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A realidade "ora-psíquica-ora-material" em Freud.

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Academic year: 2017

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RESUMO:Discute-se a relação entre as noções freudianas de realida-de m aterial e realidade psíquica, procu ran do respon der se essas du as noções podem ser com preendidas a partir de um a polarização. Com esse objetivo, foram analisados textos de Freud em que tal discus-são é privilegiada. Conclui-se que a m elhor m aneira de conceber essa relação não é pela via de um a m era polarização ou oposição, e que realidade m aterial e psíquica devem ser vistas com o noções ao m esm o tem po equivalentes e distintas.

Pa la vra s - c h a ve : realidade m aterial, realidade psíqu ica,

polariza-ção, psicanálise.

ABSTRACT: Th e “ n ow -psych ical-n ow -m ater ial” reality in Freu d.

Th is paper discu sses th e relation sh ip betw een th e Freu dian n o-tions of m aterial reality and psychical reality, attem pting to answer if these tw o notions can be understood by m eans of a polarization. In order to do that, Freudian texts in w hich such a discussion is favored have been analyzed. It has been concluded that the best w ay of con ceivin g th is relation sh ip is n ot by m ean s of a m ere polarization or opposition , an d th at th e m aterial an d psych ical reality should be seen as notions w hich are at the sam e tim e equiva-lent and distinct.

Ke y w o rds : m aterial reality, psychical reality, polarization, psycho-analysis.

PARA INTRODUZIR

“Faz diferença se o que o paciente m e relata aconteceu de fato ou não?” A partir da psicanálise, não é difícil chegar à resposta m ais óbvia a esta pergunta — algo com o “Não, um a Doutoranda em

Psicologia ( UnB) . Psicóloga.

Es t e la Rib e iro Ve rs ia n i

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vez que no inconsciente a diferença entre realidade e fantasia é ignorada”. Tal resposta, entretanto, parece trazer em butida um a desconsideração pela diferen-ciação entre duas realidades que de fato são distintas, nos perm itindo suspeitar que a pergunta acim a, aparentem ente sim plista, talvez m ereça um pouco m ais de atenção. E é justam ente dessa suspeita que partirem os, procurando pensar a presença, na análise, tanto da realidade psíquica com o da realidade m aterial, assim com o a relação entre essas duas noções freudianas.

A m aneira com o Freud aborda os conceitos de realidade m aterial e realida-de psíquica sugere um constante ir-e-vir realida-de sua parte — realida-de um a posição em que enfatiza a im portância da realidade psíquica e das fantasias na constituição da história do analisando para um a posição em que a realidade m aterial apare-ce em prim eiro plano. Em vez de atribuir essa aparente oscilação freudiana a um sim ples caso de indecisão de sua parte, podem os partir dela justam ente para discutir a relação entre realidade m aterial e psíquica, procurando com pre-ender se a m elhor m aneira de concebê-la é de fato pela via de um a m era pola-rização ou oposição entre as duas realidades.

Levando isso em conta, o objetivo a seguir será o de colocar em discussão essa ( não) polarização, considerando tanto a necessidade de Freud de introdu-zir o conceito de realidade psíquica e afirm ar a im portância das fantasias na constituição das neuroses com o sua aparente relutância, em alguns m om entos, em abandonar a im portância da influência da realidade m aterial. Com isso, estarem os nos perguntando sobre os ganhos advindos, para a psicanálise, da introdução da noção de realidade psíquica, ou seja, pensando de que form a essa noção contribuiu para a com preensão da realidade no contexto da psicanálise. Mais do que procurar um a resposta conclusiva para o fato de Freud aparen-tem ente ter se negado a abrir m ão da realidade m aterial em m om entos especí-ficos de sua teorização e prática clínica, o propósito do presente trabalho é antes problem atizar a relação entre realidade m aterial e realidade psíquica, lançando a questão de se esses dois conceitos devem ser pensados com o exclu-sivam ente opostos um em relação ao outro.

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A REALIDADE PSÍQUICA EM FREUD

O caso do Hom em dos Lobos é particularm ente representativo da discussão a respeito de um a certa oscilação de Freud entre a im portância das fantasias e a da realidade m aterial na constituição das neuroses. Nesse caso, fica claro seu esforço em estabelecer a realidade m aterial2 da cena prim ária de seu paciente, anos depois de ter afirm ado que as fantasias são suficientes para constituir sintom as neuróticos. Antes de discutir essas questões no caso do Hom em dos Lobos, entretanto, serão feitas algum as referências à noção de realidade psíqui-ca em Freud antes de 1914, ano em que escreveu o psíqui-caso do Hom em dos Lobos, publicado em 1918.

Na tão citada carta a Fliess, de 21 de setem bro de 1897, Freud expressa pela prim eira vez um a descrença em relação à sua teoria sobre a etiologia traum áti-ca das neuroses, que ele havia sustentado nos cinco anos anteriores. Com a célebre frase “não acredito m ais na m inha neurotica [teoria das neuroses]” ( FREUD, 1892-99/ 1966, p. 259) , Freud abre cam inho para a possibilidade do abandono da teoria do traum a, assim com o para o desenvolvim ento da idéia de que a sedução não precisa ter ocorrido de fato para que desem penhe papel funda-m ental na organização libidinal do neurótico.

Apesar de essa carta ter sido escrita em 1897, Freud só explicitou publica-m ente sua publica-m udança de opinião no artigo intitulado “Minha visão sobre o papel desem penhado pela sexualidade na etiologia das neuroses” ( 1906/ 1953) . An-tes disso, Freud havia feito apenas um a breve alusão à questão em seu “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ( 1905/ 1953) . No segundo ensaio desse trabalho, ele se refere ao artigo “A etiologia da histeria”, de 1896, no qual teria superestim ado “a im portância da sedução em com paração com os fatores de constituição sexual e de desenvolvim ento” ( FREUD, 1905/ 1953, p. 190) . Conti-nua dizendo que “obviam ente a sedução não é necessária para despertar a vida sexual de um a criança; isso pode acontecer espontaneam ente a partir de causas internas” ( Idem , p. 190-1) .

No artigo de 1906, Freud se propõe a acom panhar o desenvolvim ento de sua teoria a respeito da im portância etiológica do fator sexual nas neuroses, m os-trando a m aneira com o a teoria evoluiu e as m odificações pelas quais passou desde os prim órdios da psicanálise. E a prim eira m odificação por ele citada diz

2Neste trabalho, o term o

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respeito justam ente ao abandono da teoria do traum a e à im portância das fanta-sias n a con stitu ição de sin tom as n eu róticos. Segu n do Freu d ( 1 9 0 6 / 1 9 5 3 ) , ele havia anteriorm ente ( em suas publicações prelim inares durante os anos de 1895 e 1896) “ su perestim ado a freqüência de tais acon tecim en tos [ sedu ções] ” ( p. 2 7 4 ) . Con tinu a em segu ida:

“ n aqu ele período, eu era in capaz de distin gu ir com certeza en tre falsificações feitas por histéricos em suas lem branças de infância e traços de acontecim entos

reais. Desde então, aprendi a explicar várias fantasias de sedução com o tentativas

do sujeito de repelir lem branças de sua própria atividade sexual ( m asturbação

infan-til) .” ( FREUD, 1906/ 1953, p. 274)

Freud está dizendo que, ao se lem brar de algo em análise, o paciente poderá tanto estar se recordando de um acontecim ento real com o trazendo à tona um a fantasia — ou “lem brança im aginária” ( FREUD, 1906/ 1953, p. 274) , com o designará a fantasia logo em seguida. Assim , já está de algum a form a apresen-tando um a distinção, senão entre duas realidades, entre dois tipos de lem bran-ça, um a calcada num a experiência real e outra desencadeada pela im aginação. Ao m esm o tem po, aponta para um a equivalência entre os dois tipos de expe-riência, pois tanto a fantasia com o o acontecim ento real podem aparecer em análise sob a m esm a roupagem : a de um a lem brança infantil.

É no “Projeto para um a psicologia científica”, escrito em 1895, que Freud sugere pela prim eira vez um a distinção entre dois tipos de realidade, que ele designa com o “realidade externa” e “realidade do pensam ento” ( FREUD, 1895/ 1966, p. 373) .

A noção de “realidade psíquica” (psy chische Realität) propriam ente dita só irá aparecer na últim a parte do capítulo VII da edição de 1909 de A interpretação dos sonhos. Conform e nos inform a Strachey ( em FREUD, 1900/ 1958, p. 620, nota 1) , a frase em que o term o realidade psíquica aparece pela prim eira vez foi inserida em A interpretação dos sonhos ( 1900/ 1958) em 1909 e m odificada tanto em 1914 ( quan-do Freud opôs realidade psíquica a realidade factual) com o em 1919, quanquan-do tom ou sua form a final:

“Se tom arm os os desejos inconscientes reduzidos à sua form a m ais fundam ental e

verdadeira, terem os que concluir, sem dúvida, que a realidade psíquica é um a form a

de existência particular que não deve ser confundida com a realidade m aterial.

( FREUD, 1900/ 1958, p. 620)

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realidade factual e realidade psíquica. No quarto ensaio do texto, ao se referir ao sentim ento de culpa dos neuróticos, Freud afirm a o seguinte:

“O que está por trás do sentim ento de culpa dos neuróticos são sem pre realidades

psíquicas e n u n ca factuais. O qu e caracteriza os n eu róticos é qu e eles preferem a realidade psíquica à factual e reagem tão seriam ente a pensam entos com o as

pes-soas norm ais reagem a realidades.” ( FREUD, 1913/ 1958, p. 159)

Com essa frase, Freud privilegia, na constituição do sintom a neurótico, a influência da realidade psíquica, sugerindo ser esta m aior do que a exercida pela realidade factual.

No terceiro ensaio, ao discorrer a respeito da “onipotência de pensam entos” dos neuróticos, diz que, nas neuroses, “o que determ ina a form ação de sintom as é a realidade do pensam ento e não da experiência” ( FREUD, 1913/ 1958, p. 86) . Com isso, Freud tam bém está nos falando da im portância da realidade psíquica — retom ando aqui, entretanto, o term o (realidade do pensam ento) usado no “Pro-jeto para um a psicologia científica” ( 1895/ 1966) , com o já foi indicado. É inte-ressante que tais afirm ações apareçam justam ente num texto em que Freud insiste num a realidade m aterial específica, a saber, a do “crim e prim ordial”, conform e será discutido adiante. No m om ento, entretanto, voltarem os a aten-ção ao caso do Hom em dos Lobos.

A REALIDADE DA CENA PRIMÁRIA3

Com o caso do Hom em dos Lobos Freud se propõe a dem onstrar a determ ina-ção infantil da neurose, que não se resum e a um a característica particular desse caso específico, m as que nele se dá de m aneira especialm ente ilustrativa. Com o o próprio Freud diz, o caso “estabelece, sem dúvida nenhum a, tal im portância [ a do fator infantil] ”, além de “se distinguir pela característica de que a neurose na vida adulta foi precedida por um a neurose na tenra infância” ( FREUD, 1918/ 1955, p. 54) . A presença dessa neurose infantil no Hom em dos Lobos é im por-tante porque, segundo Freud, prova que “experiências infantis por si sós estão em posição de produzir um a neurose” ( Idem , ibidem ) .

Ao afirm ar a im portância do fator infantil na determ inação da neurose, Freud deixa claro que tal posição o diferencia daqueles que “procuram as cau-sas das neuroses quase que exclusivam ente nos graves conflitos da vida adulta” ( FREUD, 1918/ 1955, p. 49) e consideram que as cenas infantis do tipo das que são trazidas à luz pela análise de um a neurose “não são reproduções de aconte-cim entos reais” ( Idem , ibidem ) , m as produtos da im aginação do adulto, tendo

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sua origem num a “tendência regressiva” e num a “rejeição das tarefas do pre-sente” ( Idem , ibidem ) .4

Em bora reconheça a existência de um a corrente regressiva da libido no processo de form ação da neurose, Freud destaca a influência decisiva das expe-riências infantis nesse processo. Com o objetivo de dem onstrar essa influência, procura, no caso do Hom em dos Lobos, apontar os eventos infantis que contri-buíram para o desenvolvim ento de sua neurose.

Durante grande parte da análise do Hom em dos Lobos, o que está em ques-tão é a cena prim ária, que teria sido vivenciada por ele com um ano e m eio de idade. O sonho dos lobos, aos quatro anos, é considerado por Freud com o a ressignificação m ais im portante da cena, um a vez que a partir desse sonho o Hom em dos Lobos teria “com preendido o processo [ da cena prim ária] , assim com o seu significado” ( FREUD, 1918/ 1955) .5 Seriam ressignificações com o essa que teriam produzido seqüelas no desenvolvim ento libidinal do paciente. No que diz respeito à realidade da cena prim ária, o próprio Freud levanta algum as dúvidas, questionando se seu paciente teria de fato observado o coito dos pais ou apenas fantasiado a cena. Para essa questão, oferece m ais de um a resposta.

Em 1914, quando Freud redigiu a m aior parte do caso, a hipótese de que a cena teria ocorrido de fato é a única apresentada, o que nos leva a pensar ser essa a sua crença por ocasião do tratam ento. Segundo o relato de Freud, a cena prim ária não chega a ser recordada por seu paciente, que, entretanto, participa de sua construção no processo analítico. Ao final, Freud chega a descrever a cena em seus m ínim os detalhes, com a aceitação do Hom em dos Lobos.

Antes de publicar a exposição e a discussão do caso, entretanto, Freud adi-cionou duas passagens ao trabalho, nas quais oferece duas outras explicações. Na prim eira delas, apresenta a idéia de que o Hom em dos Lobos não precisa ter de fato observado um a relação sexual entre seus pais, m as que pode ter presen-ciado o coito entre anim ais, “que ele depois deslocou para seus pais, com o que inferindo que eles procediam da m esm a m aneira” ( FREUD, 1918/ 1955, p. 57) . Com essa sugestão, o que parece a princípio é que Freud está aqui privile-giando a fantasia, um a vez que abre m ão da realidade m aterial da cena prim á-ria, sugerindo que ela pode ter sido apenas “inferida”. Mais adiante nessa m

es-4Em bora Freud não cite nom es todas as vezes em que se refere nesse texto a seus “ opositores” , deixa claro em nota de rodapé no início de sua introdução que tem em m ente “ as re-interpre-tações deturpadas” ( FREUD, 1918/ 1955, p. 7 , nota 1) de Jung e Adler.

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m a passagem , inclusive, ao se referir à freqüência com que a cena prim ária aparece na clínica sob a form a de um coitus a tergo, afirm a que, nesses casos, não devem os duvidar de que estejam os “lidando apenas com um a fantasia, invaria-velm ente provocada, talvez, por um a observação de coito entre anim ais” ( FREUD, 1918/ 1955, p. 59) .

Fica claro tam bém que Freud relaciona a fantasia da cena prim ária a um a observação m aterial anterior, que serviria com o “cena provocadora” dessa fan-tasia. Nesse sentido, ao m esm o tem po em que m ostra a força de um a fantasia, Freud não deixa de lado a influência da realidade m aterial. Com o cham am a atenção Laplanche e Pontalis ( 1993) , apesar de reconhecer que a cena prim ária pode ter sido fantasiada pelo Hom em dos Lobos, Freud “sustenta com não m e-nor insistência que a percepção, pelo m enos, forneceu indícios, que m ais não seja através de um a copulação de cães...” ( p. 49) .

De qualquer form a, Freud term ina essa prim eira passagem adicional sem nos dar um veredicto final sobre a realidade da cena prim ária, nos rem etendo inclusive a um a de suas conferências introdutórias em que trata do assunto.

Na segunda passagem , Freud afirm a não ser m uito im portante chegar a um a conclusão decisiva em relação à realidade da cena prim ária do Hom em dos Lobos, argum entando em seguida que, de um a m aneira geral, m esm o que a cena prim ária não faça parte da herança ontogenética de seu paciente, ela cer-tam ente faz parte de sua herança filogenética: “Estas cenas de observação da relação sexual dos pais, de sedução na infância e de am eaça de castração são indiscutivelm ente ( ...) um a herança filogenética, m as podem , com a m esm a facilidade, ser adquiridas por m eio da experiência pessoal” ( FREUD, 1918/ 1955, p. 97) . Assim , m esm o que o Hom em dos Lobos não tenha de fato presen-ciado um a relação sexual entre seus pais, ele pode ter “recorrido” a sua herança filogenética para increm entar sua ontogênese. Com o diz Freud, “o que encon-tram os na pré-história das neuroses é que um a criança se apodera dessa expe-riência filogenética onde sua própria expeexpe-riência lhe falta” ( Idem , ibidem ) .

O que parece é que, assim com o acontece com sua prim eira explicação alternativa, Freud não deixa, com essa explicação filogenética, de se apoiar num a realidade m aterial, um a vez que, segundo ele, as fantasias originárias de hoje já foram “acontecim entos reais nos tem pos prim evos da fam ília hum ana” ( FREUD, 1916-17/ 1961, p. 371) . Dessa form a, “crianças em suas fantasias estão sim plesm ente preenchendo as lacunas na verdade individual com a verdade pré-histórica” ( Idem , ibidem ) .

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conceito de realidade na obra freudiana, “por m ais conveniente que pudesse ser a solução de todo o problem a da etiologia das neuroses através das fantasias inconscientes, Freud não parece disposto a abrir m ão da realidade m aterial com o um fator determ inante” ( p. 93) .

Apesar de as duas alternativas oferecidas por Freud levantarem a possibili-dade de a cena prim ária do Hom em dos Lobos ter sido um a fantasia ( individual e/ ou originária) , a im pressão que se tem ao ler o caso é que Freud prefere acreditar na realidade m aterial dessa cena. Concordo com Laplanche e Pontalis ( 1993) , quando com entam que “im pressiona vivam ente a convicção apaixona-da que im pele Freud, com o um detetive que fareja um a boa pista, a estabelecer a realidade da cena, reconstituindo-a em seus m enores detalhes”( p. 46-7) . Esta-ria Freud, portanto, m ais de quinze anos depois, ainda resistindo a deixar de acreditar em sua neurotica?

Especificam ente em relação a esse caso, é possível pensar que, m enos do que um retorno à sua antiga teoria do traum a, o que m ove Freud a procurar estabe-lecer a realidade m aterial da cena prim ária de seu paciente é sua divergência teórica em relação a Jung. Com o se, ao defender a realidade m aterial de um a cena que provocou efeitos decisivos na constituição libidinal do Hom em dos Lobos, ele estivesse dando m ais força à sua argum entação a favor da determ ina-ção infantil da neurose ( e conseqüentem ente à refutaina-ção da concepina-ção junguiana) , que, com o vim os, era um de seus principais objetivos ao publicar o caso.

Mais do que propor um a razão convincente para o fato de Freud ter relutado em abrir m ão da realidade m aterial, entretanto, o objetivo ao m e referir ao caso do Hom em dos Lobos foi justam ente poder chegar a essa questão, apontando assim um aparente “retrocesso” de Freud no que diz respeito à capacidade das fantasias de produzirem sintom as neuróticos.6 Apontar para em seguida pôr em dúvida, pois a discussão desse caso por Freud m ostra m enos um retrocesso do que im pede que a introdução da noção de realidade psíquica seja vista com o levando necessariam ente a um desprezo pela realidade m aterial. Além disso, perm ite conceber essas duas realidades com o m ais próxim as um a da outra do que o abandono da teoria da sedução a princípio deixaria pensar. No contexto do presente trabalho, portanto, a posição que Freud assum e nesse caso é inte-ressante por m e parecer fornecer subsídios para que possam os pensar a relação entre realidade m aterial e realidade psíquica com o um a relação que não seja exclusivam ente de oposição.

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Já estou esboçando aqui um a resposta à questão de com preender ( ou não) realidade m aterial e realidade psíquica enquanto dois pólos opostos. No m o-m ento, entretanto, interroo-m pereo-m os a discussão dessa idéia, que será retoo-m ada adiante, e nos voltarem os para Totem e tabu, com o objetivo de destacar algum as questões que esse trabalho traz em relação à aparente oscilação freudiana entre a prim azia da realidade psíquica e a im portância dada à realidade m aterial de determ inados acontecim entos.

“NO INÍCIO ERA O ATO”7

Em Totem e tabu ( 1913/ 1958) , Freud apresenta um a tentativa de, por m eio da psicanálise, reconstituir a origem da civilização, ou seja, explicar a história da cultura do ponto de vista da psicanálise. A idéia defendida na obra é que a civilização teria sido fundada a partir de um ato, a saber, um assassinato pré-histórico, e que, assim , tanto a organização social em geral com o as restrições m orais e a religião em particular teriam suas raízes em um “ ato crim inoso m em orável” ( FREUD, 1913/ 1958, p. 142) , que é com o Freud se refere a esse crim e im aginado por ele.

É no quarto e últim o ensaio desse extenso trabalho que Freud descreve a fundação da civilização. Para isso, se utiliza de questões relativas ao totem ( já abordadas nos ensaios anteriores) , de algum as teorias antropológicas ( com o a hipótese da refeição totêm ica, inicialm ente descrita por Robertson Sm ith) e da teoria da horda prim itiva form ulada por Darw in. De acordo com Freud, essa horda teria se caracterizado pela presença de um m acho tirânico e dom inador, que conservaria para si todas as fêm eas e expulsaria pela força os m achos m ais fracos, privando-os de satisfação sexual. O seguinte desfecho é então proposto:

“Um dia, os irm ãos que haviam sido expulsos se reuniram , m ataram e devoraram seu pai, pondo fim assim à existência da horda paterna. Unidos, tiveram a coragem

de fazer e conseguiram levar a cabo o que individualm ente lhes teria sido im pos-sível. ( ...) Tratando-se de selvagens canibais, era natural que devorassem sua vítim a além de m atá-la. O pai pr im evo e violen to h avia sido segu ram en te o m odelo invejado e tem ido de cada um dos m em bros da associação fraternal, e, ao

devorá-lo, identificavam -se com ele e se apropriavam de um a parte de sua força. A refeição totêm ica, talvez a prim eira festa da hum anidade, seria então um a repetição com e-m orativa deste ato crie-m inoso e e-m ee-m orável, que constituiu o ponto de partida de tantas coisas — da organização social, das restrições m orais e da religião.” ( FREUD,

1913/ 1958, p. 141-2)

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Com o assassinato do pai sendo tom ado por Freud com o fundador da civili-zação, portanto, fica explícita a sua posição de conceber num ato a origem de um sistem a social.

Em bora esse texto seja um dos prim eiros, conform e já foi apontado, em que a distin ção en tre realidade psíqu ica e a aqu i ch am ada realidade factu al é explicitada, Freud sem pre defendeu a realidade m aterial do “ ato crim inoso m em orável”. Isso apesar de ele próprio ter feito a ressalva, na parte final de seu trabalho, de que apenas a fantasia do crim e teria sido suficiente para “produzir a reação m oral que criou o totem ism o e o tabu” ( Idem , p. 160) e que, dessa m aneira, “evitaríam os a necessidade de derivar a origem de nosso legado cultu-ral — do qual nos sentim os, m erecidam ente, tão orgulhosos — de um crim e horrendo, repulsivo a todos os nossos sentim entos” ( Idem , ibidem ) .

Novam ente, o fato de Freud insistir num a realidade m aterial ao lado da ênfase — no m esm o texto — na im portância da realidade psíquica não m e parece um sim ples caso de indecisão ou de “retrocesso” de sua parte, m as sim um a evidência de que realidade m aterial e psíquica convivem juntas um a com a outra, não se tratando de um a das realidades precisar “dar lugar” à outra. Aliás, o próprio Freud, em um dos últim os parágrafos de Totem e tabu, fornece argum entos que sustentam essa idéia.

Ao se referir aos neuróticos obsessivos “ curvados sobre o peso de um a m oralidade excessiva” ( FREUD, 1913/ 1958, p. 160) , Freud afirm a que não se-ria correto dizer que eles “estão se defendendo apenas contra a realidade psíquica e estão se punindo por im pulsos que foram apenas sentidos” ( Idem , p. 160-1) . Pois, segundo Freud,

“a realidade histórica tam bém tem um a participação no assunto. ( ...) Cada um desses

in divídu os excessivam en te virtu osos passou por u m período m alvado em su a infância — um a fase de perversão que foi o precursor e a condição prévia do

período posterior de m oralidade excessiva.” ( FREUD, 1913/ 1958, p. 161)

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REALIDADE “ORA- PSÍQUICA- ORA- MATERIAL”

Com as afirm ações citadas antes, m e parece que Freud aproxim a a realidade m aterial da realidade psíquica, no sentido de que, no caso dos neuróticos, por exem plo, para falar de realidade psíquica, ele precisou fazer referência à reali-dade m aterial — com o se a realireali-dade psíquica não pudesse ser com preendida por si só. Penso que essa abordagem despolariza de certa form a a questão, perm itindo que concebam os a realidade do neurótico não com o um a realidade psíquica que ofusca totalm ente sua realidade m aterial, m as com o um a realida-de que inclui a psíquica e, ao m esm o tem po, a m aterial.

Lem bro aqui de sugestão feita por Celes ( 1996) de que dizer que o analista oscila entre teoria e clínica não descreve de m aneira adequada o que de fato acontece, na m edida em que “não é o caso de ‘ora um a’, ‘ora outra’, m as algo m ais próxim o de ‘ora um a e a outra tam bém ’ ou ( ...) poderíam os escrever a palavra com posta ‘ora-um a-ora-outra’, com o se nos fosse exigido m udar de posição a cada m om ento” ( p. 88) . Brincando com essa idéia em relação ao analisando, podem os dizer que a realidade que ele traz em suas associações não é “ora realidade m aterial” e “ora realidade psíquica”, m as sim um a realidade “ ora-psíqu ica-ora-m aterial” .

A conferência citada por Freud no caso do Hom em dos Lobos com o um a referência para a discussão a respeito da cena prim ária nos fornece m ais alguns elem entos para pensarm os essa realidade “ora-psíquica-ora-m aterial”. A confe-rência em questão é a XXIII, intitulada “Os cam inhos para a form ação de sinto-m as” ( 1916-17/ 1961) , esinto-m que Freud aborda sua “equação etiológica da neu-rose” ( p. 362) , segundo a qual o que causaria um a neurose seriam tanto expe-riências acidentais ( traum áticas) do adulto com o um a disposição devido à fixação da libido. Essa disposição, por sua vez, se form aria a partir de um a com -binação da constituição sexual do neurótico com suas experiências infantis.

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Freud aqui está defendendo um dom ínio da realidade psíquica na neurose — e assim , a princípio, explicitando um a diferença entre as duas realidades, pois dizer que a realidade psíquica é que é a “decisiva” faz pensar que há um a outra realidade que seria “ m enos decisiva” , a realidade m aterial. Mas, além disso, ele cham a a atenção para o fato de que o procedim ento ideal num a análise, pelo m enos inicialm ente, seria o de não procurar diferenciar fantasia de realidade e, assim , “igualar realidade m aterial e psíquica”. Realidade psíqui-ca e realidade m aterial, então, aparecem com o distintas, m as tam bém com o equivalentes, um a vez que as duas são realidades ou têm valor de realidade.

Assim , do ponto de vista do analisando que, ao associar, nos traz suas expe-riências ( m ateriais e fantasiosas) , um evento que possui realidade m aterial pode ao m esm o tem po possuir realidade psíquica. Ao sugerir isso, estou propondo entender realidade psíquica não ( apenas) com o o oposto de realidade m aterial, m as com o um a noção m ais am pla, que se refere à qualidade daquilo que tem “ relevância psíquica” .

Não im porta portanto se o que é construído ou recordado em análise é realidade m aterial ou fantasia, já que o que é determ inante — no que diz respeito à organização libidinal do analisando — é o que tem “relevância psí-quica”. E um acontecim ento que seja psiquicam ente relevante para o analisan-do possuirá realidade psíquica. Vista dessa m aneira, a realidade psíquica deixa de ser apenas aquilo que não possui realidade m aterial e passa a poder incluí-la, um a vez que um determ inado acontecim ento pode ter realidade m aterial e, ao m esm o tem po, realidade psíquica. Conseqüentem ente, faz sentido dizer que, na neurose, a realidade psíquica é que é a realidade decisiva, sem que isso im plique descartar a realidade m aterial, já que esta pode estar inserida na di-m ensão da realidade psíquica.

Ao aproxim ar dessa form a realidade m aterial e psíquica, não estou queren-do propor um a indistinção entre os queren-dois term os, sugerinqueren-do que em análise tuqueren-do é da ordem da realidade psíquica, não cabendo nenhum tipo de diferenciação entre as form as de realidade. Realidade m aterial e realidade psíquica são equi-valentes no sentido de que am bas possuem um valor de realidade, o que não quer dizer que não sejam tam bém distintas.

No início deste trabalho m e referi ao ganho, para a psicanálise, da introdução do conceito de realidade psíquica. Penso que tal ganho tenha ficado claro na expo-sição feita até aqui: dando ao psíquico valor de realidade, Freud situa as fanta-sias em pé de igualdade com a realidade m aterial, privilegiando, inclusive, em alguns m om entos, a influência delas na determ inação das neuroses.

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apare-ce em análise num m esm o plano, evitando diferenciações, e ignorando, por assim dizer, a influência da realidade m aterial. Um a leitura desse tipo do texto freudiano pode contribuir para que um a im portante dim ensão da clínica se perca, com a realidade psíquica passando a ofuscar a m aterial. E, nas palavras de Coelho Júnior ( 1995b) , em artigo que discute as noções freudianas de realida-de psíquica e m aterial, “Freud jam ais adm itiu a solução subjetivista realida-de que a única realidade existente é aquela que ele denom inou de psíquica” ( p. 5) .

Assim , para evitar que percam os, com essa “solução subjetivista”, a influên-cia da dim ensão da realidade m aterial, é im portante que, além da equivalêninfluên-cia, tenham os em m ente a diferenciação entre os dois tipos de realidade. Dessa form a, num a análise, não está tudo no m esm o plano, um a vez que estão presen-tes elem entos da realidade psíquica e da m aterial.

A QUESTÃO DA (NÃO) POLARIZAÇÃO

Penso que a discussão feita até aqui nos perm ite concluir que realidade m ate-rial e psíquica não podem ser entendidas com o conceitos opostos e excludentes. Com isso estam os indo ao encontro de posição defendida por Celes ( 2000) , que cham a a atenção, em trabalho que aborda o par “realidade e representação”, para a “inconveniência e im propriedade de se pensar as questões psicanalíticas segundo o princípio de oposições de entidades ou de dualidades” ( CELES, 2000, p. 67-8) . Ainda segundo esse autor, a psicanálise nos ensina justam ente que “os opostos, as dualidades e oposições não se excluem ” ( Idem , p. 72) . Assim , reali-dade m aterial e realireali-dade psíquica não se excluem , pois, com o foi m ostrado, as duas dim ensões se relacionam de tal form a que ultrapassam um a sim ples opo-sição e envolvem superposições, coincidências e relações ocasionais de “apoio” ( na m edida em que se pode pensar com Freud que um a fantasia tem sua ori-gem , ou se apóia, num elem ento da realidade m aterial, por exem plo) .

Luís Claudio Figueiredo ( 1999) , em livro que discute a questão do dualism o pulsional em Além do princípio do prazer de Freud, tam bém alerta para o fascínio de pensar tanto as pulsões com o outros conceitos freudianos a partir de um dualis-m o que ele considera sidualis-m plificador, ledualis-m brando que “longe de udualis-m dualisdualis-m o sim ples, ( ...) há em Freud um a notável com plexidade” ( p. 34) . E é justam ente ao encontro dessa com plexidade que penso que a leitura de Freud nos traz, no que diz respeito às noções de realidade m aterial e realidade psíquica. Com o vim os, as elaborações freudianas apontam para um a problem atização da relação entre as duas noções, que ultrapassa um a relação de m era oposição.

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al-ternativos de abordá-la, um a vez que, voltando a Figueiredo ( 1999) , “o que Freud nos exige é o prodígio de conceber relações entre elem entos conceituais que não são nem exclusivam ente opostos nem exclusivam ente aliados, nem exclusivam ente prim eiros e originais nem segundos e derivados uns em relação aos outros” ( p. 44) .

Recebido em 12/ 3/ 2001. Aceito em 30/ 5/ 2001.

BIBLIOGRAFIA

CELES, L. M. “ Contem poraneidade da psicanálise” , in PACHECO FILHO, R. A.; COELHO JUNIOR, N. & ROSA, M. D.( orgs.) Ciência, pesquisa, represen-tação e realidade em psicanálise, São Paulo, Casa do Psicólogo/ Educ, 2000.

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COELHO JÚNIOR, N. “ Realidade m ater ial, realidade psíquica, realidade clínica” , Boletim de N ovidades Pulsional, 73, São Paulo, Livraria Pulsional, m aio 1995.

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1999.

FREUD, S. The Standard Edition of the Complete Psychological W orks of Sigmund Freud, Londres, The Hogarth Press, 1966. ( A tradução das citações de Freud utilizadas neste trabalho foi feita pela autora.)

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VERSIANI, E. R. “ Fantasia na análise” , Boletim de N ovidades Pulsional, 73, São Paulo, Livraria Pulsional, m aio 1995.

Estela Ribeiro Versiani

Referências

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