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Justificados vivemos: A justificação pela fé como um modo de vida

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Academic year: 2017

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FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS

-

GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MARCOS JAIR EBELING

JUSTIFICADOS VIVEMOS: A JUSTIFICAÇÃO

PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO

DE VIDA.

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MARCOS JAIR EBELING

JUSTIFICADOS VIVEMOS: A JUSTIFICAÇÃO

PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO

DE VIDA.

Dissertação apresentada em cumprimento às exigências parciais do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo para obtenção do título de Mestre.

Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais

Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

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Ficha Catalográfica

MARCOS JAIR EBELING

EBELING, Marcos Jair

Justificados Vivemos: a Justificação pela Fé como Fundamento de um Modo de Vida.

Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014. 128 p.

Área de concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais. Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth.

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A dissertação de mestrado sob o título “Justificados Vivemos: a Justificação

pela Fé como Fundamento de um Modo de Vida”, elaborada por Marcos Jair

Ebeling foi apresentada e aprovada em 06 de Março de 2014, perante banca

examinadora composta por Lauri Emilio Wirth (Presidente/UMESP), Helmuth

Renders (Titular/UMESP) e Wilhelm Wachholz (Titular/Faculdades EST).

__________________________________________ Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião Sociedade e Cultura

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Agradecimentos

* a Deus por todo cuidado recebido;

* à família que persevera e suporta ausências;

* ao Prof. Lauri pelos diálogos frutíferos;

* à Comunidade Evangélica de Confissão

Luterana em Campinas pelo incentivo e

compreensão nas ausências necessárias;

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EBELING, Marcos Jair. Justificados Vivemos: a Justificação pela Fé como Fundamento de um Modo de Vida. 128 f. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião, Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

RESUMO

A Justificação pela Fé no contexto da Reforma protestante do século XVI apresentou-se como um enunciado libertador das práticas pastorais meritórias. Ressignificou conceitos teológicos. Apontou para uma nova forma de vida cristã tendo a salvação como seu princípio, não seu objetivo. Formatou, desta forma, o fundamento de um modo de vida: o modo justificado de viver. Um modo que define a integralidade do ser. Modo que, dogmatizado com o passar dos anos, impôs-se como doutrina em detrimento da vivência. Esta pesquisa se propõe a apontar para a relevância da Justificação pela Fé no contexto do século XVI, assinalar aspectos que fundamentam e moldam o novo modo de vida da pessoa justificada pela fé e afirma a Justificação pela Fé como o fundamento de um modo de vida resistente ao sistema hegemônico da sociedade de mercado do século XXI.

Palavras-chave: Reforma Protestante, Justificação pela Fé, fides Christi, justiça.

Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura. Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais.

Orientador: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

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EBELING, Marcos Jair. We live justified: justification by faith as a foundation of a way to live. 128 f. Dissertation (Master of Religious Sciences) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2014.

SUMMARY

The justification by faith alone, in a context of fear, anguish and pastoral practices based on merit, of the Protestant Reformation in the 16th century, presented itself as a liberating enunciation. It gave new meaning to theological concepts. It showed the direction to a new way of Christian life, having salvation as its principal, not its objective. It formed, in this way, a foundation of a way to live: a justified way of living. A way that defines the integrity of being, that defines personal and communitarian acts. A way that, dogmatized over the years, imposed itself like a doctrine, to the detriment of vivid experience. The purpose of this research is to point out the relevance of justification by faith in the context of the 16th century, highlight aspects that formed the foundation of a new way of life of a person justified by faith, and confirm justification by faith as a foundation of a way of life that resists the hegemonic system of the market society of the 21st century.

Key words: Protestant Reformation, justification by faith, fides Christi, justice.

Field of Specialization: Religion, Society and Culture. Line of Research: Religion and socio-cultural dynamics.

Tutor: Prof. Dr. Lauri Emilio Wirth

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ NO CONTEXTO DO SÉCULO XVI: CONTEXTUALIZAÇÃO E DELIMITAÇÕES ... 12

1.1 Século XVI: auge de uma caminhada ... 12

1.1.1 Localizando a Idade Média... 13

1.1.2 Na transição o surgimento de importantes práticas religiosas e conceitos teológicos 15 1.2 O Século XVI: contexto social e religioso ... 19

1.2.1 O contexto social ... 19

1.2.2 O contexto religioso ... 25

1.2.3 O princípio teológico facere quod in se est e a imitatio Christi ... 36

1.3 Martim Lutero neste contexto... 40

2 A BUSCA POR NOVAS REFERÊNCIAS PASTORAIS E TEOLÓGICAS ... 44

2.1 Movimentos pré-reformadores ... 45

2.1.1 A Via Moderna ... 45

2.1.2 João Wyclif e João Hus ... 49

2.2 Martim Lutero e o seu centro teológico: a Justificação pela Fé ... 51

2.3 “imitatio Christi” e “fides Christi”: respostas pastorais diferentes para uma mesma angústia de vida e fé ... 56

2.3.1 “imitatio Christi” ... 56

2.3.2 “fides Christi” ... 58

2.3.3 Comentários acerca da diferenciação entre imitatio e fides Christi e sua ressignificação em Lutero ... 65

2.4 Os escritos de Martim Lutero: Da Liberdade Cristã (1520) e Das Boas Obras (1520) .... 67

2.4.1 O escrito Da Liberdade Cristã, 1520 ... 67

2.4.2 O escrito Das Boas Obras, 1520 ... 73

3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO ... 79

3.1 Cuidados necessários ... 79

3.2 A Justificação pela Fé: algo mais que passividade ... 81

3.3 A Justificação pela Fé: perspectiva de atualização de diferentes autores... 85

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3.5 A Justificação pela Fé como fundamento das relações econômicas ... 95 3.6 A Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida: o próximo como critério ... 103 3.7 A Justificação pela Fé como fundamento de um modo de vida: movimento em direção à prática ... 112

CONCLUSÃO ... 120

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INTRODUÇÃO

A dissertação ora apresentada se propõe a analisar o tema da Justificação pela Fé no contexto sócio-político-religioso da Reforma protestante do século XVI. Dele quer extrair consequências para a relevância da Justificação pela Fé no contexto do século XXI.

Considera que a prática e espiritualidade da igreja cristã do século XVI estava alicerçada na prática de obras meritórias. Entre estas práticas destaca a imitatio Cristi, a compra de indulgências e a prática da ascese no monastério. Trata-se de estratégias pastorais e elaborações teológicas que, progressivamente, mostraram-se insuficientes para conquistar paz às almas, tranquilizar consciências atemorizadas pela morte e dignificar a vida no seu cotidiano. A exigência por reformas se fez perceber.

Martim Lutero, ao defender a Justificação pela Fé, apresenta uma nova estrutura de sentido para a vida cotidiana das pessoas: a justificação do ser humano é decorrente da ação salvífica de Deus em Jesus Cristo e não de obras meritórias. Para aquele contexto esta redescoberta significou um novo jeito da pessoa se relacionar com Deus e com a igreja. Deus não é mais compreendido como um juiz rigoroso, mas como aquele que se revela no caminho do amor. Cristo, na cruz, conquista a justificação que é atribuída ao ser humano pela fé, não conquistada por obras meritórias. Esta percepção define o primeiro capítulo da dissertação: a busca pelos fundamentos da Justificação pela Fé no contexto do século XVI.

Para alcançar este objetivo, faz uma rápida releitura histórica no sentido de encontrar as raízes da teologia que moldam a prática religiosa do século XVI, entre eles os conceitos de purgatório e inferno. Analisa também a disputa pela primazia entre os poderes secular e religioso. Relata aspectos do contexto da Idade Média que criam uma espiritualidade do medo e da morte: crises na agricultura, pestes e guerras. Some-se a este espectro o surgimento de um novo modelo econômico em substituição ao modelo feudal que também gera impactos sociais – novos ricos e pobres – e religiosos – esvaziamento da caridade em favor de obras meritórias – importantes. Evidencia-se, assim, um conjunto de fatores que afeta o corpus

christianum. A igreja e o papado, igualmente afetados e fragilizados, não conseguem oferecer

respostas pastorais que pudessem acalmar vidas e almas na nova conjuntura. O primeiro capítulo encerra situando Martim Lutero neste contexto e conclui: há um clamor por reformas tanto religiosas quanto sociais que a igreja é incapaz de conduzir.

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promove novos relacionamentos. Por primeiro intersubjetivos: o cristão assume as dores do outro, ajuda a carregar-lhe a cruz, torna-se empático no sofrimento – isto por prerrogativa cristã; segundo, da pessoa com a igreja e a sociedade da época: a obra meritória não justifica (é a fé) e os fundamentos transcendentes das diferenciações sociais são superados, pois todos/as passariam a ser iguais perante Deus. É uma redefinição da relação de Deus com o ser humano e da pessoa com seu próximo.

Em síntese, o segundo capítulo se preocupa com a materialização da Justificação pela Fé na vida das pessoas. O que é definido em tese ganha forma prática, vivencial. O capítulo inicia analisando o clamor por reformas sociais e a resposta da Igreja a estes clamores sintetizados na análise de movimentos religiosos como a Via Antiqua e a Via Moderna. Também de movimentos conhecidos como pré-reformadores, ou seja, vozes dissonantes do modelo religioso hegemônico como a dos franciscanos, de Wyclif e Hus. O texto culmina na apresentação do centro teológico de Martim Lutero: a Justificação pela Fé como resposta às angústias vividas e enfrentadas no contexto do século XVI. O ser humano é justificado pela fé, não por obras meritórias. Deste ponto em diante a pesquisa se ocupa com a materialização desta proposição. O que esta redescoberta significou na vida e contexto do século XVI? A pesquisa opta por estabelecer diferenciação entre as propostas e práticas pastorais da imitatio

Christi (imitação de Cristo: proposta teológico-pastoral da escolástica baseada no princípio

facere quod in se est [faz o melhor que podes]) e fides Christi (Fé de Cristo, ou seja, Cristo

vive em mim e molda meu ser e viver): a imitatio Christi prega a imitação de Cristo como caminho de salvação com a participação ativa do ser humano – a salvação é o alvo, o objetivo da pessoa que crê; a fides Christi assinala: Cristo vive em mim e, assim como a tinta e a luz ornam a parede, Cristo orna o ser e agir humano. Ou seja, a salvação é o fundamento e a pessoa justificada assume um modo de vida moldado pelo próprio Cristo que nela vive. A pesquisa busca evidenciar como esta fé de Cristo se mostra nos textos Das Boas Obras (1520) e Da Liberdade Cristã (1520) de Lutero. Estas são fontes primárias de Lutero e conduzem a reflexão teológica para além da dogmática, ou seja, na perspectiva da vivência da fé, de uma prática cotidiana da fé.

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Justificação pela Fé que, como doutrina, prioriza um saber que molda um comportamento subjetivo como fim último em detrimento de uma prática de cuidado em relação ao próximo, sendo a-histórica. Apresenta as pesquisas de atualização da temática que já existem e os caminhos apontados por autores como Altmann, Brakemeier, Hinkelammert, Westhelle e Tamez. Sintetiza estes caminhos e propõe a Justificação pela Fé como fundamento um modo de vida que se materializa num princípio que move a pessoa cristã: a fé de Cristo. Este caminho é assumido pessoal e comunitariamente na forma de uma ética pessoal e na definição de práticas pastorais que movimentam comunidades religiosas.

O conjunto do texto está baseado em pesquisa bibliográfica. Esta é constituída de fontes primárias (textos de Martim Lutero encontrados, especialmente, nas Obras Selecionadas, volumes 1 a 11 e textos do Livro de Concórdia); fontes secundárias – autores que comentam e dialogam com Martim Lutero (entre eles: Martim Dreher, Gerhard Brendler, Timothy George, Gerhard Ebeling, Marc Lienhard, Paul Althauss e Wilhelm Wachholz); e autores que ajudam a pensar a temática para o contexto do século XXI, dando preferência para autores latino-americanos (entre eles: Walter Altmann, Gottfried Brakemeier, Franz Hinkelammert, Elsa Tamez e Vitor Westhelle).

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1 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ NO CONTEXTO DO SÉCULO

XVI: CONTEXTUALIZAÇÃO E DELIMITAÇÕES

Propomos neste texto analisar o tema da Justificação pela Fé. Central na Reforma do século XVI, defendemos, ao longo do texto, que a Igreja institucionaliza o que em sua origem pretendia ser uma prática, uma vivência.

Para estabelecer este caminho voltamos à Idade Média e o fazemos sob a perspectiva da Reforma do século XVI. O conceito da Justificação pela Fé não é novo, mas ganha em Martim Lutero e na Reforma um grande impulso, sendo seu centro teológico. No primeiro capítulo desta dissertação queremos entender como se deram as definições teológicas que orientaram a vida religiosa na Idade Média e que foram contrapostos à Justificação pela Fé por Martim Lutero. Para alcançar este objetivo analisamos a dinâmica religiosa e social da Idade Média, ambiente da reforma.

1.1 SÉCULO XVI: AUGE DE UMA CAMINHADA

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1.1.1 Localizando a Idade Média

A literatura encontra dificuldades para definir precisamente o período no qual se localiza a Idade Média. Quando inicia e quando termina o período chamado de Idade Média? Quais critérios demarcam o início e o fim deste período?

Para fins desta pesquisa acolhemos a tese de Dreher (1994, p. 5-8) que localiza o início da Idade Média no ano de 529 d. C. quando um decreto do imperador cristão Justino ordenou o fechamento da academia platônica de Atenas. No mesmo ano Bento de Núrsia funda o primeiro mosteiro beneditino em Monte Cassino. Dreher afirma que a data é simbólica por estabelecer um novo saber: a sociedade pautada pela filosofia (por isso chamada de pagã por Hegel) passa a ser orientada pela teologia. Ou seja, são estabelecidas novas categorias do pensar e do conhecimento intermediadas agora pela teologia. Esta, por sua vez, é pautada pela encarnação de Deus em Jesus Cristo no mundo em que vivemos. Ora, um novo tempo, com novas exigências pede uma “atualização” da fé cristã. Na prática significa que todo o conhecimento da Antiguidade, inclusive a fé cristã, precisa ser traduzido para dentro dessas novas categorias. Os mosteiros irão desempenhar aqui um papel importante: é o lugar da transcrição, do estudo, da preservação, da tradução da Antiguidade para as novas categorias.

Se por um lado há uma nova referência de saber, por outro há também uma nova perspectiva política. Dreher (1994, p. 8s) lembra e dá importância ao fato de Roma ter sido saqueada por Alarico, no ano de 410 d.C.: Roma, o símbolo de poder e da ordem estabelecida, está fragilizada. Cem anos mais tarde não há mais césares ou Império Romano. Há um novo reino, o Reino Godo e o governante se chama Teodorico (493-526).

E a Igreja? Neste contexto Agostinho escreve “Cidade de Deus” com o objetivo de distanciar a Igreja do Império Romano sucumbido. Boécio também é importante representante deste período e vive a situação de ter sido criado no mundo helênico e escrever para um novo povo, os godos. Sua tarefa é “traduzir a Antiguidade para o mundo germânico. Com ele iniciou o processo de tradução também da fé cristã para o mundo germânico. A Idade Média foi um período de tradução.” (DREHER, 1994, p. 9).

Com este mesmo critério Dreher (1994, p. 5 e 10) demarca o fim da Idade Média:

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E continua: quando “a simples repetição e apropriação do antigo já não era mais suficiente” ante a nova configuração geográfica e de poder inicia-se uma nova época que, por sua vez, pede por novas categorias do pensar.1

Esta percepção fica evidente no aspecto político-econômico. Lindberg (2001, p. 55-57) afirma que o modelo político-econômico que regeu a Idade Média se esgota diante da economia monetária emergente. Esta gera novas condições e relações na sociedade: faz aumentar as tensões entre as cidades autônomas por desunião, dissensões internas ou suspeitas mútuas; o comércio que se expande cria novos ricos e novos pobres; as cidades medievais organizam as pessoas de forma mais igualitária, em perspectiva de relacionamento horizontal e não mais na forma de senhorio-vassalagem como no sistema feudal; com a Renascença ganha ênfase a noção de individualidade e de consciência individual (cada indivíduo tem responsabilidade ética com todo o corpo político); indivíduos e novos grupos conquistam riqueza e poder político por sua iniciativa, relativizando os valores antigos.

A moralidade tradicional era incapaz de fazer face ao desenvolvimento urbano e da economia baseada no dinheiro. ‘Na verdade, a tradição recebida era predisposta contra todos os principais elementos da nova economia: contra as cidades, contra o dinheiro e contra as profissões urbanas.’ A moralidade tradicional podia fazer pouco mais do que repetir, em volume mais alto, a máxima da Igreja primitiva que fora preservada como um objeto sagrado dentro da lei canônica: ‘Um mercador raramente ou nunca é capaz de agradar a Deus’. (LITTLE, Lester k. Religious Poverty and the Profit Economy in Medieval Europe. Ithaca : Cornell University, 1978, p. 35, 38, apud LINDBERG, 2001, p. 55)

Novas questões decorrentes da política e da economia emergente são colocadas e a cultura dominante, a referência até então, não consegue mais oferecer resposta satisfatória.

A nova moralidade do empreendimento, das contabilizações e do acúmulo – uma ética capitalista, e não protestante – contagiou a uma só vez as relações pessoais e as religiosas. Esse individualismo (...) estimulou uma sensação inebriante de libertação, mas também uma insegurança e terror mórbidos diante da perda desse self recém-descoberto na realidade da morte. (LINDBERG, 2001, p. 56).

O novo, ao não encontrar resposta nas antigas referências, gera ansiedade e insegurança nas pessoas:

Os limites psicológicos pelos quais a antiga cultura tinha buscado compreender a natureza do ser humano e predizer seu comportamento eram inúteis num momento em que ele já não se sentia inibido pelas pressões da comunidade tradicional (...) Doravante ele parecia jogado, desorientado, de volta para dentro daquele vazio do qual a cultura tinha o encargo de resgatá-lo. [Esta] (...) é a explicação imediata para

1 A questão da periodização da Idade Média em geral e da Reforma em particular não encontra consenso entre os

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a extraordinária ansiedade de todo esse período. Ela representava uma resposta inevitável à crescente incapacidade, por parte de uma cultura herdada, de revestir a experiência de sentido. (BOUWSMA, William J. Anxiety and the Formation of Early Modern Culture. In: Malament 1980, p. 230, apud LINDBERG, 2001, p. 56).2

A resposta principal para essas novas perguntas era esperada da Igreja. Mas esta é também incapaz de oferecê-la. A própria Igreja vive uma crise com o cisma ocidental3 e a teologia do conciliarismo.4 Quem deve oferecer segurança vive a insegurança. Demarca-se, assim, o final de uma era, pois as antigas categorias não ofereciam mais resposta satisfatória às novas perguntas e condições de vida.5

1.1.2 Na transição o surgimento de importantes práticas religiosas e conceitos teológicos

No aspecto prático-teológico surgem nesta transição/tradução da Antiguidade para a Idade Média importantes conceitos teológicos e práticas religiosas que permeiam toda a Idade Média. Elas orientam a vida de fé do povo e são centrais no movimento da Reforma do século XVI. Destacamos (DREHER, 1994, p. 20-32):

a) surgimento dos mosteiros como prática religiosa ocidental: o primeiro mosteiro beneditino foi fundado por Bento de Núrsia em Monte Cassino no ano de 529 d.C. Bento não

2 Para um estudo mais aprofundado disto que o autor chama de “extraordinária ansiedade” veja: DELUMEAU,

Jean. O Pecado e o medo: a culpabilização do ocidente (séculos 13-18). Vl. 1 e 2, Bauru: EDUSC, 2003.

3 A Igreja era também envolvida em disputas. A mais acirrada se dava com o poder político instituído. Quem

exercia a autoridade suprema: o representante religioso (papa) ou o político (imperador)? O exercício do supremo poder se alternou ao longo da história. Mas a igreja era também alvo de disputas internas. O Cisma Ocidental (1377-1417) é um dos momentos de maior baixa e crise do papado e é marcado pelo governo de dois e, mais tarde, três papas simultâneos. Veja a respeito: GEORGE, 1993, p. 33ss; WACHHOLZ, 2010, p. 23ss; SCHUMANN e JERKOVIC’, 1967, p. 11ss.

4 Conciliarismo é a proposta surgida para por fim ao Cisma Ocidental. Consistiu em declarar o concílio da Igreja

a suprema autoridade da Igreja. No ano de 1414 o Imperador Sigismundo convocou o Concílio de Constança que destituiu os três papas e elegeu um novo, Martinho V, colocando fim ao cisma. Veja a respeito: GEORGE, 1993, p. 36ss; LINDBERG, 2001, p. 62ss; WACHHOLZ, 2010, p. 26-28; SCHUMANN, e JERKOVIC’, 1967, p. 11ss. Jerkovic’ afirma (p. 12): “esse sucessivo fracionar-se da Igreja semeia de angústia a cristandade, com suas lutas entre papas e antipapas, entre papas e concílios.”

5 George (1993, p. 17-19) considera a Reforma uma era de transição entre o lento e gradual nascimento de uma

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idealizava o mosteiro com monges santos, mas lidava com seres humanos falíveis. Estes, todavia, tinham que estar submetidos à Regra: um conjunto de 73 artigos que ordenam a vida monástica beneditina. Destacam-se o trabalho, a pobreza e a oração. Mas também a estabilidade monástica (o monge fica a vida inteira no mosteiro, a não ser que seja expulso) e a paternitas: a obediência irrestrita ao abade, o pai. Os mosteiros e conventos se destacam ainda na preservação da cultura da Antiguidade através do trabalho dos copistas e na difusão da fé cristã pelas missões (as Ilhas Britânicas, por exemplo, foram missionadas por monges neste período);

b) na medida em que o Império Romano perde poder o papado vai aumentando o seu. É neste período que ganha força a tese de que o papa é o primaz dos bispos e sucessor de Pedro. Significativo é o nome do papa Leão Magno, o Leão I (440-461) que, no dia da sua ordenação, acentuou (apud DREHER, 1994, p. 24):

Assim como perdura aquilo que Pedro acreditou haver em Cristo, mantém-se igualmente o que Cristo instituiu em Pedro (...). São Pedro, mantendo a fortaleza recebida, não larga o leme da Igreja, o qual lhe foi entregue. Instituído antes dos demais, é denominado Pedra, declarado fundamento, constituído porteiro do reino dos céus, preposto como árbitro do que há de ser ligado e desligado por meio de juízos e decisões que hão de permanecer até mesmo nos céus, para que, pelos próprios mistérios destas denominações, cheguemos a conhecer qual é a sua união com Cristo.

Papado significa para ele o cuidado em amor para com toda a Igreja. Assim reafirma a primazia do bispado de Roma no contexto do conflito com Constantinopla. Neste mesmo período de afirmação e reafirmação, de busca por espaço e poder, firma-se uma segunda tese igualmente impactante para toda a Idade Média: a teoria dos dois poderes, firmada pelo papa Gelásio I (492-496). Ao se dirigir ao Imperador, descreve o relacionamento ideal entre Igreja e Estado (apud DREHER, 1994, p. 25):

Duas são augusto imperador, as (autoridades) pelas quais, principalmente, este mundo é governado: a santa autoridade dos bispos e o poder real. Destes ministérios o dos sacerdotes é de tanto maior importância, porque eles também terão que prestar contas pelos reis dos seres humanos no juízo divino.

É a caracterização de dois poderes, o temporal e o espiritual, ambos divinos. Mesmo com áreas de atuação delimitadas, Gelásio I afirma a primazia do poder espiritual por lidar com a salvação das almas, inclusive a do próprio imperador. Esta tese é consolidada quando no ano 800 Carlos Magno é coroado imperador pelo papa Leão III;

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purgatório se dá sob o papado de Gregório I (590-604). Gregório I é considerado o último papa romano e o primeiro medieval. Excelente administrador e negociador, conseguiu estabelecer tratados de paz com os langobardos (atacaram a Itália) e lançou as bases do poder econômico da Igreja. No seu pontificado a Igreja aumenta significativamente seu poder temporal. Mas para nosso interesse de pesquisa seu legado maior é outro: a criação da doutrina do purgatório. Discípulo de Agostinho, Gregório é reconhecido como quem era de perfil prático: enquanto Agostinho conjetura a existência de um lugar de purificação para os que morriam em pecado, Gregório já o tornou uma realidade na doutrina do purgatório. Dreher (1994, p. 27) diz que

Gregório não compreendeu a doutrina agostiniana da graça irresistível e da predestinação. Mais importante para ele foi explicar como podemos oferecer satisfação a Deus pelos pecados que cometemos, fazendo penitência. Nesta penitência, Gregório distingue entre arrependimento, confissão e penas, às quais segue a absolvição sacerdotal. Quando uma pessoa morre, sem ter feito penitência o suficiente, vai para o purgatório. Os vivos podem ajudar os mortos do purgatório, oferecendo missas em seu nome.6

d) neste período de transição merece destaque ainda outra compreensão teológica: a mística. Seu principal defensor foi Dionísio Areopagita7. Os escritos do Areopagita são importantes em duas questões principais: d1) trouxeram para o Ocidente um elemento da teologia e piedade do Oriente (a mística) para ser contraponto ao racionalismo8 como forma dominante de interpretação da realidade:

Com sua visão das ‘hierarquias’ sedimentou o pensamento latino da ‘ordo’, dando à hierarquia dimensão sagrada, que fundamenta a comunhão humana. Sua reprodução do conceito platônico dos ‘degraus’ a serem percorridos no caminho da perfeição teve importante papel na espiritualidade ocidental. Seus conceitos de purificação, da iluminação e da união descreveram o caminho percorrido pela alma e foram utilizados ainda no século XVI por Teresa de Ávila e por São João da Cruz, bem como mais tarde pelo pietismo. (DREHER, 1994, p. 32)

d2) voltou-se contra todo fazer teológico medieval marcado pela especulação racional ao nome de Deus. Dreher (1994, p. 32) escreve: “... não podemos dar nome apropriado a Deus, a não ser que ele próprio tenha revelado. (... Ainda assim) não expressam adequadamente quem Deus realmente é (...) Deus transcende toda a possibilidade humana”. Como legado é possível afirmar que a Idade Média aprendeu do Areopagita a reverência ao divino no fazer teológico.

6 Veja informações gerais objetivas sobre o tema em: GEORGE, 1993, p. 30ss; WACHHOLZ, 2010, p. 19-20.

Acerca da prática da Igreja e do imaginário popular sobre pecado, perdão e inferno veja BRENDLER, p. 101ss.

7 Trata-se de uma pessoa que viveu por volta do ano 500, contemporâneo de Boécio. Esta pessoa se considerava

discípula de Paulo (o que deu importância aos seus escritos) e adotou o nome de Dionísio em alusão ao convertido de Paulo após discurso em Atenas (Atos 17.34). Sob o pseudônimo “Dionísio Areopagita” vários escritos nos foram preservados: “Sobre os nomes de Deus”, “Sobre a hierarquia celeste”, “Sobre a teologia mística”. (DREHER, 1994, p. 31).

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Um adendo precisa ser feito no que diz respeito à relação entre os dois poderes acima citados (espiritual e secular), pois esta relação nem sempre foi pacífica. Como exemplo pode ser citada a relação entre o imperador Carlos Magno (768-814) e o papa Leão III. Conforme Dreher (1994, p. 37-40), sob o regime de Carlos Magno a Europa foi cristianizada à força. Quem não se submetia a Cristo (diga-se a Carlos) era morto. No ano de 782 quatro mil e quinhentos saxões foram mortos. Desta forma expandiu o império e a Igreja por grande parte da Europa. Ele se autocompreendia rei e sacerdote e por isso intervia nas questões de fé. Negava ao papa uma existência autônoma plena. O papa Leão III, por sua vez, havia sido derrubado do cavalo durante uma procissão por seus adversários. Ambos, papa e adversários, buscaram a ajuda de Carlos Magno. Este se dirigiu a Roma para julgar a questão. Ali lhe foi apresentado um cânone no qual se afirmava que um papa não podia ser julgado.9 Por isso absolveu o papa. Ao participar da missa de Natal daquele ano (ano 800) também em Roma, concedeu permissão para que o papa o coroasse imperador. Permissão da qual logo se arrependeu, pois isto chancelou a união entre Igreja e Estado e consolidou a existência de dois poderes (ao menos do ponto de vista de Leão III): o poder espiritual na mão do papa e o secular na mão do rei. Com primazia para o papa, pois ele coroa o rei. Esta disputa entre poderes se mantém ao longo dos séculos: ora vivem perfeita harmonia, ora um se impõe, ora outro.

Este fato evidencia que na Idade Média a Igreja impõe, gradualmente, o seu poder até reinar quase que soberanamente. Outro aspecto que reforça a suspeita de que gradualmente o papa e a Igreja aumentam seu poder tanto religioso quanto temporal é a doutrina da penitência e da indulgência: só a Igreja pode conceder indulgências. A compreensão é a de que o céu foi institucionalizado e o seu maior representante é o papado, sucessor de Pedro. (DREHER, 1994, p. 44-46).10 O poder da Igreja aumenta tanto que ela exerce função de Estado quando convoca e propõe cruzadas. Recruta seus “soldados” e promete indulgência plena a quem morrer na batalha. Conforme Dreher (1994, p. 56-61) por detrás do pretexto da fé está a conquista de bens e de poder. Isto é possível porque a Igreja assume para si o direito jurídico, o mesmo instrumental que o Estado usa para se relacionar com o mundo. Consolida-se, assim, o poder secular da Igreja (DREHER, 1994, 62-65). Todo este agir da Igreja é justificado pela teologia escolástica. A Igreja passa a fundamentar a sociedade e o mundo: “Sua doutrina e estabelecimentos jurídicos era a garantia de que Deus determinava a ordem do mundo, não se admitindo qualquer dúvida em relação a essa certeza”. (DREHER, 1994, p. 100).

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1.2 O século XVI: contexto social e religioso

No século XVI vive-se a consolidação do que é chamado de Corpus Christianum: comunidade política cristã, ou seja, não se concebia a separação entre religião e vida secular. A pertença à Igreja era decisão do rei e do imperador. O povo aderia à expressão de fé do seu rei. A definição moderna de conversão e a adesão religiosa voluntária não eram conhecidas da época. Todas as pessoas simplesmente faziam parte da Igreja. Fora da Igreja estavam os hereges e por isso eram perseguidos pela inquisição.

O cotidiano era perpassado de significado religioso. Era ritualizado. (...) A pessoa nasce, vive e morre na religião. Batismo, casamento, enterro eram regras. Nesse âmbito, morte e juízo, céu e inferno, purgatório e paraíso faziam parte do cotidiano. (DREHER, 2007, p. 14-17, apud WACHHOLZ, 2010, p. 13).

Neste contexto a religião tem um significado social. Ela é parte da sociedade.

Creio que se pode afirmar que, na Pré-Modernidade, a religião é o ar que se respira. A pessoa nasce, vive e morre religião. Não se concebe vida sem batismo, casamento e enterro cristãos. A religião está ligada organicamente à sociedade. (DREHER, 2007, p. 16)

Mais do que parte, através da Igreja a religião fundamenta a sociedade. Dela as pessoas esperam anúncios seguros seja para esta vida, seja para a vida por vir. Mas os anos anteriores e posteriores à Reforma são anos de grande efervescência religiosa.11 Para alguns de crise.12 Nesta efervescência a Igreja encontra dificuldades para oferecer respostas teológicas e práticas seguras às pessoas. Instala-se medo e insegurança. Quais são essas circunstâncias contextuais imediatas que geram esta dificuldade e medo e que, por extensão, podem ser acolhidas como impulsionadoras da Reforma?

1.2.1 O contexto social

Embora no cotidiano das pessoas o social e o religioso não pudessem ser separados, analisamos aspectos que, pela pesquisa, podem hoje ser classificados tendo sua origem em um ou outro. Analisamos, a seguir, alguns desses aspectos do contexto do século XVI.

11 Lienhard (1998, p. 25) fala em “quadro multicolorido da piedade no alvor do século XVI”.

12 Conforme George (1993, p. 25), Johan Huizinga publicou estudo no qual afirma ser a baixa Idade Média

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a) Estratificação social: a existência de diferenciações sociais em si não é nenhuma

novidade. Príncipes, nobres, plebeus, clero, fiel, ... existiam há muito. Mas o novo está em que agora é perceptível uma estratificação social que ultrapassa estas categorias “sanguíneas” e é definida pelo econômico. Esta estratificação social fica evidente na trajetória de vida de Lutero. Conforme Lienhard (1998, p. 17-21), Lutero viveu a maior parte de sua vida em pequenas cidades que não tinham significativa influência nas questões do império. Nasceu entre os camponeses13; viveu entre ricos comerciantes em Erfurt quando ficou hospedado na casa das famílias Cotta e Schalbe – eram famílias abertas à cultura e questões religiosas; conheceu a camada média das cidades formada por artesãos e pequenos empreendedores que aspiravam ascensão social. O pai de Lutero fez parte deste grupo, tendo sido dono de mina e eleito para o conselho de representantes da cidade com a função de supervisionar a administração municipal (1491)14; Lutero era amigo de funcionários que administravam o principado15. O estudo do direito era um caminho que conduzia para este grupo e para a ascensão social. O pai de Lutero, como conselheiro da cidade, desejava para Lutero este caminho. Lutero também teve contato com as camadas baixas da sociedade formada por operários, diaristas e empregados domésticos.

A caminhada de vida de Lutero, vista pela ótica social, aponta para a estrutura da sociedade. Lienhard (1998, p. 21) afirma que esta estratificação social gerava tensões. Uma destas tensões Lutero experimentou no levante que aconteceu entre 1508 e 1510 na cidade de Erfurt em consequência do aumento de impostos indiretos16. Conforme George (1993, p. 25) estes movimentos já são bastante frequentes do ponto de vista político, econômico, social e religioso por todo o período da baixa Idade Média.

b) Autonomia de cidades e principados: para Lienhard (1998, p. 17s) e Lohse (1983, p.

14s) a autonomia de cidades e principados são um sinal evidente da incapacidade do Sacro Império Romano Germânico de manter a unidade. É crescente a autonomia de principados seculares, principados eclesiásticos e cidades livres. O Sacro Império Romano Germânico tem

13 A família dos pais de Lutero era dona de terras e por isso estava em melhor situação social do que os

camponeses do sul e do sudoeste da Alemanha onde ainda era difundido o sistema de servidão. (LIENHARD, 1998, p. 20-21). Veja Também BRENDLER, 1983, p. 9ss.

14 Veja também BRENDLER, 1983, p. 9ss.

15 Hoje chamamos este grupo de funcionalismo público. Espalatino, amigo de Lutero, é um deles.

16 Nesta época aconteceram vários levantes sociais. Para Brendler (1983, p. 40s) as causas desses levantes estão

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cerca de 350 entidades mais ou menos autônomas, maiores ou menores, com maior ou menor influência política, coordenadas por um imperador eleito. A unidade do império era dificultada porque estas cidades/territórios autônomos não queriam perder espaço e prestígio, pelo contrário, queriam aumentá-lo. Nas épocas de eleição de novo imperador os príncipes eleitores negociavam vantagens e pediam altas quantias pelo seu voto. Mas também porque as diferenças internas eram muitas. Iniciativas de reforma ou políticas comuns não vigoravam. Foi assim que o projeto de imposto único para o império não vingou ou a ideia de um exército central também não se sustentou. A negociação entre imperador e príncipes pela unidade era constante.17 Mas não foi possível. Assim, em 1555 o movimento da Reforma foi reconhecido legítimo em sua expressão religiosa com a paz de Augsburgo.18 Aqui se consolidou o princípio cuius régio eius religio (o governante determina a religião do território) segundo o qual “conselhos municipais e a nobreza decidiam se seus territórios seriam católicos ou luteranos” (GASSMANN ; HENDRIX, 2002, p. 11). O fator religião também não era mais sinônimo de unidade do império.

c) O capitalismo emergente: além da estratificação social e da disputa por poder, a

sociedade do século XVI também é marcada pela continuidade da gestação de um novo modelo econômico que hoje chamamos de capitalismo.19

Para Brendler (1983, p. 11-13)20 a mudança está baseada na passagem de uma economia natural (pagamento feito com trabalho ou produtos) para uma economia financeira (pagamento feito em dinheiro). Esta mudança é percebida dentro do sistema feudal como para além dele.21

Um dos pontos de partida para o impacto e fortalecimento do novo modelo econômico é a questão de herança familiar: pela prática vigente quem herda as terras da família é o filho mais novo. Pela sucessão de heranças e divisões, as terras para a produção agrícola diminuem de tamanho e não dão conta de sustentar toda a família (pais, irmãos, sobrinhos etc). Pelo convencionado socialmente, o direito de herança é do irmão mais novo. Os irmãos mais

17 Com base nos mesmos autores, registramos que Carlos V, imperador no período da Reforma, tinha uma

grande concentração de poder em suas mãos. Mesmo assim precisava da ajuda financeira das casas comerciais (família Fugger, por exemplo) e negociar constantemente com os príncipes. Religião e guerra eram dois temas constantes da pauta e exigiam recursos e força militar. A não acontecida guerra com os turcos – que estavam à porta de Viena em 1529 – e o movimento da Reforma se localizam aqui. No caso da Reforma, o melhor exemplo são as dietas e salvo conduto conquistados em favor de Lutero.

18 Gassmann e Hendrix (2002, p. 193) definem a paz de Augsburgo (1555) como “acordo político da Reforma

alemã que outorgou reconhecimento legal aos adeptos da Confissão de Augsburgo (luteranos).”

19 Wachholz (2010, p. 22 e 23) afirma que a mineração, a descoberta da pólvora e a economia não são somente

características da sociedade do século XVI, mas impulsionadores do movimento da Reforma.

20 Temos este autor como centro da reflexão deste tema. Veja também: FISCHER, 2006, p. 12ss.

21 O capitalismo moderno é uma construção de muitos anos e motivado por diversos fatores. Defendemos, com

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velhos precisam trabalhar para o irmão mais novo – quando há terras em quantidade suficiente – ou encontrar uma alternativa de vida e economia. Gera-se, por isso, uma mão de obra excedente que vai parar nas cidades. Uma parte desta mão de obra excedente é absorvida pelas minas de minério, cobre e prata especialmente22. Na medida em que aumenta a demanda por estes minérios também aumentam as dificuldades em consegui-los. Aqui se intensifica uma nova relação econômica.

Surgem as sociedades que financiam os mineiros (a mão de obra) e recebem como pagamento o minério “in natura”. Cria-se uma dinâmica comercial nova, diferente da relação feudal: as sociedades antecipam recursos financeiros e tecnológicos para o mineiro; este explora o minério e o vende “in natura” às sociedades que o beneficiam e comercializam. O resultado é: alguns mineiros tornam-se donos de mina e conquistam influência social;23 muitos outros passam à condição de devedores das sociedades comerciais porque não conseguem produção suficiente para honrar os compromissos assumidos.

Por esta dinâmica comercial as sociedades comerciais enriquecem e se tornam grandes potências econômicas da época – a mais conhecida é a dos Fugger. A estratégia principal é não assumir riscos para não ter perdas. Os riscos ficam somente com os mineiros. Para evitar falência os mineiros precisam trabalhar muito, viver com pouco dinheiro e agir no sentido de diminuir os próprios riscos. Ou seja, aqueles que seguem a receita de austeridade (como esta fórmula é conhecida no capitalismo moderno) vencem economicamente.

Forma-se aqui uma nova classe que é chamada de burguesia emergente: o status social se dá pelo avanço do trabalho, da conquista e acúmulo de riquezas, não mais pela pertença a uma família nobre. O pai de Martim Lutero, Hans Luder, se insere nesta categoria.24 Ele deixa de ser uma família agrícola para ser uma família de empreendedores pré-capitalista.

Este sistema emergente, e que ganha forças, gera outras mudanças nas relações sociais: há um fortalecimento das cidades (o material humano ali se instala); os senhores feudais também assumem esta dinâmica e passam a exigir dinheiro (além de produtos e trabalho) de quem está abrigado no feudo; a Igreja também se beneficia dele. Para esta última relação queremos olhar agora.

22 Conforme Wachholz (2010, p. 22) grande parte da prata é usada para cunhar moedas e assim facilitar a

revolução monetária.

23 Conforme Lienhard (1998, p. 20) o pai de Lutero “conheceu momentos difíceis de endividamento, tendo

porém alcançado afinal um relativo bem-estar.” Em 1491 Hans Luder veio a ser um dos 4 conselheiros da cidade de Mansfeld. Estes tinham a tarefa de supervisionar a administração municipal.

24 Febvre (2012, p. 29) afirma que o caminho da ascensão social era o que o pai desejava ao seu filho Martim

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d) A Igreja e o capitalismo emergente: ao conquistar espaço na sociedade da época,

também a Igreja se deixa encantar por este novo sistema econômico e passa a fazer parte da rede de relacionamentos econômicos. Lohse (1983, p. 14-19) nos situa bem neste sistema a partir da influência das grandes casas comerciais. Afirma que tanto a eleição do imperador Carlos V do Sacro Império Romano Germânico como a unificação dos bispados de Albrecht Von Mainz25 foi por elas financiado. No caso da unificação de bispados o interesse é econômico e de poder, não religioso. Seu perfil é mais de líder terreno do que guia pastoral. Ora, diante das dívidas com as casas comerciais, da crescente necessidade financeira do papado e também dos bispados, a Igreja precisa de uma estratégia de arrecadação financeira. Contribuições, impostos e venda de cargos fazem parte desta estratégia. Mas também a prática de mandar rezar missas e a venda de indulgências. Especialmente destas últimas vêm os recursos que fazem a administração eclesiástica ser rentável.26

Percebemos, assim, que a Igreja27 assume essa nova relação econômica. Ela nada inventa, apenas limita-se a seguir a tendência e prática dos senhores feudais. Não se propõe a ser espaço de resistência ou discernimento. Pelo contrário, por necessidade de dinheiro (para a manutenção das Igrejas, da Cúria e para as guerras de defesa do território) ou por luxo e bel prazer das autoridades religiosas justifica teologicamente o sistema28. As autoridades eclesiásticas, aliás, são questionadas por seu comportamento em relação ao dinheiro. Francisco Ferrer escreve sobre os bispos da época:

São altivos, cortesãos, vaidosos, amigos do luxo e onzeneiros; medem a fé pela bitola das coisas terrestres e acomodam-na às suas rendas. Cuidam pouco de suas Igrejas; raras vezes aparecem entre os que dão pouco; não têm amor de Deus, nem castidade; a missa e a prédica são aquilo de que menos se ocupam. Sua vida inteira não passa de um escândalo. (citado por ROMAG, Dagoberto. Compêndio de História da Igreja, Vol II: A Idade Média. Petrópolis : Vozes, 1950, p. 299-300, apud SCHUMANN ; JERKOVIC’, 1967, p. 17.)

25 Conforme Lohse, Albrecht von Mainz recebeu autorização concedida por bula papal no 5. Concílio de Latrão

(1512-1517) para a unificação dos bispados pela quantia de dez mil ducados.

26 O dinheiro das indulgências tinha muitos destinos. Um deles era a construção da Basílica de São Pedro, em

Roma. Lutero (ObSel, 1.26 [1517]) denuncia, na tese 50: “Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro do que edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas” e 51: “Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seu dever – a dar do seu dinheiro àqueles muitos de quem alguns pregadores de indulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fosse necessário vender a Basílica de S. Pedro.” Veja também GARCÍA e DOMÍNGUEZ, 2008, p. 30.

27 A Igreja aqui entendida como instituição eclesiástica. As demais contradições da sociedade também a

perpassam, o que faz dela solo fértil para germinar a Reforma que ultrapassa o aspecto religioso.

28 Dreher (1994, p. 44-46) afirma que uma das funções da teologia escolástica era justificar teologicamente o

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e) A crise e as pestes criam uma espiritualidade pautada pela morte: conforme

Wachholz (2010, p. 14-19)29, a fome vem a ser um dos grandes problemas da Idade Média. Por diferentes razões não há alimento. Se nos séculos XII e XIII o aumento da produção de alimentos elevou o contingente populacional, no século XIV, com a grave crise na agricultura e um sempre maior número de pessoas na cidade por conta da industrialização (o que diminui a mão de obra no campo), a fome se instalou. Por volta de 1320, no norte da Europa, sofria-se com fome por conta de enchentes, invernos rigorosos e secas. No sudeste da Alemanha o registro é de tremores de terra e enxames de gafanhotos. Há registros de canibalismo por causa da fome.

Além da fome, doença e peste ameaçavam a vida. Todas eram compreendidas como castigo de Deus. Wachholz (2010, p. 15) escreve:

Fraca e mal nutrida, a população foi atingida por surtos de febre tifóide e da terrível morte negra: peste bubônica, pneumonia, septicemia (germes no sangue). (...) Cerca de 30% da população europeia vieram a morrer. (...) As pessoas não sabiam a razão da peste. Concebiam-na como punição de Deus pelos pecados da humanidade.30

Guerras igualmente fazem parte da história da humanidade. Conforme George (1993, p. 27) a invenção do canhão de pólvora transformou a guerra em nova selvageria. Gerou, “por outro lado, a obsolescência de uma classe inteira – a dos cavaleiros” (WACHHOLZ, 2010, p. 22), o que aumentou a insegurança social.

O povo sofre. Na dor é lembrado da dor de Cristo na cruz, seu suplício e sofrimento, bem como do culto à Virgem das Dores. Ou seja, a mensagem de que no sofrimento a pessoa se segura no sofrimento de Cristo. (DELUMEAU, 1989, p. 63-64).

Medo de morrer e pregação da Igreja no sofrimento fazem nascer uma nova espiritualidade. Esta tem, como um de seus fundamentos, a concepção de que tudo o que está acontecendo é castigo de Deus contra a humanidade.31 Este castigo só é amainado com a prática de penitência. Esta concepção, como vimos, fez nascer a doutrina das indulgências e do purgatório. As pessoas compravam indulgência e mandavam rezar missas com o objetivo de garantir a salvação (fosse sua ou de alguém no purgatório). O conceito da obra como ex

29 Wachholz fundamenta sua pesquisa em GEORGE (1994), LINDBERG (2001), DELUMEAU (1989) e

FEBVRE (apud GEORGE, 1994).

30 Embora amainada, a peste perdurou até os dias da Reforma, atingindo Wittenberg em 1527. Como a

compreensão da origem era teológica, procissões e penitências sangrentas eram realizadas para expiar o pecado. (WACHHOLZ, 2010, p. 15). Em Febvre (2012, p. 231) encontramos a informação assim: o ano teria sido 1521 e a preocupação maior de Lutero salvaguardar lideranças. Ao escrever para Espalatino teria dito: “suplico-lhe, que Felipe (Melanchton) se vá caso venha a peste. Há que preservar um líder assim e que não pereça a Palavra que Deus confiou a ele para a salvação das almas.”

31 Delumeau (1989, 60-61) não considera que o sentimento de dor era algo isolado ou de uma determinada classe

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opere operato32 (a obra opera por si mesma) era largamente difundido e sustentava a prática

da indulgência. A Igreja soube se adaptar a esta nova teologia e também à prática do mercado emergente. Este medo da morte na Idade Média é um dos panos de fundo e propulsores da Reforma. Aproximamo-nos assim do próximo ponto: o contexto religioso. Alguns pontos mencionados serão retomados sob a ótica religiosa.

1.2.2 O contexto religioso

Neste Corpus Christianum também a Igreja tem o seu papel. Sua postura e prática religiosa dão sentido e estrutura à sociedade da época. Analisamos brevemente o contexto religioso do século XVI. Optamos por fazê-lo através de dois caminhos principais: o caminho institucional e o caminho do cotidiano – a prática religiosa na vida do fiel.

a) A Igreja Institucional: constatamos que a Igreja é a base de sustentação da sociedade

medieval e que, em diferenciação à Antiguidade, a teologia (não mais a filosofia) pauta a vida religiosa e social. O corpus Christianum é sustentado pelo poder e força da Igreja em conjunto com o poder secular. Na Igreja o papa é, constantemente, reiterado como sucessor de Pedro e arroga para si a primazia sobre o poder secular. Esta ideia é conhecida como

curialismo, ou seja, “uma teoria de governo eclesiástico que investia de suprema autoridade,

tanto temporal quanto espiritual, as mãos do papado.” O auge deste governo está no papa Inocêncio III (1198-1216). Este definia que “na hierarquia do ser, o papa ocupava uma posição intermediária entre o divino e o humano – ‘inferior a Deus, porém superior ao homem’.” Esta soberania papal foi reiterada pelo papa Bonifácio VIII na bula Unam Sanctam (1302) que declara ser “necessário que toda criatura humana esteja sujeita ao Pontífice Romano.” Portanto, um período de grande força e poder do papado. (TIERNEY, Brian. The Crisis of Church and State, 1050-1300. Englewood Cliffs, N. J. : Prentice Hall, 1964, p. 13-14 e 189, apud GEORGE, 1993, p. 34s).

Mas essa política curialista foi reconhecida como ineficaz por Dante com consequências danosas para a Igreja (Purgatório, Canto XVI, 127-129, p. 174, apud GEORGE, 1993, p. 36):

32 Conforme Gassmann e Hendrix (2002, p. 88) esta fórmula surge para combater a reivindicação donatista “de

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“visto que a igreja procurou ser dois governos ao mesmo tempo, ela está afundando muito, conspurcando tanto seu poder quanto seu ministério.” O poder espiritual, o intermediário entre Deus e as pessoas, dá sinais de estar em crise.

Conforme George (1993, p. 32-37), ao papado de Bonifácio VIII segue-se um período de grave declínio institucional. A Igreja foi governada por 70 anos a partir de Avinhão, o chamado Cativeiro Babilônico (1309-1377). Ao cativeiro segue-se o período conhecido como Cisma Ocidental (1378-1417) quando dois e, mais tarde, três papas foram declarados cabeça da Igreja. Na crise a ânsia por reformas ganha intensidade. A proposta, neste momento, é a teológica conciliar33. George (1993, p. 36) escreve:

O espectro do corpo de Cristo dividido em obediência a três papas, cada um proferindo anátemas e interditos aos outros dois, tornou urgente o apelo por uma reforma. Dessa crise, surgiu a visão conciliar da igreja, que afirmava a superioridade dos concílios ecumênicos sobre o papa no governo e na reforma da igreja.

A pergunta que permanecia era: quem tem autoridade para convocar um concílio? Houve quem defendesse a ideia de que qualquer cristão o poderia em situação de emergência. Mas foi o Concílio de Constança (1414), convocado pelo Imperador Sigismundo, que destituiu os três papas eleitos e elegeu um novo – Martinho V – colocando fim ao Cisma Ocidental. A instituição do papado era salva. Porém, a primazia do concílio ao papado nas decisões da igreja não durou muito. Em 1460 o papa Pio II edita a bula Execrabilis, reafirmando a supremacia do papado e segurando nas mãos deste a autoridade para convocação conciliar.

Contribuiu para este fim a reafirmação de poder tanto da Igreja quanto do Estado. Dreher (1996, p. 14) afirma que as descobertas de novos continentes pelas grandes navegações gerou uma disputa pelo direito sobre as novas terras descobertas entre os reis de Espanha e Portugal. O papa Alexandre VI (1492-1503) intermediou este diálogo e os cooptou estabelecendo o direito de cada qual no Tratado de Tordesilhas (1494). Para nossa pesquisa é importante perceber que, desde esse momento, a proposta do conciliarismo não era mais interessante para os reis, pois já tinham do papa o que precisavam: a autorização para tomar posse das terras e de suas riquezas, ampliando seus poderes. A cooptação dos reinados revela novamente o importante papel do poder secular na reforma: por um lado os reis e príncipes eram resistência ao clero que tinha imunidade jurídica; por outro não abrem mão da Igreja quando recebem e dão apoio, recebem parte do dinheiro das indulgências e podem criar

33 Apontamos aqui para este período como sendo um sintoma de uma igreja em crise. As forças que sempre

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paróquias e indicar o pregador que será alguém a defender os seus interesses e trabalhar na perspectiva de manter o status quo.

De fato a teologia conciliar não se implantou. Mas também não foi eliminada do imaginário popular. O poder da Igreja estava relativizado. Sempre que havia uma contenda com o papa o concílio era invocado. Foi também o caso de Lutero quando apelou para um concílio independente em terras alemãs. Conforme Schumann e Jerkovic’ (1967, p. 13), a ideia de um concílio livre e independente aterrorizava Roma. Sinal de que a solução se impunha pela força e autoridade, mas não suprimiu o desejo de reformas por parte das pessoas.

Com a superação do conciliarismo e as concessões feitas aos reis e príncipes ganha força a ideia das Igrejas Territoriais, sobretudo na Alemanha. Os papas, para vencer o conciliarismo e reencontrar reconhecimento junto aos príncipes, imperadores e reis, foram concedendo a estes poderes sobre a própria Igreja. Dreher (1996, p. 14-15) afirma que estas concessões tornam a igreja sempre mais dependente do poder secular. Este poder podia ser exercido pelo príncipe, pelo rei ou por um conselho. A concepção de que o príncipe territorial fosse também bispo tem aqui sua mais pura expressão. A consequência é que poder espiritual e secular não podem ser claramente distinguidos. O interesse maior não era teológico, mas solidificar posições políticas e de poder. Esta percepção é importante na organização do pensamento religioso do século XV e XVI. Dreher (1996, p. 15) conclui:

Assim, o príncipe passou a controlar as ofertas do povo. Os decretos episcopais só tinham validade após a autorização real. A pregação de indulgências só era permitida caso o príncipe tivesse parte nos lucros auferidos. As intervenções de príncipes e cidades, que vão possibilitar a introdução da reforma luterana e da calvinista, a criação da Igreja Anglicana ou a introdução das decisões de Trento, não são novidades surgidas no século XVI. São anteriores. Nas cidades, uma burguesia muito consciente de seu poder lutou contra os direitos do clero, especialmente contra suas imunidades fiscais e isenções jurídicas. Por outro lado, à medida que buscava diminuir o poder do clero e introduzir um governo civil, a cidade não desistia de controlar a atividade eclesial. As cidades criaram paróquias, mas se reservaram o direito de nomeação dos pregadores. Também os conventos e suas propriedades passaram a ser administrados pela cidade. Por isso não foi nada difícil fechar mais tarde os conventos e assumir seus bens.

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não é ruim, pois portas para um processo de reflexão e reordenamento do religioso na sociedade da época se abrem. Nisto a reforma contribuiu.

Seja feita ainda uma breve observação (na verdade uma constatação) em relação às instâncias de poder (secular e religioso): rivalizam quando lhes é interessante ter a primazia do poder; aliam-se quando o poder lhes confere os benefícios desejados.

b) a prática religiosa: a nova condição da Igreja junto ao poder secular (que privilegia o

aspecto do poder e do econômico em detrimento do teológico) tem consequências para a vida de fé das pessoas. A fragilidade da instituição eclesial e a pouca ênfase espiritual/pastoral reflete-se como insegurança na vida das pessoas. A igreja, todavia, não foi relativizada pelas pessoas, ao contrário. Apesar das não respostas, a época era de grande piedade, sobretudo no modo de ser das pessoas. Faltava clareza e segurança teológica, mas não fé às pessoas (FEBVRE, Lucien. The origin of the French Reformation: a bably-put question? In: BURKE, Peter (ed). A new kind of History. Nova Iorque : Harper and Row, 1973, apud GEORGE, 1993, p. 33). A busca por segurança em meio à ansiedade e medos impulsiona a prática religiosa e o clamor por reformas. Neste contexto é que surgem movimentos pré-reformadores. Este “emaranhado” queremos analisar brevemente. Propomos fazê-lo discutindo conceitos como ansiedade e medo; a prática da penitência e a prática de obras meritórias.

1) Ansiedade e medo: George (1993, p. 25ss) afirma que, ao contrário do que muitos

historiadores afirmam acerca da baixa Idade Média, ela não foi uma época de trevas, mas de efervescência. Os dois séculos anteriores à reforma foram sim de desmandos políticos e religiosos, mas também de apelos por reforma e o surgimento de novas formas de piedade leiga, interesse por relíquias, movimentos pré-reformadores etc. E conclui (p. 25): “De fato, vemos um sólido crescimento no poder e na profundidade dos sentimentos religiosos até a época da Reforma.” George concorda com Paul Tillich (A coragem de Ser, 1952, p. 57-63) quando afirma que o fim da Antiguidade clássica foi marcado pela ansiedade ôntica, uma inquietação profunda com o destino e com a morte; o fim da Idade Média pela ansiedade da culpa e da condenação e abriu caminho para o fim da Era Moderna se manifestar na ansiedade espiritual do vazio e da falta de sentido. A ressalva de George é: estas ansiedades, porém, não são características de um período, mas todas são encontradas também no fim da Idade Média na literatura, na arte e na teologia. E o exemplifica na “saga” de Lutero em busca de um Deus misericordioso como exemplo dos medos e ansiedades da época.34

34 Febvre (2012, p. 31-37) dá destaque para estas angústias na vida de Lutero e que seriam fruto de uma

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O maior dos medos é o da morte, como vimos. As causas são várias: fome, doenças, desastres naturais e guerras mostram por todos os lados o terrível rosto da morte. Esta percepção e angústia com a morte era reproduzida na Igreja e na arte. George (1993, p. 27) descreve a existência de xilogravuras com esqueletos e sepulturas “adornadas com imagens de cadáveres nus, com bocas escancaradas, punhos cerrados e entranhas devoradas por vermes”. A xilogravura mais popular era a “dança da morte” – a morte na forma de esqueleto dançante que traga suas vítimas e ninguém (rico, pobre, nobre, plebeu, ...) pode escapar dela. Muitas xilogravuras tinham uma ampulheta que lembrava as pessoas: a vida passa rapidamente.

Também nos sermões o tema morte era usual. Exemplo é o gesto de João Capistrano que levou uma caveira para o púlpito e advertiu: “olhem e vejam o que resta de tudo aquilo que uma vez lhes deu prazer, ou que outrora levou-os a pecar. Os vermes comeram tudo.” (SEIDLMAYER, Michel. Currents of Medieval Thought, 1960, p. 126, apud GEORGE, 1993, p. 27).

Como este medo da morte se tornou tão presente na vida das pessoas? Não bastasse o fato da ameaça da morte em si, também o aspecto religioso nos ajuda na compreensão do medo que se cria em torno dela. A análise da prática da penitência da época ajuda nesta compreensão.

2) Prática de penitência: a peste ocorria repentinamente e não tinha explicação

plausível. A morte de alguém saudável se dava em questão de dias ou mesmo de horas. Sua origem e razão eram desconhecidas. Talvez por isso mostrava-se tão ameaçadora no imaginário das pessoas. O terror da morte iminente e horrível causava o colapso dos costumes e das normas, provocando mútuo abandono familiar de pais e filhos. Neste contexto aterrorizador e sem explicação aparente, “a peste foi percebida em grande escala como a punição de Deus pelos pecados da humanidade.” (LINDBERG, 2001, p. 43).35 Se todos os males vivenciados e que aterrorizam almas e vidas são oriundos da ira de Deus, a pergunta que se segue é: como aliviar e aplacar esta ira divina? A resposta passa pela prática da penitência.

sua vez, constata que a educação recebida foi sim rigorosa, mas “não é nada evidente que tudo isso fosse muito diferente da educação comumente dispensada à época. Quando muito, pode-se admitir que a criança era particularmente sensível.”

35 Conforme também WACHHOLZ, 2010, p. 15. Também para Lutero a sociedade (corpus christianum) está

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Dreher (1994, p. 41-46) afirma que a penitência surge como formulação dogmática na Idade Média. Em seu trabalho de ‘reconstrução’ desta teologia e prática, a divide em quatro momentos36:

a) a prática da Igreja Antiga: nas comunidades da Igreja Antiga o processo de reconciliação era comunitário: ao cair em pecado grave a pessoa era excluída da comunidade e, após confissão pública, novamente acolhida de forma plena. Ao lado da confissão pública havia, para quem quisesse e espontaneamente, a confissão particular que fora, mais tarde, desenvolvida por Clemente de Alexandria;

b) a primeira variação nesta dinâmica encontra-se com Cassiano (faleceu em 430). Este recomendava fossem confessados os pecados e os pensamentos que pudessem levar ao pecado. Considerava-os a raiz das más ações que também precisam ser combatidos. Esta dinâmica ganhou força nos conventos. Gula, fornicação, avareza, tristeza, ira, indiferença, vanglória e soberba eram considerados os vícios principais. A tentação a estes vícios é vencida pela confissão. O pressuposto teológico é o da obediência que retém a graça do batismo. Porém, a vida dos leigos é diferente da vida dos monges. Os leigos eram chamados à confissão somente quando eram cometidos pecados graves. Não satisfeitos com essa vida de piedade, começam a seguir o exemplo da vida monástica com o objetivo de conter as más inclinações e obter a salvação. É o princípio da institucionalização da confissão. A penitência que fazia parte da vida dos monges vale agora para todos. Especialmente na Igreja irlando-escocesa que, por missionários, traz a prática para as comunidades da Europa. O objetivo é fazer com que a perfeição cristã seja propriedade de toda a comunidade;

c) neste processo de institucionalização da penitência surgem os livros penitenciais. Estes têm como objetivo estabelecer procedimentos para que a perfeição pudesse ser atingida. Os livros penitenciais estabelecem que à confissão deve seguir uma penitência. Os vícios capitais são reduzidos para sete: a soberba é considerada a raiz de todo mal e a ela seguem-se três vícios espirituais (inveja, ira, indiferença) e três corporais (avareza, gula, luxúria). No rito penitencial a Igreja franca assume como ordem três etapas a serem seguidas: 1. verdadeiro arrependimento do coração; 2. confissão oral diante do confessor; 3. realização da penitência imposta – “que confirmava a seriedade daquele que confessava seus pecados e representava uma realização a mais de boas obras.” (DREHER, 1994, p. 42). Somente então era anunciada a reconciliação. Este passo litúrgico está centrado na figura do sacerdote. Atente-se para uma inversão fundamental: na igreja antiga reconciliação era compreendida na perspectiva da

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comunidade e subentendida com Deus; agora a absolvição é vista como readmissão à salvação eterna (estamos por volta do ano 1000, sob Carlos Magno). No século XIII a frase “eu te absolvo” passou a ter primazia. Ela estabelece um novo momento no processo de institucionalização: a centralidade do sacerdote que deixa de ser o intercessor junto a Deus para ser aquele que tem o poder de absolver. A penitência, neste momento, passa a ser sacramento. Seu grande defensor e formulador foi Tomás de Aquino. O caráter sacramental é definido pelo Decretum pro Armeniis (1439) em três atos: a) contrição do coração; b) confissão oral; c) satisfação pelos pecados segundo arbítrio do sacerdote;

d) há, porém, uma questão não resolvida neste processo: os castigos penitenciais não foram regulamentados e ficaram a critério da definição do sacerdote. Some-se a isso um aspecto da tradição germânica: o penitente pode substituir a pena imposta por outra equivalente. Aqui nasce o conceito indulgência. Dreher (1994, p. 45) escreve:

No contexto da transferência do pleno poder de perdão ao administrador do sacramento da confissão, surgiu no século XI a concepção de que os detentores do poder das chaves, os bispos e o papa, não só podiam modificar e diminuir a satisfação pelos pecados, mas também eliminá-la de maneira plenária.

A crença de que Deus concedera as chaves do céu à Igreja fez nascer esta nova prática que logo passou a incluir dinheiro e, a partir do papa Urbano II (por volta de 1095), a concessão de indulgência plena para quem fosse participar das cruzadas defendendo a Igreja. O perdão foi completamente canalizado para a indulgência. Ela é o que elimina a pena, a culpa e o pecado. Com a possibilidade de a pena imposta ser modificada, não demorou para que fosse comprada/substituída por um valor em dinheiro. Esta compreensão foi fundamentada pelos teólogos da escolástica com a doutrina do thesaurus ecclesiae (tesouro da Igreja), os méritos excedentes dos santos e do sangue de Cristo que estão à disposição dos pecadores. A Igreja tem acesso e administra este tesouro.

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vendedor de indulgências nos dias de Lutero, não fazia nada do que não fosse permitido pela Igreja da época37, conclui Dreher.

Percebe-se que esta é uma prática de espiritualidade que prima pelo mérito que, por sua vez, é canalizado em favor dos interesses de poder e econômicos da Igreja. Contra esta prática, diferente da prática da Igreja Antiga, Lutero se manifestou nas 95 teses.

A esta prática da penitência precisa ser acrescida a doutrina do purgatório38 praticada na Idade Média e a forma como ela ocupa o imaginário das pessoas. Morrer sem ter confessado um único pecado ou não ter recebido a absolvição por ele é encontrar as portas do paraíso fechadas e as do inferno abertas. A fim de evitar a imediata condenação da alma cria-se uma instância intermediária chamada purgatório. É o lugar para onde vai a alma da pessoa que morreu com algum pecado não confessado. Esta alma precisa passar por uma purificação. No imaginário popular este é um lugar inevitável para todas as almas. A razão para tanto está na compreensão de pecado da época: há os mortais e os cotidianos. Os pecados mortais são resumidos nos sete pecados capitais acima mencionados. Quem neles vive está afastado da graça de Deus. Inferno para estas pessoas é quase uma certeza. Mas os pecados que mais aterrorizavam as consciências eram os pecados banais, os pecados do cotidiano. Os pequenos pecados (errar no peso do trigo, tomar um copo de cerveja a mais etc) que passam despercebidos na hora de confessar-se. Também eles, embora não pudessem afastar completamente a graça de Deus, impediam o acesso ao paraíso. A percepção é agravada porque ninguém sabe o dia e a hora da morte. Logo, purgatório é algo certo para todas as pessoas.

A resposta pastoral, felizmente, está com a Igreja. Especialmente para quem crê. Ela pode livrar a pessoa do purgatório. Brendler (1983, p. 109) aponta para o papel intermediador da Igreja na salvação das almas. Ela é a instituição que tem como objetivo central a salvação das pessoas e administra um tesouro da graça deixado por Cristo, os mártires e os santos do qual ela pode fazer uso. Este tesouro é um meio da graça que age por si só, não sendo dependente da fé da pessoa e é infalível somente pelo fato da Igreja o distribuir. Se o temor pela morte eterna é grande por um lado, por outro também há uma proposta tranquilizadora para a consciência cativa.

37 Febvre (2012, p. 102-105) também afirma que Tetzel agia em conformidade com a pregação da igreja da

época. Que, além do dinheiro, fazia parte da pregação dele o pedido por seguir o rito de penitência firmado pela igreja da época. Afirma ainda que Lutero não foi original na rejeição teológica à famosa frase de Tetzel: “assim que o dinheiro na caixa tilintar, a alma do purgatório irá escapar”. A Sorbonne, de Paris, já havia censurado esta ideia em 1482. (D’ARGENTRÉ, Du Pessis. Collectio Judiciorum de Novis Erroribus, v I, p. 306ss)

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