentar uma escola de
qualidade que faz com que os pobres se restrinjam à sua maneira de falar, passada de geração a
geração, sem que possam evoluir na sua linguagem e, por conseqüência, na forma de se expressar.
Estes entendem que existe uma forma “culta” da língua, mas que esta maneira de falar é exclusiva
da classe dominante, ou daqueles que puderam freqüentar boas escolas pagas – não para eles.
Sentindo-se “inferiores” no seu falar, assumem a qualidade de dominados que sempre estará
presente em suas vidas numa reafirmação dos mecanismos de controle social. As classes
dominantes que detêm o controle dos mnios dn comunicação se valem destes para reafirmar estes conceitos de inferioridade que estão muito longe da realidade e que servem para organizar a
sociedade conforme seus interesses. Os conceitos acabam como marcas de preconceito contra os
diferentes tipos sociais.
O mito 5 determina que o Maranhão é o lugar onde melhor se fala o português, quando a
verdade nos mostra que esta idéia partiu do fato de que, no estado nordestino, ainda se fala o
pronome tu, seguido da conjugação na segunda pessoa (cantas, por exemplo), forma que se aproxima do português falado em Portugal. O mito mostra mais uma vez a tendência brasileira de
uma sociedade com sentimento de inferioridade e colonizada.
No mito 6, prega-se que deve-se falar como se escreve, não poderia haver proposta mais
incoerente, já que fala e escrita são duas formas bem distintas de expressão e que as primeiras
manifestações linguísticas foram em forma falada. Por questões históricas, foi necessária a
codificação dos idiomas e surgiram as gramáticas que, é preciso realçar, não conseguem dar conta
de criar regras precisas para o idioma falado, tal é o número de exceções às regras que existem
nestes compêndios.
Inicialmente, foram razões religiosas que levaram os hindus a estudar sua língua, para que os textos sagrados reunidos no Veda não sofressem modificações no momento de ser proferidos. Mais tarde os gramáticos hindus, entre os quais Panini (século IV a.C.), dedicaram-se a descrever minuciosamente sua língua, produzindo modelos de análise que foram descobertos pelo Ocidente no final do século XVIII (PETTER, 2002, p. 12).
A Grammairn Généraln nt Raisonnén dn Port Royal, ou Gramática de Port Royal, de 1660, concebida na França e que serviu de modelo para grande número de gramáticas do século XVII,
começa com a seguinte declaração: “A gramática é a arte de falar” (Kristeva, 1999, p. 188), numa
proposição completamente inversa ao mito de se espelhar a fala na escrita. A escrita é, isso sim, uma
representação gráfica (com limitações) da fala.
música: cada instrumentista vai interpretá-la de um modo todo seu, particular! (BAGNO, 1999, P. 52 E 53)
Ainda podemos argumentar que fala e escrita são duas formas distintas de comunicação,
cada uma com sua própria idiossincrasia, por isso, nada soaria mais falso ou distante da realidade
que uma pessoa procurasse, a todo o momento, falar da maneira como se escreve.
O que me preocupa profundamente é a maneira de se ensinar a língua materna, a obsessão gramaticalista, a distorcida visão de que ensinar uma língua seja ensinar a escrever “certo”, o esquecimento a que se relega a prática da língua, e, mais que tudo: a postura opressora e repressiva, alienada e alienante desse ensino, como em geral de todo o nosso ensino em qualquer nível e disciplina [grifos do autor] (LUFT, 1993, p. 12).
É preciso, ainda, ressaltar um trecho dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental da língua portuguesa.
[...] ninguém escreve como fala, ainda que em certas circunstâncias se possa falar um texto previamente escrito (é o que ocorre, por exemplo, no caso de uma conferência, de um discurso formal, dos telejornais) ou mesmo falar tendo por referência padrões próprios da escrita [...]. No dia-a-dia, contudo, a organização da fala, incluindo a escolha de palavras e a organização sintática do discurso, segue padrões significativamente diferentes daqueles que se usam na produção de textos escritos (BRASIL, 2001, p. 30).
O mito 7 insiste na idéia de um ensino gramaticista do idioma: sem as regras gramaticais,
não há quem fale ou escreva bem qualquer idioma, “se fosse assim, todos os gramáticos seriam
grandes escritores (o que está longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especialistas em
gramática” (BAGNO, 1999, p. 62). No conto O gigolô das palavras (VERÍSSIMO, 2006), Luís Fernando Veríssimo escreve: “vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu
ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria”. O gaúcho Celso Pedro Luft,
professor de língua portuguesa e autor de diversas gramáticas e manuais de português, defende
ou na televisão, seja um efetivo auxílio na busca do aluno em aprimorar o idioma que originalmente
lhe pertence e que deve fazer uso da maneira mais racional e produtiva possível.
A boa comunicação verbal nada tem a ver com a memorização de regras de linguagem nem com a disciplina escolar que trata dessas regras, e que geralmente, em nossas escolas, toma o lugar do que deveriam ser as aulas de Português: leitura, comentário, análise e interpretação de bons textos, e tentativa constante de produzir, pessoalmente, textos bons – enfim, vivência criativa com o idioma (LUFT, 1993, p. 19).
Enfim, o último mito (“o domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”) nos
mostra uma visão reducionista dos verdadeiros problemas sociais do Brasil. Falar e escrever bem
não é, e nunca foi, prerrogativa de sucesso financeiro e pessoal. Os novos ricos podem ser pessoas
que não tiveram acesso à uma escola de qualidade, da mesma forma, os que melhor falam o idioma
não são, necessariamente, bem sucedidos.
A conclusão sobre os mitos apresentados é que eles revelam falsas impressões a respeito da
língua portuguesa, o que vem reforçar a idéia de que a maioria dos brasileiros têm pouca ou
nenhuma noção das questões que envolvem o próprio idioma. Podemos indagar como a escola e os
programas de televisão que ensinam o idioma encaram a questão e se esperam conseguir resultados
significativos em suas tarefas sem uma visão mais ampla da língua. Fica aqui uma suspeita de
acomodação naquilo que sempre vem sendo feito a respeito do ensino da língua: os professores
fingem que ensinam, sempre reclamando das incapacidades dos alunos, enquanto estes fazem o que
podem para dar conta das exigências em sala de aula. Enquanto isso, um ensino honesto e coerente
prevê: