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A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS

3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO

3.5 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS

Definir a Justificação pela Fé como um modo de vida é dar sinais de como vive a pessoa justificada pela fé. Ou seja, dar indicativos da postura ético-social da pessoa que se percebe justificada. Em Lutero ela se mostra válida ainda em outros temas. Aqui o fazemos no tema da economia.

Ao olhar para o tema da economia em Lutero, devemos lembrar aspectos da conjuntura sócio-econômica da Idade Média, como vimos no primeiro capítulo. Em particular o proceder da Igreja em relação às indulgências e os sinais do gestar de um novo modelo econômico que hoje chamamos de capitalismo. Lutero não fez uma análise econômica da sociedade ou do evangelho propriamente dito. O que fez foi observar práticas econômicas179 em situação de comércio necessário, sobretudo no contexto urbano, e analisá-las à luz do Evangelho, à luz da Justificação pela Fé. As principais referências encontramos nos textos “Comércio e Usura”180 (1524) e “Aos Pastores para que preguem contra a usura”181 (1540).

Observemos o comentário de Lutero em relação ao comércio exterior (importação e exportação) que alimenta a sede dos ricos ao luxo:

O comércio exterior, entretanto, aquele que traz mercadorias de Calcutá e da Índia e outros lugares estrangeiros [importação], como preciosa seda, ouriversaria e especiarias, que somente servem de ostentação e não têm utilidade, sugando o dinheiro do país e das pessoas, não deveria ser permitido, (...). Calcule quanto dinheiro é levado para fora da Alemanha [exportação] durante uma feira de

179 As modernas teorias de economia não eram conhecidas na Idade Média. Logo, não são elas a referência para

Martim Lutero. Antes, é-lhe referência o Evangelho, a prática cotidiana e a necessidade do próximo.

180 Disponível em ObSel 5.367-428 [1524]. As citações que seguem são deste texto. 181 Disponível em ObSel 5.446-493 [1540].

Frankfurt, sem qualquer necessidade. É de se admirar que ainda reste um centavo na Alemanha. Frankfurt é o ralo da prata e do ouro, pelo qual se escoa da Alemanha tudo que entre nós brota e cresce, se cunha e se forja. Se o ralo fosse fechado, não se haveria de ouvir agora as queixas de que só há dívidas e falta de dinheiro por toda a parte, de que todas as regiões e cidades estão sobrecarregadas pelos juros e pela usura. (ObSel, 5.377s [1524])

A crítica que pode ser feita a Lutero consiste em negar o sistema econômico emergente. Lutero não teria se dado conta de que estava em meio à gestação de um novo sistema econômico e teria ficado preso ao sistema econômico feudal, agrário.182 Mas o mais provável é que a crítica de Lutero tenha sido feita com o olhar teológico: nesta prática de comércio exterior o princípio cristão do amor ao próximo, do cuidar da necessidade do próximo, dá lugar ao prazer (luxúria) pessoal. Não podemos esquecer que esta já era uma crítica de Lutero ao proceder da Igreja na questão das indulgências: a caridade, o cuidado, a esmola ao necessitado havia sido retirada e repassada para a Igreja na forma de indulgência. Lutero afirmara que antes do supérfluo vem a necessidade do próximo.

Uma segunda questão a ser observada em Lutero é a crítica acerca da comercialização da necessidade das pessoas. Diz Lutero (ObSel, 5.378s [1524]):

Em primeiro lugar, os comerciantes têm uma regra comum entre si, que é seu lema principal e fundamento de todo o negócio; eles dizem: “posso vender minha mercadoria tão caro quanto puder”. Acham que este é um direito deles. Aí se dá espaço à ganância e se abrem todas as portas e janelas para o inferno. Que é isso senão dizer: Eu não me preocupo com o próximo? Se tenho meu lucro e satisfaço minha ganância, que importa que prejudique o próximo dez vezes de uma só feita? Aí você vê como esse lema afronta direta e desavergonhadamente não só o (sic) amor cristão, mas a própria lei natural. Mas que então haveria de bom no comércio? Como ficar sem pecado, se tal iniquidade é a principal diretriz e regra de todo o comércio? Desta maneira o comércio não pode ser outra coisa senão pilhar e furtar as posses dos outros.183

Lutero entende a relação comercial como um serviço ao próximo. Aqui denuncia a prática de aumentar o preço em conformidade com a necessidade do próximo. É a supressão do valor evangélico e a valorização do valor comercial. A isto chama de “procedimento acristão e desumano”, de “vender ao pobre sua própria carência”, ou seja, ele é “forçado a comprar sua necessidade”. (ObSel, 5.379 [1524]). Lutero defende um preço justo que é definido a partir de uma tríade: a mercadoria (considerar o tempo e trabalho investido para consegui-la), o comprador (a necessidade dele especificamente) e o vendedor (tem o direito ao lucro para viver, mas pratica um serviço cristão ao próximo). O ideal é que o valor dos produtos seja definido pelo livre mercado, mas para evitar abusos pode haver tabelamento

182 Veja, por exemplo, Lienhard (1998) e Brendler (1983).

183 Quando escrevo este texto acontece uma enchente no Estado do Espírito Santo.

http://agazeta.redegazeta.com.br/_conteudo/2013/12/noticias/cidades/1473447-itaguacu-registra-o-maior- numero-de-mortes-da-chuva-no-estado.html, acesso em 27.12.2013. A situação denunciada se repete nas cidades atingidas. Mensagens em redes sociais dão conta desta exploração de ocasião, no caso o arroz e o gás de cozinha. Veja https://www.facebook.com/marialucia.rossmannramlow/posts/-483454075109321. Acesso em 27.12.2013.

máximo de preços por parte do Estado. Riqueza, neste contexto, é denúncia da exploração comercial e sinal evidente da prática gananciosa, contrária aos mandamentos. (ObSel, 5.380- 382 [1524]).

Lutero também condena o que chama de “espertezas e fraudes”, ou seja, o monopólio, a ganância dos comerciantes, a prática de dumping, a prática de vender um produto que o comerciante não dispõe ou ainda não existe, a prática de induzir um produto a preço menor para provocar a falência do comerciante concorrente, a formação de cartel, a agiotagem, o fraudar o peso de determinado produto, a injustiça praticada pelas companhias comerciais184 e pelos príncipes. O que mais impressiona é que são temas que persistem nas práticas comerciais até nossos dias.185

Observamos ainda a prática do empréstimo financeiro. Aqui Lutero admite a necessidade de haver fiador.186 O ideal do empréstimo financeiro, entretanto, é suprir a necessidade do próximo. Esta é a razão da sua existência. O risco do calote precisa ser assumido integralmente por quem empresta o dinheiro. Conforme Unger (2010, p. 111) Lutero traz o tema da ética jurisdicional para a área da ética cristã e estrutura seu pensamento de empréstimo cristão em quatro pontos principais: a) o cristão é alguém despojado e assume Mateus 5.40: “se alguém te tira a túnica, deixa-lhe também a capa”; b) o cristão assume Mateus 5.42: “dá a quem te pede ...” – pressuposto é o imperativo de confiar que, a cada dia, o Senhor dá o necessário para a vida; c) Lutero entende ser permitido o empréstimo, mas quem empresta não deve esperar devolução do valor emprestado. Precisa abrir mão desta perspectiva. Assim, a fronteira entre dar e emprestar se dilui. Se houver devolução do valor, que seja algo espontâneo da parte de quem tomou o empréstimo. Para evitar abusos, reitera o aspecto fraternal ao afirmar (ObSel 5.387s [1524]):

O empréstimo então seria algo muito bom entre cristãos; cada qual devolveria espontaneamente o que tivesse tomado emprestado, e aquele que tivesse cedido o empréstimo o dispensaria de bom grado, caso o outro não conseguisse devolver. Pois cristãos são irmãos, e um não abandona o outro; mas também nenhum é tão preguiçoso e descarado a ponto de não trabalhar e fiar-se nos recursos e no trabalho do outro, querendo viver no ócio às custas dos bens de outrem.

184 Obtiveram vantagem em determinados países da Europa decorrente de monopólio do comércio de minério e

financiaram expedições para as Índias e Américas com margem de lucro na casa dos mil por cento.

185 A edição de economia do Jornal Correio Popular, de Campinas, SP, do dia 26 de dezembro de 2013, na

página A13, traz matéria afirmando que o megainvestidor americano Warren Buffett liderou o grupo de bilionários que mais ganhou dinheiro em 2013: sua fortuna aumentou em 12,7 bilhões de dólares (R$ cerca de 29 bilhões de reais) entre janeiro/2013 e 11 de dezembro/2013, cerca de 37 milhões de dólares por dia. Sua fortuna total está estimada em 59,1 bilhões de dólares. A Consultoria Wealth X e o banco UBS divulgaram os dados. O homem mais rico do mundo é Bill Gates com 76,2 bilhões de dólares em ativos.

186 Registramos que esta necessidade de fiador não é constatada para defender, simplesmente, o capital

d) a compra e venda de produtos deve ser feita somente à vista. Lutero quer evitar que pessoas passem a confiar no crédito a receber em futuro próximo ou distante em detrimento da confiança em Deus. E conclui (ObSel 5.389 [1524]):

Se não houvesse a fiança no mundo e fosse costumeiro emprestar evangelicamente, usando-se nos negócios apenas moeda corrente ou mercadoria disponível, então os maiores e mais perniciosos riscos, falhas e problemas do comércio estariam eliminados. Então seria simples lidar com todos os comerciantes, (...); é por isso [por causa dessas práticas] que todo mundo quer tornar-se comerciante e enriquecer. Evidente está que Lutero, pela redescoberta da Justificação pela Fé, concebe a fé e o crer como algo que se torna palpável no cotidiano das pessoas e da sociedade. Na economia ganha o aspecto de “serviço”: esta serve ao próximo e à sua necessidade. Não é, portanto, absoluta ou um fim em si só. Também nas relações econômicas a fé confessada quer moldar a forma da sociedade se organizar.

A perspectiva econômica apresentada por Martim Lutero é, sem dúvida, factível se considerada à luz da Justificação pela Fé como modo de vida. Ela apresenta a vida e o serviço como prioritários e não considera a economia e as relações econômicas como um fim em si. Quando muito, são importantes como meio apenas. Como tal servem à vida e ao próximo. Mas em sociedade do século XXI, marcada pelo viés econômico, com ganho de capital, obtenção de lucros sem produção por meio de especulação, valorização cambial, cobrança de juros, fraudes e corrupções, ... parece utópica. A impressão que se tem é a de que está deslocada. Fora de contexto. Palavras loucas. É, parece ser mesmo a loucura de Deus na sabedoria do mundo (Paulo e Hinkelammert). Por isso é de grande valor. Inestimável até. É o modo de vida econômico de ser que denuncia a prática vigente. A Justificação pela Fé apresenta de fato outro parâmetro para as relações de fim econômico: a necessidade do próximo. Ousamos dizer que a Reforma, pela premissa da Justificação pela Fé e pelas propostas de Lutero, foi um lampejo de serenidade econômica em um mundo marcado pela ganância. Nisto ela nada perdeu em lugar e importância. Foi um modo de ser na economia do século XVI e ainda o é nas relações econômicas do século XXI.

Lutero pensou a economia como um serviço, um meio que serve a um fim: a vida. Autores contemporâneos, protestantes ou não, percebem na economia do século XXI o que Lutero percebera nas relações econômicas do século XVI: ela não serve à vida. É possível que esta relação esteja hoje ainda mais acentuada. Queremos ouvir estes autores.187 Antes, porém é preciso perguntar: onde e quando houve uma “reviravolta” no sentido de que as considerações teológicas deixaram de ser referência e orientação para a vida?

Segundo (1978, p. 48) levanta a suspeita de que “em algum ponto da tradição teológica deve se ter introduzido um elemento estranho” ao Evangelho, “que em dado momento, se deixou de ouvir a voz de Cristo e se começou a ouvir a voz das classes dominantes e de seus interesses.” Sua suspeita decorre do que chama de a-historização dos ritos da comunidade católica, especificamente no tocante à prática eucarística: a missa, salvo raros momentos, não muda mesmo após uma grande tragédia. E conclui (1978, p. 47):

Que significa isto? Para a maioria dos cristãos, isto significa, sem dúvida nenhuma, que a Deus interessam mais essas coisas intemporais do que a solução dos problemas históricos que estão ocorrendo.

Segundo (1978, p. 47-54) crê estar diante do que chama de presença da ideologia no dogma cristão. Afirma que esta ideologização e a-historicidade do dogma está a serviço do status quo e que é necessário a pessoa cristã despertar deste sono ideológico. Este equívoco teológico, chamado por ele de propagação de um falso Deus, tem sua origem na influência da filosofia grega no pensamento hebreu-cristão. Isto é perceptível na imagem de Deus: no Antigo Testamento esta é de um Deus presente, que ama até o fim e assume a condição histórica dos homens. Há um segundo argumento que solidifica a propagação do falso Deus: o ser humano cristaliza em torno de Deus seus próprios desejos de pessoa humana.188

Hinkelammert (2012, p. 37-39) também percebe a multiplicação desta falsa teologia. Para ele esta reviravolta teológica no pensamento da Igreja se deu nos séculos III e IV d.C., quando a igreja passa a ocupar lugar no império romano e é imperializada. Ele afirma: “quando se cristianiza o império, o império imperializa o cristianismo”, fazendo surgir a questão de que não é mais possível afirmar que os crucificadores de Jesus são os chefes deste mundo, entre eles o imperador. “Era preciso buscar outros crucificadores.” Estes novos culpados passam a ser os judeus. “Os judeus são considerados agora os crucificadores sem razões.” Agem por maldade. Eis a razão que dá início ao antijudaísmo cristão. Paulo, por denunciar as autoridades deste mundo como crucificadores do Messias, é relegado a um segundo plano. A ortodoxia opta por moldar o cristianismo ainda hoje sem esta percepção de Paulo: é uma ortodoxia formada a partir da sabedoria do mundo.189

188 A teologia da prosperidade tem aqui um de seus alicerces. Rieth escreve: “os cristãos possuem o poder de

trazer à existência o que declaram, determinam ou confessam em voz alta. Palavras proferidas com fé têm o poder de criar realidades. As principais bênçãos obtidas dessa forma são felicidade, bem-estar material, saúde perfeita, compreendidos como direitos do cristão verdadeiro e garantidos pela Bíblia. Em nome de Jesus, quem crê toma posse das bênçãos a que tem direito. Miséria, sofrimento e enfermidade são sempre responsabilidade da pessoa por sua falta de fé, do diabo e seus demônios.” (RIETH, 2013, p. 16-17). Esta pesquisa não quer analisar esta questão especificamente. Mas faz constar, em nível de horizonte de aplicação, que a teologia da prosperidade não é caminho viável à luz da Justificação pela Fé.

189 Hinkelammert (2012, p. 30ss) afirma que Paulo trava com os filósofos (epicuristas e estoicos) no Areópago,

em Atenas, o que chama de jogo da loucura, registrado na primeira carta aos Coríntios. A ressurreição dos mortos é o ponto chave do debate: “... à luz da sabedoria do mundo, a sabedoria de Deus é uma loucura e, à luz

Mas, ainda conforme Hinkelammert (2012, p. 30ss), há outro aspecto no texto de Paulo aos Coríntios que deve ser abordado e que para nossa pesquisa é importante: trata-se da institucionalização da Igreja e do ato do batismo. Em 1 Coríntios 1.17a Paulo escreve: “porque não me enviou Cristo para batizar, mas para pregar o Evangelho”, ou seja, a “Boa- Nova”.190 Eis o projeto de libertação que Paulo anuncia. Paulo se entende a serviço não da igreja, mas desse projeto messiânico da Boa-Nova:

Embora ativo para a Igreja, ele não se entende a serviço da Igreja, mas do projeto messiânico da Boa-Nova. Segundo ele, a própria Igreja está a serviço desse projeto e não o contrário. (HINKELAMMERT, 2012, p. 31)

Este projeto de Deus para o mundo é a sabedoria de Deus. É construído a partir do que não é e traz em si justiça, santificação e redenção (HINKELAMMERT, 2012, p. 36). Na espiritualidade este projeto revela a sabedoria de Deus neste mundo, ou seja, torna presente o que não é; traz aquilo que não é para dentro do que é. “O espírito torna presente a ausência da sabedoria de Deus.” (HINKELAMMERT, 2012, p. 40) É o espírito que faz o sujeito ver o que não é. E ver a partir do que não é, é a sabedoria de Deus.191

Para Hinkelammert (2012, p. 42-48), este projeto já não é mais assumido pela comunidade de Corinto. Ela já assumiu a sabedoria do mundo. Institucionalizou a fé pelo batismo e não mais prega a Boa-Nova. A comunidade em Corinto teria assumido o mundo (vive o que é, a sabedoria deste mundo, a riqueza, o poder, ...) e por isso é admoestada por Paulo. Hinkelammert (2012, p. 43) diz: “o batismo aponta para a instituição Igreja como poder, enquanto a Boa-Nova aponta para o projeto do Reino de Deus e da sabedoria de Deus.”192

da sabedoria de Deus, a sabedoria do mundo é uma loucura.” (p. 32). Ou seja: concebida como impossível pela sabedoria do mundo, revela toda a sabedoria de Deus. Enquanto os sábios desse mundo calculam tudo pela via da utilidade, a sabedoria de Deus revela que a força está na fraqueza, que os eleitos de Deus são os plebeus e os desprezíveis e o que não é revela o que é. (p. 34-35, destaques do autor).

190 A versão Bíblica referência para esta pesquisa, como assinalado, traz o vocábulo “Evangelho”.

‘Hinkelammert opta por traduzir “Evangelho” por “Boa-Nova”. Reconhecemos que, neste contexto, é uma tradução feliz e que representa bem o contraste entre a pregação que batiza, como ritual, e a pregação que anuncia a “Boa-Nova”.

191 No dia 05.01.2013 almocei com um amigo marceneiro autônomo. Contou-me que certo dia optou por não ir

almoçar em casa. Com a roupa que estava (já suja e suada por conta do trabalho) foi almoçar em um restaurante próximo. Optou por sentar “meio num canto”. Ao seu lado sentou-se um casal de idosos que, para sua surpresa, não gostou de vê-lo ali. Este casal chamou o garçom e exigiu que o trabalhador fosse retirado do restaurante, fazendo uso da frase: “lugar de mendigo é do lado de fora” do restaurante. O metre, ao saber do ocorrido, indignado, propôs ao meu amigo marceneiro: “desejas que chamemos a polícia para registro de ocorrência?” Não vou contar o desfecho da história, mas assinalar: o casal de idosos viu a situação com a sabedoria do mundo; o metre com a sabedoria de Deus.

192 Hinkelammert (2012, p. 50-53) afirma que ainda há pessoas que não assumem a sabedoria do mundo e

conseguem analisar a realidade a partir do que não é. Cita Dom Romero (assassinado durante uma missa em El Salvador) e o grupo de jesuítas morto pelo governo salvadorenho em 1989 – conforme a igreja, consequência do seu envolvimento com a política; Dietrich Bonhoeffer, Rosa Luxemburgo, Gandhi, Martin Luther King, Che

A consequência da escolha da Igreja é bem sintetizada por Walter Benjamin no fragmento “Capitalismo como religião” (apud HINKELAMMERT, 2012, 47-48), sendo o capitalismo uma transformação do cristianismo no mundo secular, com a consequência de que

... a mensagem cristã não é mais uma mensagem cristã, mas humana. Ela acarreta a transformação do próprio mundo em mundo secular. O cristianismo – também assim é possível dizê-lo – é a famosa escada de que se precisava para subir, mas que, depois de subida, não passa de parte do desenvolvimento dessa modernidade. Sua mensagem agora é uma mensagem secular a partir do mundo secular. Ela o é ainda que, como cristianismo, continue a estar presente. É agora parte do processo, não seu centro.

Brakemeier (2002, p. 82ss) ao perguntar “que é o ser humano?” e o “que lhe justifica a vida e a posição social?” neste mundo do mercado aponta três respostas: a) o valor da pessoa é definido por seu poder aquisitivo; b) pela categoria de grupo ao qual pertence; c) pela capacidade produtiva. E conclui (2002, p. 85): “..., o princípio proeminente da justificação na sociedade humana é o da produção. O Novo Testamento o chama de ‘lei das obras’.”

Há diferentes formas de se conseguir este reconhecimento, seja por uso da força, seja por compra, por aliciamento ou intimidação. Mas normalmente a “lei das obras” se vale da dinâmica de justificar direitos e legitimar reivindicações (BRAKEMEIER, 2002, p. 85):

Privilégios querem aparecer como merecidos. Para tanto, necessitam do reconhecimento por terceiros. O fenômeno é o mesmo no pequeno círculo ou no grande público. Dependemos do juízo de outras pessoas, do atestado e do apoio que dão e que outorgam o direito à existência, ao trabalho, à renda, a funções, à dignidade e à liberdade. A imagem, a boa reputação, o diploma são essenciais para o êxito pessoal e profissional e para a qualidade de vida. A fim de alcançar tudo isso, necessário se faz mostrar produção. Conseqüentemente, é grande o medo do fracasso.

O humano, constata Brakemeier (2002, p. 86-7), não pode abrir mão do sistema de produção. O problema está quando vincula o direito humano à produtividade e na sua absolutização: “a idolatria do lucro e o princípio da absoluta competitividade são sintomas de um aviltamento do processo da ‘justificação’ no mundo capitalista.” É justamente aqui que a mensagem da Justificação pela Fé ganha sua relevância: na superação do critério da utilidade. Quem define este critério? Quem ou o quê é a instância competente para conferir o direito à vida? Eu mesmo? Um grupo? A sociedade? Ou Deus? Se é Deus quem justifica, o ser humano está livre das pressões e juízos da sociedade, embora continuem existindo, mas sem caráter último ou absoluto;193 a Justificação pela Fé relativiza os critérios de justificação social, pois