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A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA: O PRÓXIMO COMO CRITÉRIO

3 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ: UMA PROPOSTA DE ATUALIZAÇÃO

3.6 A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ COMO FUNDAMENTO DE UM MODO DE VIDA: O PRÓXIMO COMO CRITÉRIO

Hinkelammert e Brakemeier assinalam que se faz necessário um sistema para reger o convívio entre as pessoas. O sistema econômico dominante é consumista, excludente e sacrificial. Wilkinson, por sua vez, apontou para um caminho da solidariedade e igualdade. Aqui queremos afirmar: a Justificação pela Fé está neste caminho e aponta para o próximo como critério.

Acolher a Justificação pela Fé como fundamento de vida implica em também acolher o próximo como critério de vida e multiplicar na sociedade valores que têm o próximo como critério e referência. Temos muitos indicativos neste sentido. Como exemplo podemos citar a parábola “o bom samaritano”,197 na qual a relação de proximidade é estabelecida entre quem precisa de cuidados e quem pode oferecê-los.198 A parábola contada por Cristo é enfática na resposta dada pelo intérprete da lei à pergunta de Jesus (Lucas 10.36-37): “qual destes três te

196 Lutero, na interpretação ao Magnificat (1521), afirma que a exaltação dos oprimidos (Lucas 1.52) se dá para o

terror dos tiranos: “tudo isso foi dito para consolo dos sofredores e terror dos tiranos”. (ObSel 6.66). No mesmo texto, ao comentar acerca dos ricos que são despedidos vazios (Lucas 1.53) afirma que a riqueza em si não é empecilho. A questão é não se apegar a elas de coração. (ObSel 6.66-67).

197 Este é o título dado pela Sociedade Bíblica do Brasil à parábola contada por Jesus em Lucas 10.25-37. Jesus é

questionado por um intérprete da lei acerca de como herdar a vida eterna. Ao que respondeu: “o que está escrito na lei?” Na resposta o intérprete diz: amar a Deus e ao próximo. Ao que Jesus responde: “faze isto e viverás”. Mas “quem é o meu próximo?”, questiona o intérprete da lei. E Jesus conta a parábola: uma pessoa foi assaltada e, ferida, ficou jogada à beira do caminho. Passam por ela um sacerdote e um levita que não ajudam, mas um samaritano o socorre. Quem foi o próximo? O samaritano, conclui. É o próximo aquele que ofereceu ajuda ao necessitado, o que traduziu em prática e vivência a fé professada e não mediu esforços para tal. (Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero. Sociedade Bíblica do Brasil, tradução de João Ferreira de Almeida, Revista e atualizada, 2ª ed, 1993, Lucas 10.25-37).

198 Wegner (1990, p. 59ss) abre o conceito de próximo para toda a criação de Deus. A natureza hoje clama, geme

parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então, lhe disse [Jesus]: Vai e procede tu de igual modo.”

Enfatizamos que “proceder de igual modo”, ou seja, usar de misericórdia para com o outro caído à beira da estrada e transformar em prática/vivência a fé professada é a prerrogativa primeira do amor ao próximo. Ou seja, não é o econômico que decide o relacionamento da pessoa justificada com o próximo. Pelo contrário, além de não gerar dividendos econômicos exige abnegação financeira.

Em Martim Lutero encontramos este critério também, como já frisamos199. Embora reconheça que a obra desenvolvida pela pessoa não tenha finalidade justificadora diante de Deus, ela é absolutamente imprescindível para a vida do outro. No texto Da Liberdade Cristã diz (ObSel, 2.451-452 [1520]):

Pois a pessoa não vive somente para si mesma neste corpo mortal, para operar nele, mas também para todas as pessoas na terra, sim, ela vive somente para os outros, e não para si. (...) Por isso não pode acontecer que ela seja ociosa nesta vida e sem obra a favor de seus próximos. (...) Por isso a pessoa deve, em todas as suas obras, estar orientada por esta ideia e visar somente isto: servir a outros e ser-lhes útil em tudo que faz, nada tendo em vista senão a necessidade e a vantagem do próximo. (...) Esta é a verdadeira vida cristã, aqui de fato a fé atua pelo amor. Isto é, entrega-se com alegria e amor à obra da servidão libérrima, com a qual serve ao outro gratuita e espontaneamente, enquanto ela própria está abundantemente satisfeita com a plenitude e opulência de sua fé.200

E reitera (ObSel, 2.453 [1520]):

Eis que em Cristo meu Deus deu a mim, homúnculo indigno e condenado, sem nenhum mérito, por mera e gratuita misericórdia, todas as riquezas da justiça e da salvação, de sorte que além disso não necessito absolutamente de mais nada a não ser da fé que crê que as coisas são de fato assim. Portanto, como não faria a este Pai, que me cobriu com suas inestimáveis riquezas, livre e alegremente, de todo o coração e com dedicação espontânea, tudo que sei ser agradável e grato perante ele? Assim me porei à disposição de meu próximo como um Cristo, do mesmo modo como Cristo se ofereceu a mim, nada me propondo a fazer nesta vida a não ser o que vejo ser necessário, vantajoso e salutar a meu próximo, visto que, pela fé, tenho abundância de todos os bens em Cristo.

Esta é a verdadeira liberdade da pessoa cristã: a de servir ao próximo de forma livre, por gratidão, em alegria, de modo a não calcular lucros ou dividendos como resultado do servir. Do mesmo modo como nós precisamos de Deus, o nosso próximo precisa de nós (ObSel, 2.454 [1520]):

tal qual o Pai celeste nos auxiliou gratuitamente em Cristo, devemos também nós auxiliar a nosso próximo gratuitamente pelo corpo e suas obras, e cada qual tornar- se para o outro como que um Cristo, para que sejamos Cristos um para o outro, e o próprio Cristo esteja em todos, isso é, para que sejamos verdadeiros cristãos.

199 O capítulo dois apresentou este recorte nos textos Da Liberdade Cristã e Das Boas Obras. Retomamos aqui

somente a ideia central do cuidado para com o próximo, fruto da expressão de fé da pessoa justificada.

200 Lutero tem como base o texto bíblico de Romanos 14.7s; Filipenses 2.7 e Gálatas 5.6. O objetivo é deixar

Lutero incentiva à solidariedade pois percebe que a ganância de determinados setores da sociedade não têm limite e que a vida humana paga o preço. Se as casas comerciais, por exemplo, por um lado são impulso para o novo modelo econômico, por outro são responsáveis por exploração e falência daqueles que não conseguem renda suficiente para honrar seus compromissos. Geram ricos e pobres. Algo semelhante pode ser dito dos comerciantes que, não raro, exploram comercialmente a necessidade do outro. Conforme Lutero, o Evangelho não só denuncia estas práticas de exploração e acúmulo como propõe um modo de se organizar mais solidário, mais cuidadoso com a vida do próximo. Com este intuito nasce a proposta da Caixa Comum,201 regida por regulamento comunitário, instituída em Wittenberg (1522) e em Leisnig (1523).202

Conforme a percepção de Altmann (1994, p. 222), a Caixa Comum visava oferecer ajuda comum para pastores, professores, pessoas idosas, doentes, viúvas, desempregados e todas as pessoas por alguma razão desamparadas. Também se deveria sustentar economicamente a nova Igreja e ajudar na criação de escolas. Ou seja: tratava-se de uma proposta bastante ambiciosa, que praticamente implicava um amplo sistema de seguridade social, algo inusitado, surpreendente e indubitavelmente revolucionário para aquela época.

A Caixa Comum é reconhecida como um projeto pioneiro e audacioso para a sociedade da época por propor cuidado para com todas as pessoas desamparadas e para com atores sociais como os professores e a igreja, por exemplo. Este pensamento é decorrente da ênfase teológica da Reforma que não mais separava vida cotidiana de vida espiritual. O culto, o Evangelho e Deus agem para dentro da vida social e do cotidiano das pessoas.203

Sua ousadia também está na forma de arrecadar os recursos para honrar seus compromissos. Estes eram provenientes dos orçamentos das instituições religiosas, de propriedades pertencentes à Igreja (confiscadas para fins comunitários) e de impostos. Ahlert (2006, p. 95) conclui:

Não há dúvida que por detrás dessa organização estava uma dimensão política de cidadania democrática bem significativa e, de certa forma, deslocada no seu tempo. Tal democracia participativa estava adiantada em vários séculos. Em meio ao regime feudal, as cidades inspiradas nestes princípios buscavam, por meio da participação popular, a sua organização política, econômica e social.

201 Temos por base a reflexão feita por Altmann (1994, p. 211ss) e Ahlert (2006). Embora a proposta envolva

questões econômicas como meio, queremos enfocar o aspecto da solidariedade mútua, do cuidado mútuo, o que é realmente o fim ao qual foi instituída.

202 Conforme Pauly (PAULY, Evaldo Luis. Ética, educação e cidadania: questões de fundamentação teológica e

filosófica da ética na educação. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002, p. 149, apud AHLERT, 2006, p. 94) as práticas de eclesiologia e política democráticas de Lutero limitam-se ao que hoje chamamos de município.

203 O maior exemplo está na Ceia do Senhor que “deve provocar uma nova ética social, pois, como sinal de uma

comunhão radical em Cristo, compromete o ser humano a viver concretamente esta comunhão com a comunidade e com a cidade. A comunidade e a cidade tornam-se um só corpo e seus cidadãos pertencem uns aos outros.” (LINDBERG, 2001, p. 142, apud AHLERT, 2006, p. 94).

A Igreja era mais uma instituição que partilhava desta dinâmica: contribuía e se beneficiava. Ou seja, estava realmente inserida no meio social de vida do seu povo. Ali, voz da palavra de Deus, dava a dimensão ética do cuidado cristão. Em Wittenberg esse sistema funcionou bem por um período (o maior problema foi ter que criar uma cláusula para impedir que outras cidades enviassem para lá os seus necessitados) e em Leisnig não durou muito tempo porque as autoridades municipais (representantes da burguesia) não apoiaram financeiramente o projeto204. Registre-se, todavia, a dimensão vivencial do cuidado baseado na orientação do evangelho e na postura profética ante a volúpia de um mercado emergente.

A Justificação pela Fé molda um novo sistema de vida e cuidado para com o próximo também a partir da educação205. Nos textos de Martim Lutero de 1524206 e 1530207 isto fica evidente. Os textos enfatizam que Lutero pensa a educação como uma obra do amor cristão. A razão para tanto está em que a educação prepara pessoas para liderar a Igreja (através de pastores e mestres) e o Estado (através de líderes e conselheiros). A educação é, pois, obra que atende às necessidades individuais e coletivas. A dimensão individual está quando são formados indivíduos tementes a Deus; a coletiva quando estes indivíduos tementes a Deus assumem sua responsabilidade ética e vivencial, ou seja, sua liberdade de forma responsável.

A educação das crianças é importante também para sua socialização e vida na cidade. O problema que se coloca é a incapacidade dos pais (por também não terem qualificação, por falta de tempo ou dinheiro para pagar um professor particular) em educar seus filhos. A saída encontrada é a comunitariedade:

Portanto a necessidade obriga a mantermos educadores comunitários para as crianças, a não ser que cada qualquer queira manter um em particular. Isso, porém, seria oneroso demais para um simples cidadão, e uma vez mais muitos excelentes meninos seriam prejudicados por serem pobres. (ObSel, 5.308 [1524])

204 De forma geral, conforme Brendler (1983, p. 196), um dos problemas enfrentados foi com os representantes

da burguesia: eles acolheram o conceito da Justificação pela Fé, mas o traduziram para dentro de seus próprios interesses, especialmente para se livrar de pesos incômodos. A reação de Lutero foi pregar incessantemente acerca da validade dos mandamentos. Por outro lado, Lutero também não era um idealista no sentido de imaginar que o Evangelho fosse facilmente aceito como orientação de vida das pessoas. Também não defendia uma teocracia. Defendia, isso sim, a validade da lei como também forma de organizar o cotidiano: “pois já ensinei muitas vezes que não se deve nem se pode governar o mundo segundo o Evangelho e o amor cristão, e, sim, segundo leis rigorosas, com espada e força, porque o mundo é mau e não aceita nem Evangelho nem amor, antes age e vive segundo sua petulância, caso não seja obrigado a força. Caso contrário, em se praticando puro amor, todo o mundo quereria comer, beber e viver bem das posses dos outros, e ninguém trabalharia; cada qual tiraria o que é do outro, instalando-se um estado de coisas tal que tornaria impossível o convívio.” (ObSel 5.391-392 [1524]).

205 Também não queremos esgotar o assunto. Apenas elencar que a educação é mais um serviço que se presta em

favor do próximo, ou seja, uma obra do amor cristão.

206 Em 1524 Martim Lutero escreve “Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que criem e

mantenham escolas cristãs”. O texto está disponível em ObSel 5.302ss.

207 Em 1530 Martim Lutero escreve “Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola”. O texto está

Registre-se que a educação, na percepção de Lutero, contribui na socialização das crianças, transformando-as em cidadãos plenos de seus direitos e deveres. Além disso, a proposta da comunitariedade supera as dificuldades financeiras, de conhecimento e capacitação e acolhe todas as crianças indistintamente. As crianças pobres não são excluídas.208

Lutero crê que a educação é uma maneira de melhorar a vida das pessoas e da cidade. Ao se referir à educação das crianças, antevê adultos educados com potencial de contribuir para a paz social urbana. Por isso o interesse primeiro pela educação precisa ser dos conselhos das cidades:

A eles, como curadores, foram confiados os bens, a honra, corpo e vida de toda a cidade. Portanto, não agiriam responsavelmente perante Deus e o mundo se não buscassem, com todos os meios, dia e noite, o progresso e o melhoramento da cidade. Agora, o progresso de uma cidade não depende apenas do acúmulo de grandes tesouros, da construção de muros de fortificação, de casas bonitas, de muitos canhões e da fabricação de muitas armaduras. Inclusive, onde existem muitas coisas dessa espécie e aparecem alguns tolos enlouquecidos, o prejuízo é tanto maior e pior para a referida cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando possui muitos homens bem instruídos, muitos cidadãos ajuizados, honestos e bem educados. Estes então podem acumular, preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens. (ObSel, 5.309 [1520])

Sobre os investimentos em educação, Lutero sugere: o dinheiro que era gasto pelas famílias em indulgências e missas quer agora ser revertido às escolas. E mais:

Não obstante, se alguém der um ducado para a guerra contra os turcos (ainda que nos assediassem), seria justo que se doassem cem ducados [para a educação], embora com eles se pudesse educar apenas um garoto de modo a tornar-se um varão verdadeiramente cristão. (ObSel, 5.305 [1520])

Evidencia-se, claramente, que a educação cristã (ou não) faz parte do modo de ser e viver pela fé. O econômico, no máximo, é motivo para que as pessoas se unam no sentido de viabilizar a educação dos filhos e das filhas.

Tamez209 (1995, p 187-189) afirma que em Paulo temos a disputa de dois sistemas: o da injustiça praticada pelos seres humanos que deram origem “a uma lógica pervertida ou às avessas, a tal ponto que chamavam a mentira de verdade e a verdade, de mentira.” – chamado em Paulo de Pecado (pecado estrutural, portanto); e a lógica de Deus, baseada na “solidariedade máxima de Deus com os seres humanos, aceitando ele mesmo esta sua humanidade e, mais do que tudo, a humanidade dos pobres da sua época, principais vítimas

208 Temos aqui uma raiz da prática histórica da Igreja Luterana que concebia uma escola ao lado de cada templo

religioso. Veja WACHS, 2001, p. 80-89; BOCK, 2001, p. 90-95. No protestantismo em geral veja MENDONÇA, 1995, p. 95-116.

209 Tamez apresenta a reflexão da Justificação pela Fé a partir do apóstolo Paulo como afirmação da vida. Com

base em Romanos 1-3 enfatiza o pecado como pecado estrutural que, por leis injustas, sustenta e dá legitimidade a um sistema que gera morte, ganhando aparência de legalidade. Logo, uma lei que mata; que aprisiona a justiça na injustiça. Tamez propõe que a Justificação pela Fé é a superação deste sistema (i)lógico e a inclusão do excluído no projeto de Deus. Paulo, na carta aos Romanos, quer fortalecer esta fé (Romanos 8).

do pecado.” Deus assume em Cristo a história e o faz pelo prisma da justiça, da vida e da paz. Esta é a lógica de Deus e dos que assumem a lógica de Deus, dos que vivem conforme seu “Espírito” – Paulo os chama de “os que estão em Cristo Jesus” (cf Romanos 8.1).

Para Tamez a América Latina vive uma estrutura e lógica de morte semelhante à estrutura e lógica enfrentados por Paulo. Sistemas (políticos, ideológicos e sociais) que são sustentados por leis que geram morte, mas que têm a função de dar legalidade para as atrocidades cometidas.210 Sistema semelhante de leis matou Jesus e continua matando especialmente os pobres. A Justificação pela Fé é a intervenção solidária de Deus neste tempo a fim revelar uma nova ordem, uma nova lógica, baseada em sua justiça.

Tamez se propõe a reinterpretar este propósito original, por Paulo chamado de Justificação pela Fé, para nós hoje na América Latina.211 Elenca, a partir de Paulo, quatro características principais desta nova ordem (TAMEZ, 1995, p. 198-204):

a) a salvação é pela fé, não pelas obras da lei como os judaizantes defendiam. Ao defenderem-na excluíam todos os que criam na ressurreição de Cristo e que não eram de descendência judaica. A lei judaica exclui, a Justificação pela Fé inclui a todos. A proposta é “incluir o excluído no projeto divino de salvação” (p. 199), algo impensável no princípio da lei judaica;

b) é necessário conscientizar-se da ausência da justiça verdadeira na proposta do império romano. Ele se apresenta como um poder estrutural econômico, político e militar que não pode ser enfrentado pelas pessoas. Por isso ganha o status de pecado que leva à morte. É um sistema que se apresenta como protetor e pacificador das províncias, mas que oculta a prática da injustiça. Para Paulo é preciso dar-se conta de que esta não é a justiça verdadeira. Ela mata. Chama-a de idolatria, pois “querem praticar justiça ditados pela lei, e seu resultado é a injustiça (Romanos 2.21-23).” (p. 201). Esta justiça (seja a da lei do império, seja a da lei judaica) não tem o selo da verdade;

210 Hinkelammert (2012, p. 11-12, 71-120) também faz esta reflexão em Paulo, embora tenha como pano de

fundo o contexto econômico. Ele assinala dois cernes na reflexão de Paulo: a) a “distinção entre o pecado e os pecados. Os pecados violam a lei. Não obstante, o pecado é cometido no cumprimento da lei.” (p. 11) Marx retoma este conceito e o amplia “para uma crítica da lei do valor como lei dos mercados. Sua crítica é a denúncia da opressão e da exploração, que aparecem quando a lei é cumprida.” (p. 11) Pior, são protegidos pelos aparelhos de justiça e de polícia; b) “Paulo denuncia a lei na medida em que se considera o cumprimento da lei como a justiça.” (p. 11). O resultado do cumprimento da lei não é necessariamente justo. Normalmente se transforma em seu contrário: “o crime cometido aparece agora como resultado da própria justiça.” (p. 12) Marx o chama de fetiche na medida em que se considera o cumprimento da lei do valor como ato de justiça. Os crimes cometidos no cumprimento desta lei são entendidos como sacrifícios necessários.

211 Tamez (1995, p. 197) considera que há diferenças sensíveis no contexto de Paulo e América Latina que

precisam ser consideradas: a) não temos a tensão teológica entre judaizantes ou judeu-cristãos e gentios convertidos, ou ainda entre gnósticos e Paulo; b) a realidade socioeconômica e política da América Latina é diferente; c) um histórico de leitura cristã já feito desta doutrina ao longo dos séculos e assimilada pelos fiéis.

c) as primeiras comunidades cristãs são pequenas e frágeis diante da força do império e vivem em meio hostil. Precisam de segurança. Esta não vem da justiça do império romano, mas da justiça de Deus que “capacita os seres humanos para que sejam praticantes de justiça verdadeira.” (p. 202). Jesus foi o primeiro e fortalece a todos na sua existência cotidiana (Cf 1 Coríntios 15.31s). As pessoas podem praticar a justiça graças à intervenção de Deus no mundo e à fé em Jesus Cristo;

d) na fragilidade das comunidades Paulo apela a uma força superior no ser humano que tem fé para enfrentar o mundo injusto e dar-lhes segurança. Deus está com eles; ninguém pode contra eles (Romanos 8.31). Paulo os lembra que foram agraciados com a revelação da justiça de Deus, tornados herdeiros de Cristo e que são convidados a ser testemunhas desta justiça: “que se cumpra nos que seguem uma conduta segundo o espírito” (Romanos 8.4). Tamez aponta para a força do divino no humano. É o assumir a lógica de Deus – ser considerado filho/a dele.

Tamez percebe na Justificação pela Fé em Paulo a dimensão da inclusão do excluído, pela fé, ao projeto de Deus;212 ao mesmo tempo a pessoa não pode ficar na passividade: ela precisa se dar conta de que neste mundo não encontra a justiça verdadeira. Precisa perceber a justiça de Deus e a ela acudir (pontos a e b). Na perspectiva de Paulo percebemos também a