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"Quem não é geômetra não entre!" Geometria, Filosofia e Platonismo.

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Academic year: 2017

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“QUEM NÃO É GEÔMETRA NÃO ENTRE!”

GEOMETRIA, FILOSOFIA E PLATONISMO

1

Gabriele Cornelli*

gabrielec@uol.com.br Maria Cecília de Miranda N. Coelho**

mceciliamnc@hotmail.com

“Dois e dois são três” disse o louco. “Não são não!” berrou o tolo. “Talvez sejam” resmungou o sábio. Skepsis, José Paulo Paes2

RESUMO O objetivo deste artigo é analisar, a partir dos textos de Platão e de comentadores, a apresentação de argumentos a favor da utilização da matemática e da geometria como propedêutica à aprendizagem da fi losofi a, bem como investigar as reverberações da ontologia e da epistemologia platônicas nesse programa pedagógico. Pretende-se, ainda, apontar comparativamente similaridades entre crises nos fundamentos da matemática e seu impacto na concepção de racionalidade, tanto no universo grego antigo como na contemporaneidade.

1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada por Gabriele Cornelli no Seminário “Filosofia, cultura e complexidade”, organizado pela Cátedra Charles Morazé, da Universidade de Brasília, em setembro de 2006, sob a coordenação do Prof. Dr. Wilton Barroso Filho.

* Professor Adjunto no Departamento de Filosofia da UnB, Brasília, Brasil. Artigo recebido em julho e aprovado em outubro de 2007.

* * Pesquisadora e docente no Projeto Grego Antigo on line, desenvolvido na COGEAE da PUC – São Paulo, Brasil.

2 Socráticas: poemas.São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17.

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Palavras-chave Filosofi a; Matemática; Racionalidade; Irracionalidade; Platonismo.

ABSTRACT The aim of this paper is to analyze, based on Plato’s and commentators’ texts, the presentation of arguments for the use of mathematics and geometry as propaedeutics to philosophy learning, as well as to investigate the reverberations of platonic ontology and epistemology in this pedagogical program. The paper will also consider similarities between crises in the foundations of mathematics and the impact of these crises on the conception of rationality, both in ancient Greek universe and in contemporary world.

Keywords Philosophy; Mathematics; Rationality; Irrationality; Platonism.

Introdução

Gostaríamos de começar este artigo com uma crônica de nossos dias.

A revista Carta Capital, em sua coluna Brasiliana, de setembro de 2006,

comenta o sumiço do “Professor”. Trata-se de uma história da Praça XV, no centro de Florianópolis, onde vivem diversos moradores de rua. Entre eles, o “Professor”:

Se autodenominava revolucionário e falava português, inglês, espanhol, francês, italiano, alemão, holandês, ao todo sete idiomas. Antes de ter ido embora, ensinava estas línguas aos colegas, logo depois do almoço, a divisão dos restos dos pães doados pelo padeiro do outro lado da rua.3

Falava também de Marx e Weber, e suas aulas acabavam em longas discussões oportunamente regadas à cachaça de R$1,50. Os amigos contam que pouco antes de seu desaparecimento, havia feito uma revelação a todos: retirando de sua sacola uma pasta cinza, teria mostrado papéis com números, desenhos, uns triângulos de ponta-cabeça. Eram esboços de sua autoria – havia esclarecido, e concluíra enfático: “Aqui está a equação matemática, cuja

solução será capaz de explicar... tudo nesta vida!”4

3 MORESCHI, Bruno. Professor, cadê você? Carta Capital, n. 411, p. 6, set. 2006.

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Sim, a equação matemática capaz de explicar tudo... Apesar de infi nitamente distante da Praça XV, o mundo para o qual olharemos, aquele das relações

entre geometria e fi losofi a na época clássica, parece ter alojado a mesma

tensão gnoseológica: aqui, a brincadeira é aquela de achar, na matemática, a explicação “de tudo nesta vida”. Certamente, essa ambição de compreender o mundo descobrindo seus números e as relações entre eles é antiga e não está reservada, exclusivamente, àquele âmbito da cultura que costumamos

chamar de ocidental.5 Hoje, nós a pensamos bastante in uenciados, ainda,

pelo paradigma da ciência moderna, aquela fundada por Galileu, que via a

natureza como um livro, encontrando nela um léxico matemático,6 e teorizada

por Descartes ao falar de mathesis univesalis, uma ciência geral relativa à

ordem e à medida.7

A relação entre matemática e natureza (phýsis) tornou-se particularmente

diferente, a partir do momento em que foram publicados, em 1638, os

Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze.8 Uma das

razões principais foi o fato de Galileu romper com a tradição aristotélica que separava o trabalho do físico daquele do geômetra, pois enquanto o primeiro examinava coisas reais, o segundo examinava razões em função de abstrações – os métodos de cada um não podiam ser os mesmos, dentre outras coisas, porque o espaço vazio da geometria seria incompatível com a idéia de lugar

natural e de cosmos.9 O “caso Galileu” é, ainda, objeto de muita pesquisa,

e alguns trabalhos recentes mostram as conexões complexas entre o que, hoje, chamamos física, astronomia, matemática e ontologia. Ao retomar certos pressupostos platônicos sobre a constituição matemática da matéria, Galileu teria, inclusive, dado margem a acusações de que suas pesquisas sobre o movimento possuíam implicações teológicas que ultrapassavam,

sobremaneira, o campo da física.10 Que Galileu tenha herdado de Platão o

estilo dialógico ou certos pressupostos metafísicos, como a circularidade do

5 Cf. LLOYD, Geoffrey. La curiositá nei mondi antichi: Grecia e Cina. Roma: Donzelli, 2003. p. 55. 6 GALILEI, Galileu. Il Saggiatore. Milano: Feltrenelli, 1965. § 6.

7 O termo é sempre associado a ele e aparece nas Regras para a direção do espírito, mas já havia sido usado antes por Erhard Weigel, professor de Leibniz. Sobre a história do conceito, ver: DUMONCEL, Jean C. La tradition de la mathesis universalis: Platon, Leibniz, Russell. Paris: Unebévue, 2002. Ver, também, o detalhado e cuidadoso artigo de: PATY, Michael. Mathesis universalis e inteligibilidade em Descartes.

Cadernos deHistória e Filosofia da Ciência, n.8, 1998, p. 9-57.

8 GALILEI, Galileu. Duas novas ciências. 2. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Nova Stella / Istituto Italiano di Cultura/Mast, 1987. Alguns aspectos da nova abordagem galileana são desenvolvidos em: COELHO, Maria Cecília M. Nogueira. Matemática e lógica em Galileu. Anais... Brasília: Ed. UnB, 1992. p. 265-291. 9 Cf. ARISTÓTELES. Física II, 2; IV, 7-8.

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movimento dos astros, é fácil de ser constatado, mas o atomismo e o projeto de uma geometrização da natureza dependem de um esclarecimento que tentaremos fazer, aqui, por meio de um comentário do renomado helenista Gregory Vlastos. Com sua ajuda, faremos esse salto de, aproximadamente, dois mil anos, mergulhando no período que nos interessa nesse momento, a

saber, aquele universo em que oresceu Platão.

Vlastos,11 partindo do pressuposto aristotélico de que a teoria da estrutura da

matéria de Platão é uma variante da hipótese atômica de Leucipo e Demócrito,12

analisou o modo como Platão adaptou a concepção atomista ao propor que os átomos fossem suscetíveis de dois tipos de alterações: a primeira, relativa à existência de variedades de cada um dos tipos primários de matéria (éter e

neblina são, por exemplo, variedades de ar);13 a segunda, relativa à mudança

de um tipo de matéria em outro, como no caso dos átomos de fogo, ar e água, devido a eles terem faces idênticas, isto é, triângulos eqüiláteros. Lembremos que o Demiurgo imprimiu uma forma estereométrica regular à matéria, ao transformá-la de caos em cosmos; fogo, ar, água e terra são constituídos

de tetraedros, hexaedros, octaedros, icosaedros, respectivamente.14 Esse

atomismo geometrizado será aquele retomado por Galileu, que, defendendo a matematização da natureza como método para a elaboração de uma nova ciência, deu, como observou Alexandre Koyré, “uma prova experimental do platonismo”.15

Desnecessário lembrar que a exclamação no título deste artigo “Quem não é geômetra não entre!” se refere à famosa advertência que se podia ler

no portal da Academia de Platão.16 Advertências análogas eram comuns nas

entradas de templos e santuários antigos, nos quais, no lugar da geometria, eram requeridas pureza e outras qualidades, funcionando como uma “senha” para iniciados. De maneira análoga, iremos utilizá-la ao longo do ensaio, para

11 VLASTOS, Gregory. O universo de Platão. Brasília: Ed. UnB, 1987. p. 47 et seq. 12 De generatione et corruptione, 315b28 et seq.

13 Timeu 58d. PLATONE. Opere complete com il texto greco. A cura di G. Iannotta, A. Manchi, D. Papitto. Itinerari di navigazione a cura di G. Giannantoni. Roma: 1999. CD-ROM.

14 Timeu 54c. Ao quinto sólido regular (o dodecaedro), Platão faz corresponder o universo, Timeu 55c; vemos, aqui, a importância do pressuposto metafísico de uma simetria universal, na formulação de teorias cosmológicas e cosmogônicas. Sobre a importância desse conceito de simetria no pensamento racional, veja: WEYL, Hermann. Symmetry. Princeton: Princeton U.P., 1980.

15 KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. In: Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 152-172. Sobre a questão dos modelos da astronomia (uma das matemáticas) veja: DUHEM, P. Salvar os fenômenos – ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Suplemento 3, 1984.

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indicar-nos o lugar que a matemática e a geometria assumem em um momento

de grande importância na de nição do pensamento ocidental e da loso a em

seu nascer: aquele da “descoberta” de um “método científi co”, entre o V e o IV

séculos a.C.17 “Quem não é geômetra não entre!”, portanto. Partiremos, daqui,

para compreender a importância do diálogo entre a fi losofi a, a matemática e

a geometria na construção desse método. Partiremos de Platão, lembrando

que a palavra matemática vem do verbo mantháno, que signifi ca, aprender,

compreender, e esse saber (máthema) pode ser relativo à idéia (suprema)

de Bem (República 505a). mathematiké é o que concerne à ciência da

matemática;18 as matemáticas são os conhecimentos que se apreendem em

um corpo de disciplinas que se constitui de aritmética, geometria em duas dimensões, geometria em três dimensões, a astronomia e a harmonia dos sons (República 525a-531d), e que são fundamentais na formação do fi lósofo.19

Desse modo, uma sentença como a do frontão da Academia encaixa-se muito bem naquela que devia ser a prática das ciências matemáticas no interior

da escola de Platão. Um entre muitos, podemos car com o testemunho de

Proclo:

Platão (...) deu um imenso impulso a toda a ciência matemática e em particular à geometria, pelo apaixonado estudo que a isso dedicou e que divulgou quer recheando seus escritos de raciocínios matemáticos, quer despertando em toda parte a admiração por estes estudos naqueles que se dedicam à fi losofi a.20

Sobre o papel que Platão teria exercido como matemático, os estudiosos discordam, tendendo mais a considerá-lo um formador de jovens matemáticos

do que um descobridor de novos métodos ou teorias. É o que afi rma, por

exemplo, Boyer: “Platão é importante na história da matemática principalmente por seu papel como inspirador e guia de outros e talvez a ele se deva a distinção

17 Utilizamos a expressão “método científico”, mesmo sabendo das discussões sobre a possibilidade de anacronismo, dadas as diferenças de abordagem entre a ciência moderna e o que seria a ciência helênica.

18 Máthemata, Leis 817e,no plural designa as ciências matemáticas.Podemos encontrar, com base em um comentário de Aulo Gélio (Noites áticas, I, 9), uma diferenciação entre os discípulos da escola pitagórica nas qualidades de acusmáticos e de matemáticos, referindo-se, respectivamente, a uma fase em que escutavam e a outra em que perguntavam e exprimiam o que haviam sentido. A última fase seria quando consideravam os princípios da natureza, e eram chamados físicos. Cf. ZHMUD, Lonid. Mathematici and akousmatici in the pythagorean school. In: BOUDOURIS, K. I. Pythagorean philosophy. Athens: Ionia, 1992.

19 República 523a-525b. Aristóteles também usará o termo mathematikai (Met. 981B24). ARISTÓTELES.

Metafísica. Ed. trilíngüe por V. G. Yebra. Madrid: Gredos, 1982.

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clara que se fez na Grécia Antiga entre aritmética (no sentido de teoria dos

números) e logística (a técnica da computação)”.21

A distinção a que se refere Boyer, sem oferecer maiores detalhes, é importante para nos dar a medida da preocupação platônica e mesmo de sua presença, ainda hoje, nos debates sobre a natureza da matemática. No

Filebo (56d-e), Sócrates faz distinção entre a aritmética do homem comum

e a do fi lósofo, com base na diferença dos “objetos” a que se dirige cada

um: enquanto o primeiro opera com unidades que são distintas (ao contar dois exércitos, sabe-se que eles são diferentes), para o segundo, as unidades

são todas indistintas (números são coleções de unidades puras).22 A rigor, a

aritmética (como a geometria) do fi lósofo aplica-se apenas ao mundo do ser.23

Um problema decorrente dessa visão da aritmética e, também, da geometria é o de explicar como essas disciplinas se aplicam ao mundo físico. Uma tentativa

será feita no Timeu, no qual temos uma teoria especulativa da construção

geométrica do mundo, interligada ao realismo epistemológico e ontológico de Platão.24

Acrescente-se, ainda, que, independentemente das atividades de Platão

como matemático, textos como o Mênon e o Teeteto mostram o quanto as

questões matemáticas estão presentes na discussão sobre os critérios para a aquisição de conhecimento verdadeiro e sobre impasses gerados devido a problemas internos à geometria e à aritmética. Desde o famoso artigo de F.

Cherniss, Plato as a mathematician,25 à recente obra de P. Pritchard, Plato’s

21 BOYER, Charles. História da matemática. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1974, p. 63. No entanto, é o próprio Boyer que defende Platão como criador do chamado método analítico e autor da fórmula para triplas pitagóricas (cf. Boyer, idem, p. 64 e 65). Quanto aos matemáticos do círculo de Platão, Boyer identifica Teodoro, Teeteto, Eudoxo e Menéxeno. Uma das razões para termos utilizado o livro de Boyer, neste artigo, foi a difusão deste texto no ambiente universitário brasileiro. A precisão matemática é assegurada pela tradução da Professora Elza Gomide. Quanto à acuidade em apresentar as questões da história da matemática, ainda que o texto de Boyer não tenha o mesmo grau de detalhamento que os de Thomas Heath, por exemplo, pensamos que trata-se de um manual confiável.

22 A mesma questão aparece no Teeteto 196a, na República 525d-506b, no Gorgias 451b e no Sofista

245b.

23 Ver República 510 d-e, 507a-c; Sofista 238a.

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philosophy of mathematics,26 tornou-se claro como a relação entre matemática

e loso a é estreita, e um primeiro momento de crise ocorre exatamente aqui,

na Academia de Platão. É desse momento que falaremos a seguir de uma crise que é ocasião de “a nar os instrumentos” para a ciência antiga e para a loso a dos séculos V e IV, de maneira especial. Uma crise que, em seu momento

fi nal, levará Aristóteles a sair “batendo a porta” e – numa imagem um pouco

naïve e pela qual desde já nos desculpamos – derrubando, teoricamente, a famosa escrita no frontão. No entanto, para podermos compreender essa crise,

será preciso recuar, observando como se desenhou a relação entre fi losofi a

e geometria, ao longo de anos de fecunda simbiose, desde aqueles que a

mitologia das origens da fi losofi a designou como ponto inicial, por meio de

um “fundador”, Tales de Mileto.

Considerações sobre a relação entre a geometria e a fi losofi a que nasce

Galeno conta uma anedota que ilustra muito bem qual é a imbricação cultural das ciências matemáticas (e, de maneira especial, da geometria) no mundo grego: Aristipo teria sido jogado durante um naufrágio numa praia

desconhecida, e vendo desenhadas na areia algumas guras geométricas, teria

fi cado aliviado, pois, naquele momento, sabia não ter caído em terras bárbaras,

e sim em terras gregas.27 Encontrava-se, de fato, na costa da Sicília, próximo

da cidade de Siracusa. É verdade que Tales de Mileto, segundo o testemunho

de Proclo, no Comentário ao primeiro livro dos elementos de Euclides,

provavelmente retirado do sumário da mais antiga História da geometria de

Eudemo, teria ido ao Egito estudar exatamente a geometria, que aqui nasceu para responder a necessidades práticas: “Foi o primeiro que, tendo ido ao Egito – trouxe de lá esta doutrina e a introduziu na Hélade, e ele próprio fez muitas descobertas e, de muitas, deixou uma idéia aos seus sucessores, abordando alguns problemas de modo mais geral, e outros de modo mais prático” (In

Eucl. 65, 3).

Na medida em que o Egito é geralmente considerado o berço da civilização grega, “o reconhecimento da origem egípcia não era outra coisa senão o corolário da certeza de que a geometria era um traço essencial da

identidade cultural helênica”.28 Entre outras descobertas de Tales, a tradição

26 Sankt Augustin: Academia Verlag, 1995.

27 Protreptico 5. Cf. ARISTÓTELES. Metafìsica 996a 29- 36.

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informou-nos sobre o famoso teorema, pelo qual o ângulo inscrito em um semicírculo é um ângulo reto, que parece ter sido o primeiro teorema de

geometria demonstrado de forma dedutiva.29 Com Tales, um dos sete sábios já

segundo Platão(Protágoras, 343a), a matemática insere-se em um programa

maior, que poderíamos chamar de organização racional do conhecimento e do mundo, que passava pela astronomia, pela política e – sobretudo – pela conduta humana, isto é, pela ética. Esse programa não é invalidado mesmo se concordarmos que algumas célebres “proezas” atribuídas a Tales sejam de cunho até anedótico, como a de ter conseguido determinar a distância de um barco a partir da costa (D.L. I, 27) ou a altura de uma pirâmide (PLÍNIO, N.H. 36, 82). Elas são, claramente, anacrônicas, pois pressupõem o uso do

conceito de proporção (analogía, lógos), um dos conceitos que nos interessa

neste artigo, e que parece ter sido descoberto somente no âmbito pitagórico – posteriormente,portanto. 30

De fato, tanto o desenvolvimento teórico da matemática como a aproximação entre ciência (em geral e, especialmente, a geometria) e ética

aparecem de forma ainda mais signifi cativa no pitagorismo,31 constituindo-se

como o primeiro momento daquele que Boyer chamava de “período heróico da matemática”:

Praticamente não existem documentos matemáticos ou científi cos até os dias de Platão no quarto século a.C. No entanto, durante a segunda metade do quinto século circularam relatos persistentes e consistentes sobre um punhado de matemáticos que evidentemente estavam intensamente preocupados com problemas que formaram a base da maior parte dos desenvolvimentos posteriores na geometria.32

É no interior do complexo e multifacetado movimento pitagórico que

teriam sido cunhados os termos-chave de nossa discussão: “ loso a” e

“matemática” (aquilo que se aprende, como dissemos antes).33 Os termos

indicam os interesses fundamentais da escola, articulados no sentido daquele

los Orígenes de la Matemática Griega. México: Universidad Nacional Autonoma de México, 1996, p. 66

et seq.

29 11 A 20 DK.

30 Cf. SALAS, op. cit., p. 82. O termo analogia aparecerá em Platão (República 534a6) indicando igualdade de relações entre formas de conhecimento e também, ao lado de symmetría, indicando como as coisas foram colocadas de maneira comensurável e proporcional (Timeu 69b3).

31 Lembremos do frag. 11 de Filolau, que diz serem a falsidade e a inveja da mesma natureza do infinito e do absurdo.

32 BOYER, op. cit., p. 47. O autor identifica como matemáticos desse período: Árquitas de Tarento, Hipaso de Metaponto, Demócrito de Abdera, Hípias de Élis, Hipócrates de Quios, Anaxágoras de Clazômenas e Zenão de Eléia.

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que, para Platão, era o grande objetivo da historía, da pesquisa pitagórica: um trópos tou biou, um estilo de vida, uma ética, uma conduta humana que dizia respeito, ao mesmo tempo, a preocupações religiosas e práticas ascéticas ligadas a uma concepção da imortalidade da alma reencarnacionista e a preocupações políticas. Uma geometria, digamos, aplicada à vida, mas

em um sentido diferente daquele técnico ao qual estamos acostumados. É

novamente Proclo a nos impedir de pensar nas pesquisas matemáticas dos pitagóricos como em algo simplesmente “funcional”: “Pitágoras fez do estudo da geometria um ensino liberal, subindo aos princípios com a investigação e estudando seus problemas sob um ponto de vista puramente abstrato e teórico. Deste modo foi ele que descobriu o tratamento dos irracionais e a construção da guras cósmicas”.34

Desde o teorema de Pitágoras até todas as outras “descobertas” geométricas que Proclo, Euclides e outros atribuem aos pitagóricos, como também o fazem autores como Eudemo e Aristóxeno com relação ao desenvolvimento por

estes da teoria musical (relações harmônicas de quarta, quinta e oitava)35 e ao

campo da astronomia,36 a loso a pitagórica tem uma intenção e uma acepção

claramente teóricas, mesmo fazendo parte de um quadro geral losó co e

ideológico, em que as diversas disciplinas e interesses se compunham. Boyer, também, realça essa característica: “No mundo grego a matemática

era aparentada mais de perto à fi losofi a do que a negócios práticos, e este

parentesco permaneceu até hoje” (1974, p. 48). Ao que parece, a aritmética torna-se disciplina intelectual antes do que cálculo técnico (logística), já com

os pitagóricos, o que é atestado por Aristóteles ao a rmar que aqueles “foram

os primeiros a se dedicar às matemáticas e a fazê-las progredir” (Met. 985b24).

Mas, ao mesmo tempo, diz Aristóteles, dedicaram-se à natureza (phýsis), no

sentido do trabalho fi losófi co pré-socrático de determinar quais seriam os

princípios (archai) ontológicos e epistemológicos da realidade. Dessa forma,

“nutrindo-se das matemáticas, pensaram que os princípios delas fossem princípios de todos os seres”, concluindo, assim, que “o universo inteiro é

harmonia e número” (Met. A 5, 985b25-26).

Vai além dos limites deste ensaio uma análise, ainda que breve, da contribuição pitagórica à história da matemática e da geometria, ou melhor, da aritmogeometria – célebre expressão de Abel Rey –, como se costuma

próprios títulos atribuídos à obra de Sexto Empírico. SEXTUS EMPIRICUS. Adversus mathematicus. Trad. de R. G. Burry. London: Heinemann, 1933-1949.

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chamar esse conjunto ainda indistinto de teoremas e teorias que a tradição nos

transmite dos estudos do movimento pitagórico.37 Concedemos à paciência

historiográfi ca somente mais duas obervações. Primeiro, que seria melhor

falar não de uma aritmogeometria, e, portanto, de uma correspondência entre

números e fi guras geométricas, mas de uma correspondência mais generalizada

(cosmológica) entre número e todas as entidades constitutivas da realidade. Se é verdade que o número um é o ponto, o dois é a linha, o três é o plano, é também verdade que Eurito pensava poder indicar os números do cavalo e

do homem, e Filolau o número que correspondia à memória, ao éros, a certas

divindades.38 Segundo, que é oportuno lembrar uma outra vertente

matemático-fi losófi ca pré-platônica não pitagórica, na qual poderiam estar autores eleatas, como Zenão, e outros, como Anaxágoras e Demócrito. No entanto, a economia

destas páginas não nos permite um tratamento adequado do tema.39 Estamos

interessados, no momento, em mostrar que o conhecimento sobre o princípio (arkhé) da fi losofi a pitagórica, o arithmos, o número indivisível, inteiro, que é a base da geometria e da loso a pitagóricas (Met., 985b, 990a, 1078b, 1092b), entra em crise, na metade do século V. É, novamente, Boyer a introduzir muito bem os termos da questão:

Os diálogos de Platão mostram que (...) a comunidade matemática grega fora assombrada por uma descoberta que praticamente demolia a base da fé pitagórica nos inteiros. Tratava-se da descoberta que na própria geometria os inteiros e suas razões eram insufi cientes para descrever mesmo simples propriedades básicas.40

Trata-se, provavelmente, de uma crise que acontece no âmbito pitagórico:

Hipaso seria seu autor, pela descoberta das grandezas incomensuráveis

(asýmmetron, ou sýmmetroi; álogos).41 A anedótica da história da loso a

conta-nos que, por esse motivo, teria sido expulso da escola pitagórica.42

37 Sobre a expressão de Rey, cf. CAMBIANO, op. cit., p. 86.

38 Cf. os testemunhos A12 e A14, como também: ARISTÓTELES, Met. 1092B8. Mais detalhes, ver: CORNELLI, Gabriele. As origens pitagóricas do método filosófico: o uso das archai como princípios metodológicos em Filolau. Hypnos, n. 11, p. 71-83, 2003.

39 Cf., nesse sentido, o restante do sumário de Eudemo, presente em PROCLO, In Pr. Eucl. II, 64. Ver, também, o artigo clássico de OWEN, George E. L. Zeno and the mathematicians. Proceedings of the Aristotelian Society, p. 199-222, 1958.

40 BOYER, op. cit., p. 53. O problema só foi resolvido no século XIX, quando se demonstrou a impossibilidade de se fazer a duplicação do cubo com régua e compasso.

41 Teeteto 147 d 4; An. Post. 1, 10, 3. O termo “irracional” é utilizado, habitualmente, nesse contexto; lembremos que ratio, palavra latina, também carrega esse sentido, ligado mais diretamente à matemática – o conceito de razão como comparação entre dois segmentos –, bem como o conceito, mais geral, de faculdade de conhecer (o conhecimento, por sua vez, não deixa de ser um processo comparativo). 42 18A4DK. O tema é discutido, de maneira particularmente interessante, por Nussbaum, ao inseri-lo no

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A “ciência normal” de kuhniana memória já fazia aqui, provavelmente, sua primeira vítima. É uma crise grave nos fundamentos do conhecimento matemático, e não somente uma questão periférica, uma aporia secundária da

geometria. O incomensurável irrompe no céu puro e imaculado das guras

e dos números racionais e de seus axiomas e princípios evidentes, dos quais procede a rigorosa cadeia de conseqüências necessárias. A crise atinge os próprios alicerces epistemológicos, tanto da matemática como da geometria.

Como já foi observado, frente aos problemas com a incomensurabilidade, muitas demonstrações perderam seu poder de convencimento, sendo reduzidas

a raciocínios plausíveis. Como números signi cam, na época, “números

racionais”, originou-se o que é chamado hoje “álgebra geométrica dos

gregos”, por exemplo, “o retângulo de lado a e b” era usado em vez de “a

vezes b”. Coube a Eudoxo (século IV a.C.) a tarefa de fornecer fundamento

sólido para a matemática.43 Semelhante reação crítica e busca de rigor só

ocorreriam, novamente, no século XIX, aparecendo, aliás, em um nível de

maturidade losó ca semelhante ao de Eudoxo, que, com sua teoria das

proporções, formulou uma primeira abordagem satisfatória dos números irracionais. Lembremos como Dedekind, para fundamentar a Análise (que é um desdobramento do cálculo diferencial e integral), seguiu métodos semelhantes aos de Eudoxo. Outras crises, entretanto, surgiram ligadas, principalmente, à Teoria dos Conjuntos, de Cantor, cujos pressupostos metafísicos (dentre eles,

a existência de in nitos atuais) levaram, em certos contextos, a intrincados

paradoxos. Um depoimento eloqüente sobre a situação e suas implicações na própria possibilidade do conhecimento humano é dado por Hilbert:

O objetivo de minha teoria é estabelecer de uma vez por todas a certeza dos métodos matemáticos. Essa é uma tarefa que não foi realizada mesmo durante o período crítico do cálculo infi nitesimal (...) Nós agora chegamos à mais estética e delicada estrutura da matemática, isto é, a análise (...) em certo sentido a análise matemática é a sinfonia do infi nito (...) O estado atual das coisas, em que nos chocamos com os paradoxos é intolerável. Apenas considerem as defi nições, os métodos dedutivos que cada um aprende, ensina e usa em matemática, o modelo da certeza e da verdade conduzindo a absurdos. Se o pensamento matemático é defeituoso, onde encontraremos verdade e certeza?44

In: NUSSBAUM, Martha Craven. The fragility of goodness: luck and ethics in Greek tragedy and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p. 89 et seq.

43 AABOE, Asger. Episódios da história antiga da matemática. Rio de Janeiro: Ed. SBM, 1984. p. 54. 44 HILBERT, D. On the infinity. In: BENACERRAF, Paul; PUTNAM, Hillary. Philosophy of mathematics.

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Nessa afi rmação de um dos maiores matemáticos dos séculos XIX e XX, constatamos o eco das propostas tanto platônica como cartesiana do que

compreendemos como mathesis universalis. Resultados de Gödel mostraram

que o sucesso do programa de Hilbert é muito improvável, se não impossível.

O debate, ao menos no terreno fi losófi co, continua. Temos, deve-se destacar,

os que mostram como é possível aceitar a existência de contradição dentro de um sistema de pensamento, sem trivializá-lo ou torná-lo irracional, como na

lógica paraconsistente – o que não deixa de re etir, ainda, a intenção de uma

forma lógica, a coexistência da racionalidade com a contradição.45 Temos,

ainda, o apelo para que a loso a reavalie a “aversão contumaz à irracionalidade”

existente no mundo científi co e em si própria.46 Tais considerações sobre

o período contemporâneo permitem-nos ver, ainda que super cialmente, o

impacto das questões fi losófi cas relacionadas à lógica e à matemática, em um

projeto de salvar a racionalidade e um critério seguro de conhecimento. Tendo isso em mente, voltemos ao ambiente grego e, por analogia, compreendamos o impacto de certos problemas no projeto pitagórico-platônico de alicerçar uma epistemologia e uma ontologia em bases matemáticas.

Crise nas matemáticas

Os testemunhos de Arquitas,47 Platão48 e Aristóteles49 parecem concordar

sobre o fato de que a preocupação fundamental, e a matriz da pesquisa dos pitagóricos, é a música, no sentido da investigação da natureza do som e dos

princípios que subjazem à produção dos acordes. A vida de Pitágoras, de

Jâmblico, está repleta de referências a esse interesse de Pitágoras. Deve ter sido exatamente essa experimentação musical a sugerir aos pitagóricos que

são as relações (lógoi) numéricas simples que determinam a harmonia dos

45 Para o principal criador da lógica paraconsistente, o filósofo brasileiro Newton da Costa, “Desde Heráclito, passando por Hegel, Marx e Lênin, e, em nossos dias, por Wittgenstein, tem havido filósofos admitindo que a contradição pode ser aceita em teorias e contextos racionais que expressam conhecimento legítimo. Wittgenstein afirmou: “se uma contradição fosse efetivamente agora descoberta na aritmética “isso provaria apenas que uma aritimética, com essa contradição, poderia prestar serviços muito bons”. Para alguns pensadores, a existência de contradição é, aliás, característica básica de toda teoria que traduza qualquer porção não muito restrita da realidade. No entanto, até há alguns poucos anos, filósofo algum tratou de desenvolver sistemas lógicos paraconsistentes que se destinassem a justificar ou tornar plausíveis suas idéias “o que não deixa de ser surpreeendente” (COSTA, Newton Carneiro Affonso da.

Ensaio sobre os fundamentos da lógica. 2. ed. São Paulo: HUCITEC/Ed. USP, 1994. p. 147-148). 46 GRANGER, Gilles Gaston. O irracional. São Paulo: Ed. UNESP, 2002. Nesse instigante livro, o autor

busca, também, uma tentativa de compreender a irracionalidade como uma força criativa importante ao desenvolvimento do pensamento.

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acordes.50 A passagem da harmonia musical à geometria é quase obrigatória:

serão as mesmas relações a reger as proporções das guras geométricas.

Da mesma forma que os acordes musicais podem ser reproduzidos em instrumentos e escalas diferentes, obtendo-se a mesma harmonia e agradando ao ouvido, assim, as formas dos corpos geométricos que obedecem a relações numéricas simples geram um efeito harmônico semelhante na vista e podem ser

reproduzidas.51 Por isso, provavelmente, o grande interesse de Pitágoras pelos

triângulos, especialmente aqueles casos particulares de triângulos retângulos cujos lados mediam 3, 4 e 5: é, aqui, que nasceria a primeira formulação de

lógos, de razão, de proporção: todos os triângulos (de qualquer tamanho) que

tivessem a relação (o lógos) 3-4-5 seriam iguais.

É necessária, aqui, uma observação terminológica com relação à utilização

do termo lógos, no sentido de proporção, de razão geométrica. O termo é

utilizado na expressão tôn autôn lógon ékhein, isto é, “ter a mesma proporção”.

Como bem sabemos, lógos signifi ca, fundamentalmente, palavra, mas uma

palavra diferente do épos, que se quer representado na fala, a realidade. O

lógos é a palavra (ou um conjunto discursivo de palavras) penetrante, que aponta para a tentativa de expressão da natureza da coisa. Nesse sentido,

conhecer o lógos, a proporção do triângulo 3-4-5, é compreender sua razão,

seu sentido mais profundo.52 Mas, com a descoberta das proporções, ocorreu

a descoberta da incomensurabilidade: se a simples relação entre a diagonal e o lado de um quadrado não pode ser expressa por um conjunto de números inteiros, então, o número inteiro e indivisível não pode ser considerado como o arkhé da realidade (Met., 983a15).

A crise é, portanto, uma crise que se instaura entre os números (que, até

Aristóteles, são considerados monadikói, inteiros, indivisíveis, não sendo

possível pensá-los diferentemente) e os lógoi, as proporções. O ponto de partida

não discutido é a proposição pitagórica de que “a mônada é indivisível”, o que de fato corresponde a um Axioma de Peano: “1 não é sucessor de nenhum

número”. Isso signi ca que o número 1 não tem predecessor e, portanto, é a

arkhé absoluta, é o início de tudo.53 Não há, também, número menor do que

50 JÂMBLICO, Vida, p. 64-65 e p. 68-69. Sobre os sentidos mais amplos do termo “harmonia” e algumas análises de suas ocorrências na literatura, ver: CORREA, Paula da Cunha. Harmonia, mito e música na Grécia antiga. São Paulo: Humanitas, 2003.

51 Cf. SALAS, op. cit., p. 104. 52 Ver nota 31.

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1, e, portanto, 1 é indivisível.54 A aritmética pitagórica assume a contradição

conscientemente e encontra – aparentemente – uma solução: aquela de separar

números (aríthmoi) de lógoi, afi rmando estes últimos não serem números, e,

sim, pares ordenados de números, díades (dyás) nitas. Apesar de Aristóteles se distinguir dos pitagóricos, na medida em que estes insistiam que as unidades têm extensão espacial, confundindo a unidade aritmética e o ponto geométrico (Met. 1080b16-20),55 é de Aristóteles a melhor de nição do que foi a solução

pitagórica: “Os lógoi não são de nidos como números, e sim como relações

numéricas e afecções do número” (Met. 1021a 8-9). Poderíamos dizer que “a

matemática cientí ca e com ela a loso a recorreram ao ostracismo”.56 Entre

outras palavras, aquelas de Imre Toth:

Os pitagóricos perceberam a intolerabilidade desta contradição lógica entre as duas proporções axiomáticas e (...) Platão compartilhava plenamente essa opinião. O monstro lógico do folclore matemático, o número fracionário, foi expulso da teoria superior dos números. Entretanto o povo vivia feliz nessa desprezível promiscuidade lógica, e, sem preocupar-se com nada, continuava a fazer cálculos com números fracionários: pela simples razão de que, com toda maravilha, a presumida intolerável contradição lógica não levava a nenhum erro no curso dos cálculos, enquanto as teorias dos savants, logicamente imaculadas, só podiam tornar insuportavelmente difíceis esses cálculos. De sua parte o povo achava as afl ições lógicas de consciência dos pitagóricos – com as quais tornavam deliberadamente difícil a vida – não só inúteis, mas, sobretudo, extremamente “ridículas”.57

Como demonstra a comédia aristofânica, satirizando posições fi losófi cas,

o povo continuava a usar proporções e frações para calcular o preço do pão

e outras trivialidades (Aves, versos 903-1020; Nuvens, versos 607-620). No

entanto, não é só o povo, pois os próprios matemáticos, em determinados momentos de crise, ignoram os problemas ligados aos fundamentos. Por

meio da seguinte a rmação, feita pelo genial Paul Cohen, comentando o

comportamento dos matemáticos, em função da “crise dos fundamentos” na virada do século, podemos constatar que as questões radicais de teor metafísico sobre a natureza da matemática e sua relação com o conhecimento humano não parecem extrapolar, seja na Antigüidade, seja hoje, o espaço da

54 Essa concepção, grávida de conseqüências para a matemática, não é, obviamente, alheia a sentidos políticos: o 1 constituiu-se desde sempre como um limite intransponível, uma entidade indivisível, atrás da qual não havia antecedentes. Até isso podia se revestir de valências políticas: “Um é para mim dez mil, desde que aristós”, afirmava Heráclito (22 B 49a DK). Cf. CAMBIANO, op. cit., p. 87. Ver, num outro sentido político, o fr. 3 de Arquitas.

55 Aristóteles define monás como substância sem posição, ao contrário de ponto (stígme), substância com posição (Anal. Post., I, 87a).

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“Academia”, e mesmo dentro dela encontram uma solução que consiga passar entre Cila e Caríbdis:

A posição realista [isto é, platonista] é a que a maior parte dos matemáticos gostariam de adotar. Somente quando se torna consciente de algumas das difi culdades da teoria dos conjuntos é que o matemático começa a questioná-la. Se estas difi culdades o inquietam particularmente, ele correrá para o abrigo do formalismo [grosso modo, este afi rma que a matemática é uma combinação de símbolos sem sentido e que, portanto, seus enunciados não podem ser verdadeiros ou falsos, pois não se referem a coisa alguma no mundo] enquanto que sua posição normal será em algum ponto entre as duas, tentando desfrutar o melhor dos dois mundos.58

Retornando ao contexto da matemáticas na Grécia, observemos que se a crise aritmética é gerada e, de alguma forma, “resolvida” no interior do movimento pitagórico, a crise da geometria, que é uma crise de sua

fundamentação axiomática, parece ser toda acadêmica, isto é, interior à escola

de Platão. Ao que sabemos, pelo próprio Aristóteles, o tema da fundamentação

axiomática da geometria era discutido com vivacidade na Academia.59 O

que os acadêmicos percebem é que muitas das proposições fundamentais da geometria são utilizadas como se fossem teoremas demonstrados, sem, todavia, terem sido demonstrados. A essa situação é aplicada uma metodologia

de demonstração, já utilizada em muitas outras questões fi losófi cas: a via da

negação, da contradição, já apontada no Parmênides (136a) da seguinte forma:

“Não deves considerar as conseqüências que emergem da hipótese de que cada coisa exista, mas deves também supor que essa mesma coisa não exista”. Assim,

os fi lósofos-geômetras da Academia exploram o campo dos axiomas e de suas

conseqüências, para tentar provar a verdade deles. No entanto, eles tropeçam, com o método negativo, exatamente, naquilo que não queriam encontrar, que queriam refutar: uma geometria oposta, “onde as paralelas se encontram, as

diagonais são comensuráveis e as retas curvas”.60 Claramente, Platão oporá um

“outro método” (álle méthodos), para alcançar aquilo que cada coisa “é” (

estín), e tal método está além daquele da geometria e áreas que decorrem dela,

as quais, quanto à apreensão do “ser” (tò ón), têm apenas “sonhos” (República

533b8), pois não conseguem chegar a alguma demonstração de que sejam verdadeiras as hipóteses de que partem – nas demonstrações geométricas,

58 Citado por DAVIS, op. cit., p. 362. Sobre as reflexões acerca da matemática (por filósofos e matemáticos) e o trabalho dos matemáticos, veja, especialmente: SHAPIRO, Stewart. Thinking about mathematics: the philosophy of mathematics. Oxford: O.U.P., 2000.

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pode-se ter uma cadeia coerente de conseqüências a partir de uma premissa falsa (Crátilo 436c-438d).

Resposta de Platão

A essas crises Platão, e depois Aristóteles, antes de Euclides, respondem

como lósofos. Eles vislumbram, na explicação metafísica, a possibilidade

de resolver o irracional e o incomensurável, fundamentando, para além da matemática e da geometria, seus postulados. Partamos de um conhecimento geral da estrutura da epistemologia e ontologia platônicas – tanto do “raciocínio

a partir das ciências” (lógos ek tôn epistemôn), pelo qual toda ciência tem

como seu objeto um objeto único e idêntico, como a própria Teoria da Idéias. Segundo esta última, o objeto do conhecimento verdadeiro, da ciência, não pode ser particular, sensível (todos os quadrados que existem, todos os sons que existem), pois, dessa forma, seria um objeto móvel (pois a realidade é móvel). Portanto, objeto da ciência poderão ser somente outras realidades, isto

é, as idéias desses mesmos objetos, pois elas sim são imutáveis.61 “Pois das

coisas que são sujeitas a perene fl uxo não há ciência” – dirá, também, ainda

que em outro contexto, Aristóteles (Met. 1078 b 17). Com relação à geometria,

no fr. 3 do De ideis, diz: “Se a geometria não é ciência deste determinado igual

e desse determinado comensurável, mas do que é simplesmente igual e do que é simplesmente comensurável, então haverá o igual em si e o comensurável em si: e estas são as Idéias”.62

As ciências matemáticas, portanto, têm como objeto realidades imóveis, idênticas a si mesmas, não sensíveis. Surge, naturalmente, uma pergunta, a essa altura: Isso signifi ca que esses objetos da matemática são Idéias? Isto é, pertenceriam ao mundo inteligível? Platão responde que não. E responde num

dos lugares centrais de seu pensamento, que é o Livro VI da República. A

resposta constrói-se com uma famosa metáfora, a “metáfora da linha”: Sócrates, para explicar para Glauco a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível,

convida-o a “dividir uma linha (grammèn) em duas partes desiguais (ánisos)”

– trabalho de geômetra, portanto – e a dividi-la novamente em duas, “segundo

a mesma proporção (tòn autòn lógon)”.63 A linha é uma linha plasticamente

epistemológica, que distingue, tanto na parte do inteligível (nooménou) como

na parte do visível (oroménou), “imagens” e “modelos destas imagens” a

61 República 507b-c; 596a-b.

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serem apreendidos. Frente à difi culdade de compreensão que Glauco expressa (oukh hikanôs émathon), Sócrates desenvolve uma das páginas mais lúcidas de Platão sobre a epistemologia da matemática de seu tempo:

Suponho que sabes que aqueles que se ocupam da geometria (geometrias), da aritmética (logismoùs) e de coisas deste tipo (pragmateuómenoi) supõem (hypotémenoi) o par e o ímpar, as fi guras, três espécies (eíde) de ângulos, e outras irmãs destas, segundo o

método (méthodon) de cada uma. Essas coisas dão-nas por sabidas (eidótes) e fazendo-as como hipóteses (hypothéseis), nenhuma palavra (lógon), nem a si nem aos outros consideram mais necessário prestar conta, como se fossem evidentes (phanerôn) a todos; e partindo destas e passando ao que resta, caminhando coerentemente atingem ao que tinham se proposto a alçancar (República 510 c2-d2).64

Da mesma forma, os geômetras:

Servem-se de fi guras visíveis (oroménois eidesi) e fazem raciocínios (lógous) sobre elas, pensando (dianooúmenoi) não nelas, mas naquilo com que se parecem (éoike), raciocinam com respeito ao quadrado mesmo e à diagonal mesma, mas não ao quadrado, à diagonal, ou aquela que desenham, e semelhantemente quanto às outra

fi guras. Estas mesmas que estão fazendo ou desenhando, das quais há sombras e imagens na água, eles usam agora como imagens, buscando ver aquilo mesmo que alguém não pode ver exceto pelo pensamento (diánoia) (República 510d4-511a1).

Glauco, nalmente, compreende. Sócrates está se referindo “à geometria

e às artes (tékhnai) afi ns a ela” (511b 3-8), não à dialética das idéias, ciência

suprema. De fato, Sócrates con rma a distinção entre a parte superior da linha

(a potência heurística da fi losofi a) e aquela das ciências matemáticas:

Aprende então o que quero dizer com a outra parte do inteligível, aquela que o raciocínio mesmo atinge com o poder da dialética (dialégesthai), fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses mesmo – um tipo de acesso, de apoio, para chegar ao não hipotético (anupothétou), ao que é princípio de tudo. Alcançado isso, retorna, atendo-se a cada resultado, de tal modo que desça até a conclusão, sem fazer uso de nada visível, movendo-se das idéias (eídesin) umas às outras, terminando na idéia (eide) (República 511 b3– c1).

Assim, a matemática, no interior da metáfora da linha, é ciência, e uma

ciência que está na linha na metade do caminho (metaxú) entre o mundo sensível

(pístis, crença e eikasía, conjetura) e o mundo inteligível. Mas, a bem ver, é

ciência apenas analogamente à ciência mesma, à dialética (dialetikè méthodos),

aquela que diz respeito às idéias, destruindo as hipóteses e arrastando, aos

(18)

poucos, os olhos da alma do lodo bárbaro (borbóro barbarikó)65 em que

ela se encontra. Tanto que Platão faz Sócrates a rmar que, relativamente à

matemática e à geometria: “Sobretudo por costume (éthos) as chamamos com

freqüência de ciências, (epistéme), mas é necessária outra denominação, mais

clara que opinião e mais obscura que ciência: nesse sentido antes a defi nimos

como entendimento (diánoia)” (República 533 d1). Algo que seja “metade

do caminho entre opinião e intelecto” (hós metaxú tes doxés te kaì nou tén

diánoian) (República 511d). Diánoia, ou seja, conhecimento mediado. Especialmente na geometria, Platão entrevê uma profunda ambigüidade ou, melhor, duplicidade, que é, ao mesmo tempo, seu ponto de força: sua irresistível aproximação ao sensível, sua contaminação com as imagens reais, permite-lhe ser ponte entre o inteligível e o sensível. Assim, a matemática torna-se, epistemologicamente, uma “terra de meio” lugar mediano, necessário de ser atravessado no caminho das Idéias, das verdades não hipotéticas. Ecoa, aqui, o frontão da Academia “Quem não é geômetra não entre!”. A geometria é a porta, a conexão, entre os dois mundos.

Conexão que se expressa na metodologia do caminho desenhado pela linha: das hipóteses até os princípios primeiros, e vice-versa. Em um caminho

ascendente e descendente, que é típico da epistemologia platônica (no Banquete,

a erótica é esse caminho de mão dupla, embora seja, muitas vezes, muito mal-interpretada, sendo apenas lida na visão de uma ascese, de uma ascensão em direção à alma, um abandono do corpo). No caso da ciência matemática, ela é o caminho, não a meta, pois seus pressupostos não são demonstrados, e, sim, remetem para um caminho ulterior, até sua fundamentação na plenitude

das idéias. É nesse sentido que a matemática procede analogicamente: síntese

dos dois mundos, as verdades matemáticas e geométricas são capazes de representar todo o ser, mas apenas em chave analógica. Pois é no ser inteligível que elas encontram, ainda, seu fundamento último.

Conclusão

Consideramos pertinente fazer duas observações fi nais. A primeira diz

respeito a como Aristóteles compreende a solução de Platão. Não podemos nos dedicar à solução aristótélica da mesma crise por óbvios motivos de economia

do texto. A reclamação dele, na Metafísica (992a33-b1), dirigida contra

“os fi lósofos de agora, para os quais as matemáticas tornaram-se fi losofi a”,

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refere-se, claramente, a Platão e à Academia. O erro de Platão seria aquele de ter considerado a matemática como parte integrante e indistinta da metodologia da ontologia: a crítica de Aristóteles é dirigida à “linha” e sua continuidade, portanto. Para Aristóteles, é inconcebível que o objeto da matemática seja

algo “fora do sensível”: a metafi sicização da matemática é o seu problema. O

objeto de matemática ( gura e número) está dentro da realidade, não fora dela,

aproximando, sob certos aspectos, sua posição àquela dos pitagóricos.66

Uma segunda e última observação diz respeito à expressão “platonismo”, utilizada na fi losofi a contemporânea da matemática para indicar, grosso modo, a crença de que objetos matemáticos existem independentemente de nós e que, com eles, não temos nenhuma interação causal; podemos descobri-los, mas não criá-los. Um importante registro do termo aparece em uma conferência de

Paul Bernays, de 1934.67 Ao tratar da axiomatização da geometria por Hilbert,

comparando-a à de Euclides, Bernays destaca que, enquanto o segundo fala

da “construção” de fi guras, o primeiro assume a existência delas, mostrando

“uma tendência de ver os objetos como desvinculados de qualquer ligação

com o sujeito pensante”, à qual Bernays chama de platonismo.68 Embora o

termo tenha surgido aqui, a tendência era mais antiga, como vemos pelo que

dizia Russell num ensaio de juventude (1901, na revista Mind): “A aritmética

deve ser descoberta exatamente no mesmo sentido em que Colombo descobriu os índios do Oeste, e nós não criamos os números, como ele não criou os índios...”.69 Nossa observação diz respeito ao fato de Platão ser não “platonista”,

nesse sentido acima descrito. Acreditamos que o platonismo descreva, somente

de forma limitada, a “ loso a da matemática” de Platão, que tem objetivos

e ambições bem maiores: aqueles de fundamentar a matemática no interior de um caminho epistemológico que permita a esta chegar ao princípio de toda a realidade. Ambições epistemológicas, portanto, mais do que simples

a rmações ontológicas. A matemática e a geometria são portas e, como tais,

abrem-se e fecham sobre a verdade e seus possíveis caminhos dialéticos.

66 Met. 987 b 10-14.

67 Publicado posteriormente. BERNAYS, Paul. Sur le platonisme dans le mathématique. Le Enseignemant Mathematique,v. 34, p. 52-69, 1935.

68 BERNAYS, ibidem, p. 53. Lembremos que há várias variantes do platonismo. Uma das abordagens mais heterodoxas pode ser encontrada em: BALAGUER, Mark. Platonism and anti-platonism in mathematics. Oxford: Oxford Universtity Press, 2001.

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