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3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO

3.1 CUIDADOS NECESSÁRIOS

No terceiro capítulo temos como objetivo principal analisar a relevância da temática da Justificação pela Fé para o contexto do século XXI133. Nosso esforço de atualização da temática se dará no sentido de não simplesmente “pegar uma ideia” ou tema da forma como foi abordado no século XVI e transportá-la para o século XXI134. Há que se reconhecer a distância temporal e também a contextual. Século XVI e XXI trazem sim semelhanças, mas também grandes diferenças.135 Nosso intento é bem apresentado por Westhelle e por Altmann. Westhelle (2011)136 fala da necessidade de “transfigurar” Lutero para nossos dias. Ter ciência de que lidamos com temas do século XVI (Lutero lidava com temas de Paulo e Agostinho) em contexto do século XXI. Westhelle constata que a pesquisa em Lutero avança mais na Europa e nos Estados Unidos da América do que na África, Ásia ou América Latina.

133 A questão da atualização no contexto religioso é sempre controversa e complexa. Acolhemos aqui a ideia de

que é tarefa da hermenêutica, por um lado, lidar com o texto transmitido e historicamente dado e, por outro, com a palavra e a fé. Logo, não é suficiente a compreensão histórica do texto. Será tarefa da hermenêutica “manter e estender o contexto de compreensão até a atual situação do entender e até aquilo pelo qual se deve responder na atualidade.” (EBELING, 1986, p. 75). Barth (2007, p. 125) fala do aproveitamento global da teologia de Lutero e sugere quatro passos necessários: “1) a teologia de Lutero deve ser libertada dos trilhos das questões tradicionais e levada para o campo aberto da discussão religiosa e social atual; 2) ela deve ser exposta com uma postura crítica diante de seus evidentes erros de conexão; 3) ela deve ser des-provincializada; e 4) ela deve receber uma formulação capaz de conectar-se globalmente.” Reconhecemos, também, que é um “salto” temporal significativo do século XVI para o XXI. Abrimos mão do detalhamento histórico e da análise detalhada dos conceitos teológicos ao longo dos séculos para, nesta pesquisa, priorizar a perspectiva de atualização.

134 Altmann (1994, p. 93) afirma que a doutrina da Justificação pela Fé, assim como formulada por Lutero, não é

igual em relevância para todas as épocas e situações. Simplesmente “não existe tal teologia perene.” Brakemeier (2002, p. 79-81) afirma que as teologias têm o seu kairós e que um hiato abismal separa o mundo da Reforma e o do século XXI (ênfases do autor). Este abismo não foi transposto pela Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial em Helsinken, 1963, que não conseguiu formular um consenso acerca da compreensão e relevância atual da mensagem da Justificação pela Fé. Uma das questões está na ênfase da transcendência (Lutero no século XVI) e a imanência que interessa ao ser humano moderno, emancipado e secularizado. Outra está na concepção de pecado: ele não gera a mesma intranquilidade. O mundo global tem outras perguntas. Tillich (1992, p. 218) também afirma que a igreja protestante está diante do desafio de se atualizar. As meras repetições de verdades religiosas tiradas da Bíblia e da tradição não alcançam mais as pessoas. Pelo contrário, hoje duvidam delas. Até mesmo as doutrinas mais centrais são questionadas por lhes parecerem alheias. A Igreja como instituição é questionada. Logo, há um trabalho de atualização a ser feito. Para Tillich este passa por derrubar as falsas seguranças da pessoa moderna e acolher a sua situação-limite. É, portanto, vivencial.

135 Não é intenção desta pesquisa aprofundar esta análise. Veja a respeito: DREHER, 2007, p. 14-17;

ALTMANN, 1994, P. 137, nota 29; CAMPOS, 2009, p. 93-129.

136 WESTHELLE, Vitor. Porque Lutero é importante para a América Latina: uma Perspectiva Sistemática e

Contextual. Palestra proferida para fundamentar o apoio da Igreja Luterana da Alemanha à criação da Cátedra em Lutero nas Faculdades EST de São Leopoldo, 2011.

Mas constata também que o luteranismo cresce mais na parte sul do hemisfério. Logo, a vivência

Será algo híbrido transitando entre o rico resultado da pesquisa em Lutero que se faz na Europa e nos EUA e sua transfiguração a novos contextos sem medo de ousar vestir o manto de Lutero, mas na nossa própria pele. Um filósofo alemão do início do século XIX que se declarava Luterano de boa cepa, com o nome de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em um de seus axiomas disse: “quando o absoluto cai na água, vira peixe.” (Wenn das Absolute ausgleitetund aus dem Bodem, wo es herumspaziert, ins Wasserfällt, so wird es ein Fish, ein Organisches, Lebendiges. (HW 2: 543) Parafraseando: quando Lutero cai no Brasil, vira brasileiro. E assim se dirá para toda América Latina, África e Ásia. (sic)

Altmann, ao empreender esforço de atualização da teologia de Lutero para o contexto da América Latina, fala em preservar o “espírito” teológico. Ele assinala (1994, p. 20-21):

o contraste entre o então e o agora pode revelar em si mesmo uma boa dose da relevância de Lutero para o presente. Muitas vezes, contudo, temos que admitir e reconhecer mudanças radicais. O evangelho único não é preservado pela mera repetição de formulações específicas, mas sim pelo processo de trazer à luz em novo contexto o evento libertário original, mesmo que isso requeira significativas alterações na terminologia, nos conceitos adotados e no modo de argumentar. Não raro, as decisões práticas podem até mesmo ser antagônicas, a fim de preservar o mesmo espírito.

O próprio Lutero definiu “somente a Escritura” um tema central da Reforma. Ebeling (1986, p. 77-79) afirma que Lutero faz uma diferenciação entre “letra” e “Espírito” acerca do como entendê-la: a Escritura não pode permanecer como letra, isto é, como “algo estranho, distanciado e externo”, mas Espírito, ou seja, “que (as palavras) se tornassem vivas no coração e tomassem conta do ser humano. (...) O que a voz expressa vocaliter (vocalmente) deve ser compreendido vitaliter (vitalmente, vivencialmente) no coração através do Espírito Santo.” Por detrás desta afirmação está a compreensão de que a letra entrega a pessoa ao passado e o Espírito é atualizante, vivificante. Isto faz da “compreensão uma tarefa contínua e infindável, que acompanha a progressão da existência.” E mais: para Lutero a “teologia como objeto de pesquisa e como ponto de envolvimento pessoal constituía uma unidade inseparável.” (Ebeling, 1986, p. 76).137 Ou seja, é luz para dentro da condição existencial.

Com base nesta exposição a temática da Justificação pela Fé precisa ser constantemente refletida e atualizada sob pena de se tornar novamente letra que remete somente ao passado. A tarefa da reflexão e da atualização é, portanto, a tarefa do deixar o Espírito falar.

Desta forma perguntamos sobre a relevância e o lugar da Justificação pela Fé no contexto de Brasil e da América Latina do século XXI, ainda marcado pela exclusão. Perguntamos sobre o conteúdo e forma que a Justificação pela Fé pode ganhar nesta

137 Lembramos que a reflexão hermenêutica em Lutero tem mais um ponto chave na compreensão do texto

atualização necessária, sobretudo em temas relevantes para nosso tempo. Em outras palavras, é a pergunta pelo lugar da misericórdia de Deus em espaço de exclusão.138