• Nenhum resultado encontrado

Confissões de um ex-torturador

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Confissões de um ex-torturador"

Copied!
3
0
0

Texto

(1)

Perspectivas, S ã o P a u l o

4:103-105, 1981

R E S E N H A S

R E V I E W S

Dulce C A . W H I T A K E R *

VICTOR, J . — Confissões de um ex-torturador. Trad. de Cláudia Schilling. S ã o Paulo, Semente, 1981. 127p.

Uma nova Editora, cujo nome sugere a produção de livros como semeadura, lança uma obra que se enquadra perfeita-mente em tal objetivo. Conforme assinala o jornalista Carlos Alberto Kolecza no Prefácio, referindo-se às engrenagens da tortura uruguaia, "se a deserção de um ex-soldado, com sua bagagem de recorda-ções proibidas, afetou a m á q u i n a de hor-rores, é porque a contagem regressiva j á começou".

Espécie de reportagem-denúncia, de caráter extremamente didático, uma vez que 70% do livro se constituem em depoi-mentos publicados na forma original dos interrogatórios, sua sucessão de perguntas e respostas, que vão se aprofundando ine-xoravelmente sobre o contexto da repres-são uruguaia e de suas conexões com as de outros países, desvendam, para o leitor fascinado, um contraponto terrível, meto-dicamente construído, entre os ideais pro-clamados pela Constituição Uruguaia e pelo Direito Público Internacional e a tris-te realidade desse país. Traduzido por Cláudia Schilling, sua familiaridade com a cultura uruguaia facilitou-lhe, com cer-teza, a transposição para nossa língua, do universo carregado de tensões, implícito no diapasão m o n ó t o n o dos depoimentos que Hugo Garcia Rivas, ex-agente da re-pressão naquele país vizinho, prestou à

Imprensa, a organismos e a movimentos ligados à luta pelos direitos humanos, en-tre eles, a Ordem dos Advogados do Bra-sil.

Por isso, o livro reproduz uma lin-guagem direta, sem metáforas ou sutile-zas, onde nomes, fatos, endereços, cone-xões, detalhes fisionômicos, tudo surge numa descrição objetiva, que raramente apela para as emoções. Estas surgem mui-to mais nas notas de r o d a p é que esclare-cem detalhes familiares e outros sobre as vítimas da tortura, mortos e/ou desapare-cidos. Aparecem t a m b é m quando se che-ga ao clímax final: a sentença do juiz Moacir Danilo Rodrigues, que ao conde-nar dois policiais gaúchos envolvidos no seqüestro de Lilian Celiberti e Universin-do Rodrigues Diaz, clama contra aqueles "desnaturalizados que arrancam aos f i -lhos, para arrojar numa cela, uma m ã e que n ã o cometeu, segundo comunicado das forças Conjuntas Uruguaias, nenhum delito no seu p a í s " . Aparecem ainda nos protestos apaixonados de personalidades brasileiras, revoltadas com o desrespeito ao nosso território e às nossas tradições de hospitalidade. Este fato é central nas con-fissões de Hugo Garcia Rivas, j á que representa confirmação daquilo que a I m -prensa incansavelmente denunciou como violação da nossa soberania e atentado

* Professora Assistente do Departamento de C i ê n c i a s Sociais e Filosofia — Instituto de Letras, C i ê n c i a s Sociais e E d u -cação — U N E S P — 14800 — A r a r a q u a r a — S P — B r a s i l .

(2)

V I C T O R , J . — Confissões de um extorturador. T r a d . de C l á u d i a S c h i l l i n g . S ã o P a u l o , Semente, 1981. 127p. R E S E -N H A S : Perspectivas, S ã o P a u l o , 4:103-105, 1981.

contra os direitos humanos em nosso país, por parte de órgãos da repressão uru-guaia, com a cumplicidade de policiais brasileiros.

O livro representa, portanto, um documento histórico da mais alta i m p o r t â n -cia, por aquilo que registra e denuncia. A linguagem fria dos interrogatórios, repro-duzidos de modo um tanto repetitivo tem, ao que parece, a finalidade de dissecar os fatos em todas as facetas terríveis de que estão compostos. P o r isso, essa linguagem não é emocionante, de um ponto de vista, digamos, literário. E l a consegue, no en-tanto, e talvez por isso mesmo, despertar no leitor, a indignação que resulta da per-cepção de um mundo real que, descrito de maneira objetiva, pode conter mais hor-rores que a ficção literária.

Do ponto de vista desse real, é possível apreender nessa obra, três pla-nos: o universo ideológico que sustenta a repressão; o drama de consciência e as motivações do ex-torturador que confes-sa; e, num primeiro plano, com riqueza de detalhes, a m á q u i n a infernal, descrita pe-ça por pepe-ça. Nessa descrição reside a in-tenção principal do livro. O universo ideológico, embora descrito de modo um tanto sumário no início da obra, é uma constante, porque transparece a todo mo-mento nas denúncias de Rivas. Faltou ao autor, no entanto, ter se esforçado mais no sentido de captar a psicologia do tortu-rador, o que apenas se esboça de maneira espontânea em alguns trechos dos depoi-mentos, quando descrevem diferentes ti-pos, com suas motivações variadas, atuando na direção da escolha de t ã o de-gradante " c a r r e i r a " . Nada que lembre, nem de longe, p o r é m , as análises pene-trantes de Fannon, ou os depoimentos do-lorosos de prisioneiros políticos que de-nunciam seus algozes. Parece, no entanto, que este n ã o era o objetivo do autor. Tratava-se, para ele, de "radiografar" um sistema, através do qual a n a ç ã o uru-guaia, outrora apontada como uma

espé-cie de Suíça latino-americana, constitui-se hoje numa sociedade sitiada, onde as pes-soas são vigiadas nas ruas, nos serviços e nos locais públicos, dos campos de futebol aos velórios e enterros, conforme i n -forma Rivas.

Algumas questões importantes ficam no ar. O que leva um ser humano a se tor-nar torturador? Para o protagonista prin-cipal desta a u t o d e n ú n c i a , os caminhos al-ternativos pareciam poucos. N ã o gostava de estudar, mas era um bom fotógrafo. Seu pai arrumou-lhe esse "emprego" com o objetivo de garantir seu futuro. Seu "preparo-despreparo" para as funções de tortura é um dado importante que deve ser destacado. N ã o é o torturador típico que a psicologia e a literatura procuram construir. Por isso desertou? O u serão as-sim muitos daqueles que trabalham no mais baixo escalão da repressão? Gente que apenas obedece porque n ã o tem alter-nativa, como os personagens da peça " O Interrogatório de Weiss". N a descrição de Rivas, os túneis da repressão aparecem como caminhos sem volta. Negar-se à tor-tura podia levar o " f u n c i o n á r i o " ao cár-cere. . .

O fato de ser Rivas um fotógrafo é também bastante significativo. Atividade de importância crucial para os serviços de informação, criava-lhe condições espe-ciais de participação em quase todos os episódios da repressão. P o r isso, ao fugir, é uma fonte inesgotável de informações. Sua percepção " f í s i c a " dos fatos, agudi-zada pela necessidade de bem enquadrar sua câmara fotográfica, contribuiu para registrar em sua memória os terríveis de-talhes que implacavelmente denuncia.

Mais duas reflexões nos ficam "se-meadas" por essa leitura. Que validade têm, para qualquer tipo de preso, confis-sões arrancadas sob tortura? Segundo um criminalista uruguaio, citado por Victor, "os cárceres uruguaios estão cheios de presos condenados por delitos que n ã o co-meteram". U m processo irracional que só

(3)

V I C T O R , J — Confissões de um extorturador. T r a d . de C l á u d i a Schilling. S ã o P a u l o , Semente, 1981. 127p. R E S E -N H A S Perspectivas, S ã o P a u l o , 4:103-105, 1981

pode ter resultados irracionais, já que es-tamos num momento histórico em que, todas as formas de colonialismo parecem desembocar num processo incontrolável de tortura, conforme alerta Fannon.

E a irracionalidade maior, no fato de se denominar inteligência, ao conjunto de tarefas relacionadas com esse tipo de ati-vidade. N ã o deixa de ser paradoxal que

"inteligência" faculdade através da qual o homem se afirma diferente dos outros animais, sirva de r ó t u l o para o aperfei-çoamento de m é t o d o s através dos quais se brutalizam outros seres humanos.

Recebido para p u b l i c a ç ã o em 05/06/1981.

Referências

Documentos relacionados

objeto no 1º estado realizará certas ações (processos) e entrará no 2º estado quando um evento ocorrer ou uma condição (guarda) for satisfeito..  Estado – possui um nome

O PlanMob Salvador foi desenvolvido a partir de uma abordagem focada nas pessoas e na melhoria da qualidade ambiental urbana, embasado numa política para a mobilidade

a) intensificarem a dispersão dos raios solares antes que eles alcancem a superfície. b) contribuírem para uma maior conservação de radiação solar na atmosfera. c) aumentarem

• Encimeras en melamina: realizadas en madera aglomerada de 18 mm de grosor revestida de melamina aluminio, gris claro, blanco, roble claro, roble tabaco, roble moro, nogal, negro

A pura e simples supressão de benefícios que permitem a sobrevivência física de milhões de pessoas, acompanhada de um sistema obrigatório de capitalização individual, determinará

Os testes de robustez indicam que a ordenação das ações para formar as carteiras 1/N do maior IS para o menor é relevante, que a exclusão, tanto quanto

A interface do objeto, a forma de interação permitida neste, a metodologia utilizada e a forma como são apresentados os conteúdos são muito importantes, pois

Concluiu-se que crianças que participam de atividades esportivas fora do ambiente escolar apresentam nível médio e alto em todas as dimensões de percepção de competência,