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Ensino Jurídico: ideias e reflexões

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Academic year: 2017

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REFORMA DO ENSINO JURÍDICO:

REFORMAR O CURRÍCULO OU MODELO?

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

A FAVOR DA DEMOCRACIA  A CONSTRUÇÃO

DE UM CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Joaquim Falcão e Diego Werneck Arguelhes

LINGUAGEM JURÍDICA VERSUS COMUNICAÇÃO

João Zacharias de Sá

Cadernos

FGV

DIREITO

RIO

(2)

ISBN: 978-85-63265-04-3

Direitos desta edição reservados à EDIÇÃO FGV DIREITO RIO

Praia de Botafogo 190 13° andar – Botafogo 22250-900 – Rio de Janeiro, RJ – Brasil e-mail: direitorio@fgv.br

www.direitorio.fgv.br

Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.

1ª edição – 2010

Supervisão e Acompanhamento: Tânia Abrão Rangel

Diagramação: Avallone Comunicações

Revisão: Marketing da FGV Direito Rio

Capa: Coordenação de Marketing

Ficha catalográfi ca elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen / FGV

Reforma do ensino jurídico : reformar o currículo ou modelo? / Tercio Sampaio Ferraz Jr. A favor da democracia : a construção de um curso de direito constitucional / Joaquim Falcão e Diogo Werneck Arguelhes. Linguagem jurídica versus comunicação / João Zacharias de Sá. - Rio de Janeiro : Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fun-dação Getulio Vargas, 2006.

33 p. - (Cadernos FGV Direito Rio. Educação e direito; 2)

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03 CARTA DOS EDITORES

05 REFORMA DO ENSINO JURÍDICO:

REFORMAR O CURRÍCULO OU MODELO?

Por Tercio Sampaio Ferraz Jr.

11 A FAVOR DA DEMOCRACIA  A CONSTRUÇÃO

DE UM CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Por Joaquim Falcão e Diego Werneck Arguelhes

29 LINGUAGEM JURÍDICA VERSUS COMUNICAÇÃO

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CARTA DOS EDITORES

Este segundo número da série Textos para Discussão busca ampliar o debate acerca do

en-sino jurídico.

O primeiro artigo, de Tércio Sampaio Ferraz Jr., foi pensado nos anos 1970 para a reforma

do ensino jurídico ocorrida na PUC-RJ. Participaram deste debate, além do próprio autor,

Joaquim Falcão, Carlos Alberto Direito, Jorge Hilário Gouveia, Mário Brockmann

Macha-do e Gabriel Lacerda, dentre tantos outros. Esse artigo foi publicaMacha-do nos Cadernos da PUC

naquele período e ainda não perdeu sua atualidade.

Na época, foi criado um novo modelo de Mestrado. O programa anterior baseava-se na

dicotomia e na separação radical entre direito público e direito privado; a partir de então,

estimulou-se a interdisciplinaridade e o sistema de créditos foi reforçado, em detrimento do

antigo sistema seriado. O artigo de Ferraz Jr. introduz a crítica do ensino jurídico no interior

do próprio ensino e defende a combinação necessária da abordagem dogmática com visões

como a sociológica, a filosófica, a histórica etc. A partir desse novo contexto, Ferraz Jr. examinou criticamente as profissões jurídicas. O artigo enfatiza, ainda, que o processo de

ensino e aprendizado jurídicos deve ser permanentemente debatido, estimulando a busca de

novos modelos e técnicas educacionais.

O segundo artigo, de Falcão e Arguelhes, mostra os desafios encontrados na construção de

uma disciplina, a Teoria do Direito Constitucional, que procura substituir o aspecto

mera-mente informativo por um conteúdo destinado à compreensão e ao exercício da democracia.

Essa disciplina tem a preocupação de identificar questões constitucionais na vida quotidiana

dos alunos e, com isso, diminuir as distâncias entre direito e sociedade.

Falcão e Arguelhes apresentam, ainda, as vantagens da utilização da informática e da

tele-mática nessa nova abordagem do Direito Constitucional. Por priorizar o método

participati-vo, a disciplina só pode ser ministrada adequadamente através do uso intensivo da internet e

de apresentações de slides, já que tais recursos fomentam discussões e possibilitam o acesso

a informações disponíveis on-line, em tempo real. Segundo os autores, essa é uma condição

essencial para a abertura e renovação contínua do conhecimento e do aprendizado.

O terceiro artigo, de João Zacharias de Sá, aluno da Escola de Direito do Rio de Janeiro

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buscava desmistificar a linguagem jurídica e torná-la acessível à população. A iniciativa da

AMB reconhece a ampliação do acesso à justiça e a desformalização da linguagem jurídica

como instrumentos da cidadania para aproximar o Judiciário e a cultura jurídica da realidade

social brasileira. O artigo de Zacharias foi premiado por demonstrar o obscurantismo

encon-trado na linguagem das decisões judiciais e propor alternativas para facilitar sua utilização

e seu entendimento.

Os três artigos são pontos de partida para pensar alternativas ao ensino e ao exercício do

direito em uma sociedade democrática. Com isso, a FGV DIREITO RIO deseja prestar uma

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REFORmA DO ENSINO JuRÍDICO:

REFORmAR O CuRRÍCulO Ou mODElO?

Tercio Sampaio Ferraz Jr.

1. Admitimos que todo conhecimento envolve uma relação comunicativa, na qual algo é

posto em questão; todo conhecimento nesse sentido, envolve um ato de indagar e um ato de

responder; que isto corresponde a um modelo básico que denominamos modelo de

pergun-ta-resposta; esse modelo deve ser assim entendido:

1.1. Acentuando-se o aspecto pergunta, iniciamos um procedimento de indagação-pesquisa

(zetein – zetética), onde os pontos de partida são opiniões postas em questão, portanto

pro-blemas ou possibilidades estruturais em alternativas e para as quais se busca uma solução,

visando-se a uma descrição teórica das questões;

1.2. Acentuando-se o aspecto resposta, iniciamos um procedimento de resoluções, onde os

pontos de partida são pontos de vista assegurados e postos fora de discussão (dokein -

dog-mática) donde se segue uma atividade voltada menos para a especulação (theoría) e mais

para a ação (pragma), na busca de decisões.

2. Em vista disso, admitimos, no âmbito jurídico, dois modos fundamentais de organização

do conhecimento, falando-se com Viehweg, em “jurisprudência zetética” e “jurisprudência

dogmática”

2.1. A primeira acentua o aspecto pergunta, tende a ver o direito como problema (de

pes-quisa), mantendo as opiniões (doxa) em suspenso, mantendo norma legais, costumeiras,

equitativas, sócio-econômicas, sócio-políticas, etc., em constante questionamento, ou na

sua referência às bases empíricas (na perspectiva da sociologia, psicologia, antropologia,

história jurídica, etc.) ou de modo a ultrapassar aquelas bases (na perspectiva da Teoria

Geral, Lógica e da Filosofia jurídicas).

2.2. A segunda, ao contrario, limita-se às opiniões postas (dogmas), trazendo-as à discussão

ao nível da ação, sem pô-las em dúvida, a fim de garantir a solução de eventuais conflitos

sociais sem maiores perturbações.

2..Tradicionalmente, nos últimos 100 anos sobretudo, a ciência e o ensino jurídicos têm

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. Tanto a “dogmática” quanto a “zetética” têm em comum a relação pergunta-resposta,

embora acentuemos um ou outro aspecto. Este ponto comum revela que o objeto do

co-nhecimento é sempre uma questão que pode se apresentar como um problema, um dilema,

uma aporia. Temos um problema, quando as possibilidades estruturadas em alternativas

compõem o campo das soluções possíveis; temos um dilema, quando é preciso ir além do

campo de possibilidades; temos uma aporia na medida em que no campo de possibilidades

uma eventual solução se repete como uma das possibilidades. Exemplo de problema: a lei nº

y aplica-se ao caso x? Exemplo de dilema: pode haver uma questão teórica pura do direito?

(para respondê-la, temos que sair do âmbito jurídico). Exemplo de aporia: que é o

conheci-mento jurídico? (caso em que a própria pergunta, sendo um conheciconheci-mento, envolve-o como

tema e solução).

.1. Questões dogmáticas são basicamente problemáticas; questões zetéticas são

dilemáti-cas e aporétidilemáti-cas.

3.2. Não há, propriamente, uma oposição (que se estabeleceu, artificialmente), entre ambas.

As questões dogmáticas, diz-se também, são questões de dever-ser; as zetéticas de ser. O

conhecimento jurídico deve tematizá-las, ambas, constituindo-se o seu ensino a partir desta

visão questionadora própria do modelo pergunta-resposta.

. O ensino jurídico, como dissemos, tem tido uma orientação nitidamente dogmática.

As-sim, por exemplo, quando se pensa em reformá-lo, logo pensamos em reforma do currículo

(mínimo). O enfoque curricular não trabalha com o modelo pergunta-resposta, na medida em

que isola um dos seus termos e o torna exclusivo. Acentua, pois, o aspecto resposta, de modo

unilateral, propondo-se a enumerar um mínimo de disciplinas, o que faz do ensino um modelo

quase-axiomático (mínimo de proposições verdadeiras – leia-se disciplinas básicas – que

de-vem ser ministradas).

.1. Primeira conseqüência disto é tornar-se o ensino um sistema de compartimentos estanques.

Se, sob o ponto de vista da sua organização administrativa, este sistema é útil, sob o ponto de

vista didático, ele acarreta uma visão equivocadamente especializante da formação jurídica.

.2. Nota-se, então, que, apesar dos esforços das diversas faculdades de Direito, as

cha-madas disciplinas básicas se tornam cada vez mais subsidiárias, isto é, secundárias no ver

do aluno e sem objeto claro e determinado (enciclopédicas, repetitivas, quando não meras

“perfumarias”) no ver dos próprios professores e profissionais.

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mesmo para as disciplinas profissionalizantes, tendo-se por conseqüência, um ensino jurídi -co pedindo cada vez mais técnica e um mínimo de ciência.

.. No campo jurídico, o enfoque curricular, acaba por instaurar assim, uma dicotomia

(ar-tificial) entre ciência e técnica, transformando-se as Faculdades de Direito em verdadeiras

fábricas de fórmulas prontas, sem laboratórios de pesquisa.

. Acreditamos, por tudo isso, que o fulcro real de uma reforma do ensino jurídico não está

na mudança dos elementos componentes do modelo (reforma do currículo), mas, muito

mais e sobretudo, na reforma do próprio modelo.

.1. Sugerimos assim, a adoção do modelo pergunta-resposta, que nos obriga a ver o direito

como um conjunto de questões fundamentais, que atravessam as diferentes disciplinas,

dan-do-lhe uma unidade dinâmica e ativa.

.2. A relevância dogmática ou zetética (de pesquisa) dessas questões é, a princípio, deixada

em aberto.

6. A determinação dessas questões tem um momento de universalidade e um momento de

situacionalidade. Todo ensino jurídico revela, assim, questões permanentes e constantes,

embora não seja nem deva ser centrado sobre idênticas questões, pois em parte, elas

emer-gem de situações peculiares a um tempo e lugar.

6.1. Isto significa que, mesmo dentro dos limites curriculares, a programação do ensino ju -rídico sofre um processo de adaptação a condições de tempo e lugar que não é adaptação do

currículo, mas uma verdadeira construção teórica que esvazia o currículo, colocando-o na

situação de forma sem conteúdo. Vale dizer, o importante é o modo de abordagem de temas

e questões e não os compartimentos em que eles estão ou têm que entrar. É este modo de

abordagem que deve ser o permanente e constante, não os temas em questão.

6.2. Isto posto, podemos propor, exemplificadamente, para a reorganização do ensino jurí -dico, os seguintes grupos de abordagem de questões: questões basicamente zetéticas ou de

pesquisa e questões basicamente dogmáticas.

Dizemos basicamente porque reconhecemos nelas, no fundo, um entrelaçamento.

Entre as basicamente zetéticas, poderíamos apontar, por exemplo:

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6.2.2. As questões referentes ao sentido do Direito;

6.2.. As questões referentes ao sentido da Ciência Jurídica.

Quanto às primeiras (6.2.1.), um programa jurídico deve ter um momento de justificação de

atividade, discutindo-se, a partir de certas indagações fundamentais (História, Sociologia

numa primeira fase; Pedagogia, Filosofia numa segunda) as razões do estudo do Direito, as suas finalidades, motivações, etc.

Quanto às segundas (6.2.2.), propor-se-ia uma analise do fenômeno jurídico como fato

so-cial, em termos de uma investigação empírica.

Quanto às terceiras (6.2.3.), teríamos indagações de ordem filosófica, como a metodologia

do ensino, do conhecimento, da práxis jurídica.

7. As questões zetéticas devem compor, com as dogmáticas, um conjunto. Entre as questões

basicamente dogmáticas, como ponto de confluência do modelo de pergunta-resposta, aflora

o problema da decisão, a partir do qual, um curso de Direito pode organizar-se em dois

mo-mentos fundamentais: a norma como decisão e a norma como premissa de decisão.

7.1. No primeiro momento, a norma como decisão, o curso de Direito deve estruturar-se

em torno do fenômeno da legislação, organizando-se o ensino não em termos de análise

da legislação pronta, mas dos processos que nos conduzem à legislação, numa tentativa de

recompor as leis como se elas ainda não existissem.

7.2. No segundo momento, as normas como premissa de decisão, o curso deve estruturar-se

em torno de processos hermenêuticos, localização dos centros de decisão, a decisão

judi-ciária, empresarial, administrativa, etc.

7.. Nesta divisão proposta, um curso de Direito deve começar por ensinar ao aluno as

téc-nicas legislativas, mostrando como, a partir de uma concepção da vida social enquanto por

exemplo, um sistema de conflitos e de respostas, é possível construir o Direito, ou melhor,

reconstruir o Direito. O mesmo vale para as técnicas judiciárias. Em ambos os casos, o

im-portante não é o repertório de informações, mas a estrutura; não é a quantidade dos temas,

mas o modo como eles são, podem e devem ser trabalhados.

7.. Ao se dar mais importância à estrutura do que ao repertório, estamos dizendo que uma

reforma do ensino jurídico pode por em segundo plano o problema do currículo mínimo,

privilegiando, ao contrário, currículos variáveis, onde se dê maior importância à

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aprendemos a deduzir, por exemplo, o sistema do Código Civil, mas é a partir de problemas

centrais como a pessoa, a liberdade, a propriedade, etc. que aprendemos a propor diversas

soluções normativas. A questão é ensinar ao aluno como dado o caso, encontrar a solução

normativa e não como, dada a solução normativa, encontrar o caso.

. Note-se que, quando citamos e mencionamos disciplinas, não estamos pensando em

com-partimentos, mas em problemas. Isto é, não estamos propondo que existam, no currículo,

essas disciplinas, mas que, se assim o quisermos, o curso se organize na forma de grupos

de questões, por exemplo: o sentido do ensino jurídico no Brasil, o papel do Direito na

so-ciedade brasileira, o papel do seu ensino, a crise do ensino, etc. com vários enfoques. Isto

demanda do professor, sem dúvida, uma visão integrada e não compartimentalizada dos

problemas, ainda que, para efeito de atendimento do currículo mínimo, as questões

agrupa-das tivessem que constituir um semestre ou dois da disciplina Sociologia ou História, por

exemplo.

.1. Não se discute aqui o problema da hierarquia didática dos grupos de questões, isto é,

quais devem ser discutidas antes e quais depois, dentro de uma ordem de prioridade.

.2. Aliás, um ensino programado dentro do modelo pergunta-resposta convém justamente

ao sistema de créditos, onde se liberta o aluno de conjuntos seriais de disciplinas,

substi-tuídos por seminários no sentido de grupos limitados de participantes, reunidos em torno

de questões previamente anunciadas e que são, durante um semestre ou mais, verticalmente

discutidas.

.. Apesar disso, aquela hierarquia pode ser elaborada no sentido, por exemplo, de que primeiro

o aluno se familiarize com o pensamento jurídico em geral, com o pensamento jurídico da

dog-mática continental (em oposição à anglo-saxônica), depois com os seus limites e quadros

clas-sificatórios, para então expandir-se sobre temas interdisciplinares onde as questões sejam base de

indagações múltiplas (aspectos civis, comerciais, constitucionais, administrativos, etc.).

9. O modelo pergunta-resposta é viável, mas pressupõe, sem dúvida, um período de

forma-ção de professores dentro do novo espírito interdisciplinar, sem o que ele não se deixaria

implantar.

9.1. Esta formação implica uma assimilação de novas técnicas de ensino e aprendizado

(como, por exemplo, a dinâmica de grupo aplicada ao ensino, o ensino programado, etc.).

9.2. Implica, também, um rompimento com concepções estanques do Direito ou com sua

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9.3. Significa, ademais, em privilegiar as estruturas em detrimento dos repertórios, vale

dizer, a enfatização das questões da chamada teoria geral do Direito (num sentido

interdis-ciplinar).

9.. Implica, por último, uma reformulação dos próprios cursos de pós-graduação, muitos

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A FAVOR DA DEmOCRACIA – A CONSTRuçãO DE um CuRSO DE

DIREITO CONSTITuCIONAl

Joaquim Falcão e Diego Werneck Arguelhes

1. O PROJETO DA ESCOLA DE DIREITO DO RIO DE JANEIRO DA FUNDAçãO

GETULIO VARGAS

A criação das Escolas de Direito da Fundação Getulio Vargas – no Rio e em São Paulo – se

deu em um cenário que tem se mantido estável ao longo dos últimos anos. Por um lado,

sobram críticas e propostas de reforma do ensino jurídico; por outro, é difícil encontrar

sinais de alteração substancial das práticas pedagógicas nas escolas de Direito brasileiras.

As palavras-chaves do diagnóstico são antigas e bem-conhecidas de todos: “formalismo,

enciclopedismo, ensino distante da realidade social e profissional”.2 Nem a crise do ensino em si, nem os múltiplos e consensuais diagnósticos podem ser considerados novidade. A

persistência do problema, porém, é inédita e significativa.

Nesse cenário, o objetivo imediato da Fundação Getulio Vargas foi identificar uma oportu -nidade de afirmação positiva – e não de simples negação – nessa divergência entre nossas

aspirações para o ensino jurídico e as formas pelas quais ele tem sido praticado. Essa afir -mação se dá na implementação de uma posição alternativa não apenas em relação ao ensino

jurídico tradicional, mas também à própria concepção dominante do papel do pensamento

jurídico e dos juristas na sociedade brasileira. O desafio a ser enfrentado não é somente o

1 Uma versão deste paper foi apresentada no XIV Encontro Nacional do CONPEDI – Conselho Nacional de

Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, realizado entre 0 e 0 de novembro de 200 em Fortaleza. Os autores gostariam de agradecer aos integrantes do grupo de trabalho “Metodologia da Pesquisa Aplicada ao Direito” pelos comentários feitos na apresentação, a Marcelo Barbi Gonçalves pela revisão e a Tânia Abrão Rangel pela leitura prévia e comentários.

2 Cf., no geral, a obra OAB Recomenda – Um retrato dos cursos jurídicos. Brasília: Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil, 2001. Cf. também FALCãO, Joaquim. “Mercado de trabalho e ensino jurídico” e “Os advoga-dos no Brasil”, in Advogados: ensino jurídico e mercado de trabalho. Olinda: Fundação Joaquim Nabuco, 19.

RODRIGUEZ, C.; FALCãO, J. “O Projeto da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV”, in Cadernos

FGV DIREITO RIO, v.1, 200, p. 0-06.

Assim, pode-se dizer que o objetivo mediato do projeto de ensino jurídico da FGV é formar profissionais ca

-pazes de trabalhar no desenvolvimento das instituições democráticas brasileiras: “O Brasil carece de institui-ções que voltem a pensar o Brasil no longo prazo. Instituiinstitui-ções capazes de colaborar na formulação de macro-estratégias, públicas ou privadas, de retomar e operacionalizar objetivos nacionais, sobretudo nestes tempos de

globalização. Objetivos que embora não prescindam, possam ir além do que apenas fixar metas financeiras de

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da reforma do ensino jurídico, mas o da colaboração na institucionalização democrática do

país, que não dispensa a participação do direito e de seus profissionais. Assim, a Escola de

Direito do Rio de Janeiro foi criada tendo em vista esta missão maior: “colaborar no

for-mular de pensamento, estratégias e recursos humanos capazes de, ao lado das escolas e

institutos de administração, economia, finanças e história, desenvolver um Brasil de longo

prazo”.

A inexistência de materiais didáticos adequados a esses compromissos tornou prioritária

a formulação de uma política específica de pesquisa. No atual estágio de implementação,

a pesquisa jurídica da FGV DIREITO RIO está comprometida com a inovação didática e

metodológica, de um lado, e com um novo fazer das instituições democráticas, de outro.6 A

idéia básica a nortear a produção dos materiais didáticos é a noção de problematização, que,

no projeto da DIREITO RIO, assume pelo menos três sentidos distintos, segundo Rodriguez

e Falcão:

“a) o de não naturalizar ou eternizar entendimentos estabelecidos, entendendo as regras

ju-rídicas como “fotografias” de conjuntos concretos de problemas e soluções e cruzamentos complexos entre interesses, ideais, práticas e instituições, historicamente situados e, por

-tanto, contingentes e passíveis de recontextualização e não, por exemplo, como o resultado de depuração racional da realidade, de um lado, ou como expressão da dominação de uma ordem moral ou ideológica, de outro lado;

b) o de desenvolver capacidades analíticas e práticas e fornecer instrumentos conceituais

e outros recursos para a resolução de problemas, procurando responder à inquietude dos alunos face à ausência de uma única solução correta no direito pela oferta de mais de uma solução, a serem avaliadas segundo critérios justificáveis, remetendo à idéia de “engenha

-ria jurídica” e não pela defesa cética da ausência de solução; e

c) o de estimular o engajamento do aluno, por meio de questões concretas ou problemas geradores atuais ou de outra forma instigantes, que o ajudem a criar conexões entre dimen

-sões relevantes de sua vida, do ponto de vista individual e coletivo, suas futuras atividades profissionais e o que for ensinado-aprendido.”7

RODRIGUEZ, C.; FALCãO, J. op. cit., p. 07.

6 Atualmente, para concretizar o compromisso com a reforma institucional democrática, existem dois Centros

de Pesquisa em atividade na FGV DIREITO RIO: o Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) e o Centro de Justiça e Sociedade (CJUS), atuando respectivamente nas áreas de direito autoral e da tecnologia da informa-ção e Poder Judiciário.

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Esses compromissos tornam inviável a manutenção da perspectiva “enciclopedista”

adota-da implícita ou explicitamente em muitas adota-das escolas de Direito no Brasil, na mediadota-da em

que, se o objetivo é desenvolver capacidades analíticas no aluno por meio do estudo de

problemas e casos emblemáticos, será inevitável fazer uma seleção de temas exemplares.

Não há possibilidade, nem necessidade, acreditamos, de se cobrir em detalhes todo um

ex-tenso programa para o curso de Direito. Deve-se fazer uma escolha dos temas, problemas,

controvérsias ou idéias centrais em torno das quais se travam as discussões mais relevantes

– acadêmica e profissionalmente – de cada disciplina.

2. A EXPERIêNCIA DE CONSTRUçãO DO MATERIAL DIDáTICO DE TEORIA DO

DIREITO CONSTITUCIONAL

2.1. O PRESSUPOSTO BáSICO

Os autores enfrentaram esta tarefa, junto com uma equipe de outros três pesquisadores, na

construção do curso de Teoria do Direito Constitucional, a ser ministrado no primeiro

perío-do da Graduação, com carga horária de 60 horas-aula. Dentro da proposta acima delineada,

o critério pelo qual os temas serão selecionados e sistematizados é político, no sentido mais

amplo do termo: trata-se de um curso confessional a favor da Constituição como prática da

democracia. Prática do aluno em sua dupla qualidade: como cidadão que opta pelos valores

do respeito ao outro, da participação, da igualdade, da liberdade e da solidariedade, e como

profissional do direito, que pode e deve ajudar na construção das instituições democráticas. O

compromisso com a democracia faz com que o curso se amolde em suas múltiplas frentes.

Na frente epistemológica, combate toda ambição de exclusividade de qualquer teoria,

dou-trina ou análise em querer definir o que seja uma Constituição. Entende, ao contrário, que

quanto maior o número de enfoques analíticos diferentes à disposição do aluno, melhor e

mais completa será sua compreensão da Constituição – seja ela encarada como norma,

sis-tema ou realidade social. Na verdade, estes enfoques na maioria dos casos se completam,

ao invés de se excluírem.

Na frente de capacitação profissional, leva o aluno a perceber e trabalhar com a Constitui -ção como uma obra aberta, uma questão mais do que uma resposta, um problema mais do

que uma solução. A Constituição aparece como um constructo e não um datum. Como um

Os responsáveis pela elaboração do material didático e do planejamento do curso de Teoria do Direito

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futuro a ser construído – futuro pelo qual ele, aluno, enquanto advogado, juiz ou

procura-dor, é co-responsável. A Constituição surge como um processo em permanente mudança,

dentro do qual o futuro profissional é agente privilegiado. O aluno é intérprete e constituin -te ao mesmo -tempo. Pró-ativo.

Na frente histórica, explicita nas Constituições brasileiras uma tendência das instituições

democráticas – às vezes descontinuada, conflitante e até regressiva, como em 1937 e 1967

– em favor da inclusão política, social e econômica. Esta tendência é facilmente observável

na contínua expansão dos direitos fundamentais e na crescente inclusão eleitoral.9

Finalmente, na frente didática, a Constituição aparece como matéria-prima e fonte para o

debate, discussão, confronto de idéias, elaboração dos raciocínios, exercício da análise e

descoberta da argumentação. As aulas são em grande medida inconclusivas, no sentido de

não apresentarem respostas absolutas ou definitivamente certas, ainda que se incentive a

aluno a emoldurar seus argumentos pelo texto constitucional, pela jurisprudência e doutrina.

Um compromisso com o pluralismo analítico, por sua vez, permite que o aluno opte por sua

própria perspectiva, escolha sua posição, adote seu conceito de Constituição. Como também

são plurais os votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

2.2. A SENSIBILIZAçãO INICIAL (BLOCO I)

O curso é constituído de cinco blocos, a saber: Sensibilização e Introdução (I); O

Plura-lismo Analítico (II); O ConstitucionaPlura-lismo Brasileiro (III); Mutação Constitucional (IV);

Interpretação da Constituição (V). O Bloco de Sensibilização inicia e anuncia o curso. Três

aulas constituem este bloco, que tem dois objetivos principais. Primeiro, relacionar a

prá-tica cotidiana do aluno com a práprá-tica da Constituição. Como cidadão ou profissional do

direito, nada na sua vida escapa à Constituição. Tudo que não é proibido é permitido pela

Constituição. Daí os dois problemas geradores destas aulas dizerem respeito diretamente

às vivências reais do aluno de hoje: na primeira aula, discutimos a constitucionalidade das

regras do vestibular no Rio de Janeiro. Trata-se da Lei Estadual nº. 1/200, uma das

normas que instituíram o sistema de cotas no vestibular da UERJ; na segunda, a qualidade

9 Segundo Wanderley Guilherme dos Santos, baseado em dados do IBGE e do TSE, entre 190 e 1991, o

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do ensino brasileiro. Segundo, debater a constitucionalidade das formas pelas quais a aula é

institucionalizada e conduzida na FGV. Analisaremos, por exemplo, a “constitucionalidade”

(entendida em sentido amplo, como adequação à Constituição) do próprio contrato de

pres-tação de serviços educacionais celebrado entre cada um dos alunos (ou seus responsáveis)

e a FGV. Trata-se de enumerar de forma rápida, mas contundente, os principais

temas/pro-blemas que o aluno enfrentará em seu curso: Constituição como sistema, como decisão,

como topos, como arena de interesses sociais concorrentes, como equilíbrio entre poder e

liberdade e como ata do pacto social.

A primeira aula é um debate sobre a constitucionalidade ou não da lei de cotas para acesso ao

vestibular. O aluno assumirá uma posição determinada e precisará dialogar, discutir, seduzir,

tentar convencer o professor e os seus colegas. Trata-se de estimular a interatividade

pró-ati-va e, desde logo, a interdisciplinaridade. O aluno deverá começar a perceber a distinção entre

uma argumentação do senso comum, e uma argumentação jurídico-profissional com base na

norma, no artigo da Constituição. Além disso, começará a confrontar argumentações

diferen-ciadas e concorrentes, na medida em que disputam um bem escasso: ser constitucional ou

não. No final da aula, deve-se esclarecer sobre o júri simulado, que será a última aula do cur -so, e estabelecer o cronograma e as responsabilidades pertinentes a cada um dos grupos e/ou

dos alunos. A função pedagógica primordial da atividade do júri, ao fim do curso, é permitir

aos alunos que retornem à mesma questão discutida na primeira aula (a constitucionalidade

da Lei Estadual nº. 4.153/2003), mas, desta vez, com os instrumentos analíticos profissionais

básicos minimamente dominados e a capacidade de argumentação já desenvolvida.

A segunda aula tem papel complementar. Pede-se que olhem para a própria classe e

respon-dam à pergunta: esta aula é constitucional ou não? De início, relaciona-se a relação social

(aula) com a relação jurídica (Constituição). Em síntese, a mensagem é a de que qualquer

re-lação social pode ser analisada como rere-lação constitucional. Mas o aluno vai perceber com

surpresa que a Constituição é ao, mesmo tempo, o tudo e o nada, o limite e a possibilidade,

o consenso e o conflito. O texto constitucional é tão contraditório quanto sistemático; suas

expressões são tão precisas quanto vazias. Em ambas as aulas, o aluno verá formuladas, por

seus colegas, infindáveis soluções baseadas nos mais variados e improváveis dispositivos

constitucionais. A aula será sempre inconclusiva. Não se procura a resposta certa, mas a

ar-gumentação convincente. A Constituição aparece como algo que eles poderão construir no

futuro; a própria profissão jurídica só faz sentido porque a Constituição – como os demais

ordenamentos jurídicos – é potencialmente imprecisa e contraditória. No fundo, trata-se

de reconhecer como premissa didática a crítica que muitos autores fazem acerca do caráter

contraditório de nossa Constituição – que conduz a sociedade em direções liberais e

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intervenção estatal. Com isso, estimula-se desde o início um aluno pró-ativo, imaginativo,

crítico e insatisfeito, diante de uma obra aberta.

A seguir, o curso passa por um anticlímax. A terceira aula é uma leitura dirigida com um

úni-co objetivo: úni-com a Constituição diante de si – primeiro na mão e, depois, e na tela do úni-

compu-tador – os alunos vão descrevê-la, aprender a manuseá-la e a buscar informações pertinentes

sobre os seus dispositivos e as suas origens. É a Constituição como instrumento profissional:

abrir, ler e aprender a usar. A aula se passa no laboratório de informática, de modo que cada

aluno terá à sua disposição um computador para realizar as tarefas solicitadas pelo professor.

A dificuldade de encontrar os artigos pertinentes nas duas primeiras aulas do curso terá incu

-tido nos alunos a percepção de que é preciso conhecer melhor a topografia e a estrutura básica

da Constituição, bem como a lógica da divisão em artigos, parágrafos, incisos e alíneas.

Por outro lado, a maioria dos alunos nessa idade têm consciência do potencial das

ferra-mentas de busca e de outras fontes na internet para realização de pesquisas. Mais do que

estimular, o desafio é mobilizar os alunos a se preocuparem com a confiabilidade das in

-formações que encontram na internet, isto é, a serem mais seletivos. Existem sites oficiais que se prestam especificamente às buscas de legislação e de jurisprudência. Esse ponto

será enfatizado por meio de atividades de sala de aula, sob a supervisão dos professores da

disciplina, envolvendo pesquisa de projetos de lei e propostas de emenda constitucional em

tramitação no Senado e na Câmara dos Deputados, bem como de algumas decisões judiciais

locais, nacionais e estrangeiras.

2.. O PLURALISMO ANALíTICO (BLOCO II)

Neste ponto, o curso se debruça sobre um de seus pilares principais: a possibilidade de

múltiplas perspectivas na análise da Constituição. O objeto do conhecimento – a

Constitui-ção enquanto norma positiva estatal – pode até ser provisoriamente único e unívoco, mas

as maneiras, seus significados, o modo de entendê-la e de defini-la são necessariamente múltiplos. Dentro do repertório tradicional, o curso não adota uma única definição do que

seja Constituição, mas estimula múltiplos conceitos dentro de uma epistemologia aberta.

Nenhuma estratégia analítica exclui a outra aprioristicamente. Mesmo juntas, mostram ao

aluno que podem ser complementares, às vezes suficientes, às vezes insuficientes, depen

-dendo da finalidade da análise.

Este pluralismo analítico não implica relativismo conceitual, mas opção pragmática, onde

(19)

alcançar, seja do juiz, do advogado ou do cidadão. Neste ponto, o curso não se situa no reino

da dogmática, mas da pragmática, entendida como a relação entre o signo “Constituição” e

seu uso socialmente concreto. O Bloco II se divide em dois grupos de aulas: Constituição

como norma e Constituição como realidade social. Dentre as múltiplas análises possíveis,

e dentre aquelas utilizadas no curso, foram escolhidas as seguintes, a título de exemplifica -ção: Constituição como decisão, Constituição como norma, Constituição como fato social,

Constituição democrática como equilíbrio entre poder e liberdade e ata do pacto social.

As três primeiras aulas do bloco enfocam a Constituição como norma: sistema normativo,

expressão da norma fundamental e normas em conflito. Trata-se de tema inevitável: onde

está a norma fundamental? Esta aula tem objetivo estratégico principal. Ao mesmo tempo

em que se constrói a noção da Constituição como vértice hierárquico do ordenamento

jurídi-co, demonstra-se, por meio da pergunta-título, a insuficiência da concepção de Constituição

exclusivamente como norma. Trata-se de um subsistema que só se fecha com recursos a

elementos extrajurídicos – religiosos, por exemplo, na resposta jusnaturalista para a questão

da norma fundamental, ou políticos e ideológicos, na resposta ao problema da solução de

antinomias constitucionais. Ou seja, a Constituição é um subsistema que se comunica com

outros subsistemas não-jurídicos, retirando deles sua força e sua fraqueza. Esta insuficiência lógico-formal se reflete também na insuficiência da validade e da legalidade como únicos parâmetros de avaliação do sistema normativo. A legitimidade e eficácia são indispensáveis tanto para o exercício profissional, quanto para uma epistemologia mais abrangente.

Paralelamente a este objetivo epistemológico estratégico, deve ser passada uma série de

noções mais técnicas, como os conceitos de hierarquia e rigidez, validade, legalidade,

coe-rência e compatibilidade. Uma demonstração sobre a hierarquia das normas acompanha o

material didático dos alunos, que devem reconstruir em sala de aula a “cadeia de validade”

que liga o ato do agente de limpeza que aplica uma multa na esfera administrativa até a

Constituição Federal de 19. A discussão desse caso coloca em pauta a distinção entre os

níveis constitucional e infraconstitucional.

Em seguida, entram em cena as antinomias constitucionais, reforçando a tese da insuficiên -cia da perspectiva lógico formal e apontando para o ordenamento como sistema aberto, no

qual necessariamente se discutirão princípios, valores, preferências e escolhas socialmente

fundamentadas. As soluções construídas pelos tribunais para resolver os conflitos entre as

normas constitucionais – no caso desta aula, entre a liberdade de expressão e o direito à

honra – também permite entrever a Constituição como um sistema em mutação. A obra é

aberta para permitir que o aluno seja gestor de seu futuro e o faça para um desenvolvimento

(20)

O próximo grupo de aulas trata da Constituição como realidade social. Responde-se à

pergun-ta: de onde nasce e como nasce a Constituição? Os objetivos estratégicos principais são: 1)

enfocar a Constituição como uma decisão normativa coercível, uma escolha entre alternativas

incompatíveis; 2) demonstrar a vinculação das alternativas incompatíveis a interesses sociais

concorrentes. Trata-se de evidenciar a origem social das constituições, com vistas a criticar o

enfoque puramente lógico-formal como algo neutro, acima das paixões humanas. A

Constitui-ção enquanto decisão se divide em dois momentos: o da elaboraConstitui-ção e o da interpretaConstitui-ção.

Na primeira aula, a decisão aparece como uma resposta do sistema jurídico a um conflito

inicial, que pode ser a competição por um novo texto constitucional ou por uma nova

inter-pretação da Constituição já existente. A aula começa com a pergunta: o que vai e o que não

vai para a Constituição? O que deve ser regulado no nível constitucional e o que deve ser

regulado no nível infraconstitucional? Na índia, por exemplo, a proteção das vacas poderia

ser matéria constitucional; no Brasil, por sua vez, a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica

foram contempladas com a proteção da Constituição. Qual o critério utilizado pelo

Consti-tuinte brasileiro para decidir quais matérias seriam alçadas à condição de normas

constitu-cionais? Por que a Constituição de 19 protege o Colégio Pedro II? Que teoria

constitucio-nal explica este dado?

A partir da discussão desses exemplos, a Constituição surge sucessivamente como decisão,

arena na qual os interesses sociais se conflitam e se acordam e, por fim, uma precária ata do

pacto social. Dentro deste contexto, alguns conceitos mais técnicos são transmitidos, tais

como: normas constitucionais e normas infraconstitucionais, Constituição formal e

Consti-tuição material, poder constituinte originário e derivado. Apesar de abrir a possibilidade de

tudo ir para a Constituição, o curso explicita que uma certa tipologia tem consenso na

co-munidade de intérpretes: a organização do Estado, os direitos fundamentais e as chamadas

“normas programáticas”.10

A aula seguinte enfoca a Constituição especificamente como ata do pacto social. O que nos permite entendê-la como documento escrito, que pressupõe conflitos e divergências, que

resume o consenso, e que este consenso vem dos sujeitos, dos representantes dos cidadãos

presentes na reunião, viventes na nação – enfim, presentes na constituinte. Este conceito é retirado do constitucionalismo brasileiro, mais especificamente do pensamento de Frei Ca -neca, em sua disputa (ou busca infrutífera) de um pacto com D. Pedro I. Conceitos clássicos

como Constituição promulgada/outorgada e Assembléia Nacional Constituinte podem ser

trabalhados neste ponto.

10 A tipologia utilizada em sala de aula é aquela articulada por Luís Roberto Barroso em O Direito

(21)

A terceira aula deste bloco começa com a radical posição de Ferdinand Lasalle e a pergunta:

o que aconteceria se um dia o mundo amanhecesse sem qualquer vestígio de Constituição?11

O que mudaria, se é que algo mudaria? Busca-se com isso levar o aluno a identificar os fa -tores reais de poder como fa-tores constituintes, como matéria-prima da Constituição. Ao se

tratar da tensão entre Constituição real e constitucional formal, utiliza-se a classificação tra -dicional de Karl Loewenstein, que sistematiza os encontros e desencontros entre a realidade

e o dever ser nas categorias Constituição normativa, Constituição semântica e Constituição

nominal.12 Um pequeno texto de Humberto Maturana oferece uma conotação extremamente

contemporânea, ao sublinhar a importância do domínio emocional e do reconhecimento da

legitimidade do outro no cumprimento e elaboração da Constituição.1 O pluralismo

analíti-co se amplia neste horizonte psianalíti-co-social.

Fecha-se o bloco com uma aula sobre Validade, Legalidade, Legitimidade e Eficácia. Estes

clássicos conceitos da doutrina jurídica não excludente ajudarão a analisar as Constituições

brasileiras no próximo bloco, a história das constituições. Ao mesmo tempo, servem de

tipologia sobre as diferentes maneiras pelas quais se apresenta a tensão entre Constituição

como norma e Constituição como realidade social. A noção de validade decorre do conceito

de sistema normativo fechado, que só pode ser aberto por meio do conceito de legitimidade,

que, por sua vez, necessita do conceito de eficácia e, em nosso curso, do conceito de domí -nio emocional de Maturana. Há que se sublinhar, pois, a seqüência destes conceitos:

vali-dade, legalivali-dade, legitimidade e eficácia. A Constituição deverá ser analisada com recurso

conjunto aos quatro. Esta aula se desenvolve basicamente a partir do caso do fechamento do

comércio no Rio de Janeiro, em 200, por ordem do suposto líder do Comando Vermelho,

que permite inclusive a discussão da legitimidade/eficácia dos dispositivos do Código Civil em relação aos conflitos de propriedade que se passam diariamente em favelas cariocas

como a Rocinha.

1.1.. O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO (BLOCO III)

Entra-se, então, no Bloco III, centrado na história das constituições e no constitucionalismo

Brasileiro. Aqui, temos três objetivos principais. O primeiro é montar em sala de aula um

“laboratório social” para os diversos enfoques analíticos apresentados no primeiro bloco.

Ao contar a história das constituições, conta-se a história do conflito e do consenso entre

11 LASALLE, F. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Liber Juris, 199 12 LOEWENSTEIN, K. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel Derecho, 1962.

(22)

interesses sociais plurais, conflitantes às vezes, concorrentes sempre – uma interação nem

sempre satisfatória entre liberalismo, socialismo, absolutismo, neoliberalismo etc. A

mu-dança de Constituição aparece como ruptura ou evolução do subsistema político e

econô-mico com repercussões no sistema normativo. Sempre será no seu primeiro momento a

ex-pressão de um pacto com maior ou menor dose de consenso, com maior ou menor diferença

entre os vencedores e vencidos. O quadro final expressa a Constituição num emaranhado de

subsistemas que interagem.

O segundo objetivo é historiográfico, na medida em que familiariza os alunos com os fatos,

personagens e acontecimentos da evolução constitucional brasileira, além das principais

características de cada Constituição. A ênfase, neste ponto, deve ser dada na tessitura das

relações entre todas, bem como na inter-relação delas com ideologias mundiais: liberalismo,

fascismo, socialismo etc. Acena-se para a permanência de questões que atravessam todas as

constituições, entre as quais: como se equilibram poder e liberdade na organização da

socie-dade? O poder será exercido de forma mais centralizada ou mais descentralizada? Existem

limites mínimos e máximos para a participação cidadã nas decisões do Estado?

Finalmente, o terceiro objetivo é a interpretação propriamente dita da história

constitu-cional do Brasil, que aponta para as Constituições como um projeto de poder das elites,

renovado a cada momento, e que procura incorporar os demais segmentos sociais, mas que,

ao fazê-lo, invariavelmente acaba por se democratizar, ainda que lenta e gradualmente. Na

medida em que o curso defende a posição de “a Constituição” inexiste sem interpretação,

a mensagem básica é a de que a Constituição de 19 é em grande parte o que os futuros

profissionais queiram dela praticar.

O bloco começa com uma aula sobre o Brasil Colônia, com dois objetivos principais. Por um

lado, trata-se de historiar no Brasil a passagem do governo dos homens para o governo das

leis (teria sido o Regimento de Thomé de Souza a primeira “Constituição” brasileira?). Surge

o tema do Estado de Direito, que será recorrente ao longo do curso. Esta passagem significa

que a Constituição surge comprometida com a tensão entre organização do poder e defesa dos

direitos da cidadania. A dicotomia poder e autoridade, de um lado, e sociedade e cidadania,

por outro, será um eixo também recorrente neste bloco. Por outro lado, a aula realiza também

um aggionarmento do tema, por meio da comparação com o exemplo da Lei de

Adminis-tração do Iraque para o Período de Transição (200) – uma colônia contemporânea? A aula

termina com uma definição provisória dos aspectos formais e possivelmente substanciais do

Estado de Direito, dentro das perspectivas de J. J. Gomes Canotilho e Carl Schmitt.1

1 CANOTILHO, J.J. Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999; SCHMITT, C. Teoría de la

(23)

As próximas quatro aulas têm um foco e uma mensagem comuns. Trata-se de esclarecer

como o liberalismo penetra no constitucionalismo brasileiro e se faz seu instrumento. O

foco são as relações entre Constituição e ideologia liberal. A mensagem é a evidência da

inserção de nossa história constitucional na história das Constituições do mundo ocidental,

sobretudo como projeto liberal mundial. A união genética entre constitucionalismo e

inde-pendência nacional se faz dentro de um projeto liberal global. Por outro lado, é também a

crítica de como absorvermos essa tradição. Em vários momentos, ocorreu e continua a

ocor-rer uma importação seletiva de leis e princípios. Por isto, as aulas se agrupam duas a duas. A

Constituição de 12 se alinha ao constitucionalismo francês e à revolução de 179. Surge

a questão dos direitos e garantias individuais e dos limites do poder estatal. A Constituição

de 191, por sua vez, alinha-se ao constitucionalismo norte americano e os foundingfathers.

Surge a questão dos três Poderes e da organização democrática do próprio Estado federal.

Esta absorção de estrangeirismos deve ser enfocada por meio dos aspectos positivos e

nega-tivos, como realidade e como mímica. O que une essas quatro aulas é a tentativa de se forjar

no Brasil um Estado de Direito republicano. Sempre que possível, alguns conceitos técnicos

devem ser sublinhados, tais como: Constituição sintética e Constituição analítica, poder

constituinte originário e poder constituinte derivado, Constituição outorgada e Constituição

promulgada. Não utilizamos “casos” em sentido estrito neste bloco. Preferimos colocar o

aluno em contato direto com os diversos textos constitucionais nacionais e estrangeiros,

bem como os documentos originais dos debates de então: os discursos de D. Pedro I e de

Robespierre e os Federalist Papers, além da proposta de Frei Caneca, entre outros.

As próximas aulas enfocam a Era Vargas e incluem as Constituições de 19, 197 e 196. O

foco são as mutantes relações entre regime político e Constituição. A partir daí é que se consolida

a idéia, presente em 192 e 1991 e ainda predominante na doutrina, de que mudar de Constituição

significa ruptura política. Esta noção será desfeita na Constituição de 1988, que, ao invés de surgir

de uma ruptura, veio de uma negociação. ênfase também deverá ser dada ao surgimento de um

concorrente ao projeto constitucional liberal capitalista: os direitos sociais e trabalhistas, revelando

a ascensão do trabalhador como ator jurídico e político e a influência do socialismo nas constitui -ções brasileiras. Ao mesmo tempo, ressurge a experiência de um governo dos homens, explicitado

pelos decretos-lei, colocando em cheque a noção de Estado de Direito liberal. No período de 19

e 197, se consolida a matriz militar que, de alguma forma iniciada em 191, será modernizada na

revolução de 196. O questionamento do Estado de Direito nesse período é feito por um caso de

tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que pretende

nos dias de hoje, na vigência da Constituição de 19, aplicar os mesmos critérios, normas e

(24)

A aula seguinte tem o nome de “A convivência contraditória”. Enfoca as Constituições

militares de 1967 e 1969, a convivência entre os atos institucionais e as Constituições. Um

sintoma da tentativa de convivência entre o governo dos homens (os militares e a segurança

nacional) e o governo das leis (a tripartição dos poderes e de eleições controladas). Existe

Estado de Direito sem democracia? A aula inicia com o preâmbulo do Ato Institucional nº

1, abordando a questão da legitimidade do poder revolucionário. Há que se ressaltar a

di-mensão legitimadora do desenvolvimentismo (eficácia constitucional), sem o qual não há

aceitação do regime político. Começa-se com a ruptura jurídico-política e se termina com a

crise de legitimidade consubstanciada nas “Diretas Já” e na negociação jurídico-política, na

abertura lenta, gradual e segura, base da nova Constituição de 19.

As próximas duas aulas abordam a questão do Estado Democrático de Direito. Um conceito

– ou melhor, uma ênfase brasileira – que surge como crítica às Constituições militares e ao

autoritarismo e, ao mesmo tempo, anuncia e legitima a Constituição de 19 e a

democra-cia. Os alunos já terão discutido democracia no curso de Teoria do Estado Democrático,

ministrado também no primeiro período; aqui, trabalharemos com os conceitos de

democra-cia, autoritarismo e ditadura a partir de um artigo de AdamPrzeworski16. O curso distingue,

como aliás fez nossa história, Estado de Direito de Estado Democrático de Direito. Nem

todo Estado de Direito é democrático. O exemplo nacional já terá sido dado na aula

ante-rior. A noção de Estado de Direito é contrastada com a de Estado Democrático de Direito,

utilizando-se o exemplo da Assembléia Nacional Constituinte, entendida como o

proces-so pelo qual se optou por uma Constituição analítica, pluri-ideológica, e contraditória. A

promulgação desta Constituição tornou necessária uma mudança radical do paradigma de

interpretação constitucional. Anuncia-se, desde logo, a importância de uma interpretação

sistêmica, integradora e legitimadora. Sem essa sensibilidade na aplicação da Constituição,

o aluno não será um bom profissional.

O bloco se encerra com a Constituição de 19, apresentada ao aluno por meio de duas

ên-fases. A primeira é o próprio conceito de democracia que adota, o conceito de democracia

concomitante, que combina de forma não-excludente institutos de democracia direta,

re-presentativa e participativa.17 No fundo, este conceito assimila vertentes liberais e vertentes

socialistas na formatação de nosso regime político, de nosso Estado. A segunda é o anúncio

do surgimento e crescimento de um terceiro ator entre o Estado e o cidadão, rompendo com

as dicotomias radicais “público x privado”, “planejamento x mercado”, “lei x contrato”,

16 PRZEWORSKI, A. “Amas a Incerteza e Serás Democrático” in Novos Estudos CEBRAP, n.09,

jul/19.

17 FALCãO, J. “A Transformação dos Partidos e da Lei” e “A Democracia Concomitante”, in Democracia,

(25)

“poder x liberdade”. Trata-se do Terceiro Setor, que não se enquadra totalmente na missão

de organizar o Estado, nem totalmente na missão de defender direitos individuais.1

A última aula é, ao mesmo tempo, um resumo e uma visão panorâmica de nosso

consti-tucionalismo. O entendimento da Constituição de 19, como Constituição cidadã, será

feito a partir de um sintético quadro comparativo das constituições, demonstrando como o

Brasil evoluiu para chegar até onde estamos hoje. Didaticamente, a discussão parte sempre

da Constituição de 19 e o quadro atua como um flashback interpretativo. Este flashback

envia duas grandes mensagens, já mencionadas: a tendência constitucional em favor da

democracia e da inclusão social e política, e o futuro constitucional em aberto. O passado

informa o presente, mas não necessariamente deforma o futuro.

1.1.. MUDANçA CONSTITUCIONAL (BLOCO IV)

O bloco sobre constitucionalismo demonstrou como nascem e morrem as Constituições no

Brasil, ou seja, como o Brasil tem mudado de Constituição. As três aulas do próximo bloco

mostram de que modo o Brasil muda ou pode mudar a Constituição atual. Confirma-se a

Constituição como processo aberto, construção, e não como um dado estático. Este bloco

tem uma mensagem principal: ao contrário do que informa a doutrina clássica, a mudança

na Constituição não ocorre apenas pela revolução ou mesmo pela política em sentido estrito.

A Constituição vigente pode ser mudada por dois mecanismos básicos: explicitamente, pela

emenda constitucional (e aí se muda o texto), ou implicitamente, pela interpretação judicial

ou legislativa, e aí não se muda o texto.

O bloco começa com duas aulas de mudança de texto normativo. Uma aula sobre processo

legislativo dará aos alunos noções básicas das diferentes espécies normativas, da hierarquia

das leis, da reserva legal e da rigidez normativa. Dentro do processo legislativo, será

enfa-tizado o processo de mudança formal da Constituição (emenda), e, em uma aula específica,

a edição de medidas provisórias, que podem estar se tornando o processo legislativo por

excelência. Na terceira aula, procura-se demonstrar a tese de que mudança constitucional

pode ser obtida também por interpretação. Esta noção será abordada a partir do contraponto

com o processo de mudança formal, por meio de emenda constitucional. Nesse sentido,

serão abordados brevemente os limites do poder de reforma da Constituição, anunciando-se

a pedra no caminho – as clausulas pétreas, tema que será aprofundado em Direito

(26)

processo constitucional norte-americano é importante; este processo também poderia ser

encontrado aqui no Brasil. As duas interpretações possíveis – judicial e congressual – serão

focalizadas pelos estudos de caso específicos. No fundo, existe uma sub-reptícia disputa de poder a respeito de quem dará a palavra final sobre os conflitos entre os poderes – legislativo

ou judiciário. O caso escolhido para análise é o da decisão do Supremo quanto à aplicação

da licença-maternidade a mães adotivas.19 Anuncia-se, assim, o último bloco: a

interpreta-ção judicial da Constituiinterpreta-ção.

1.1.6. A INTERPRETAçãODA CONSTITUIçãO (BLOCO V)

O bloco final tem uma mensagem-síntese principal: inexiste Constituição enquanto só texto, objeto e significante. Constituição é texto e interpretação, sujeito-intérprete e objeto, sig

-nificante e significado. Mais uma vez, defende-se a tese da Constituição como uma arena

sem vencedores prévios, um sistema aberto à construção por meio da argumentação.

De-fende-se uma epistemologia constitucional democrática. Este bloco é, no fundo, um grande

laboratório onde o pluralismo analítico e a história do constitucionalismo brasileiro serão

aplicados como instrumentos da vida profissional futura dos alunos, como cidadãos, juízes

ou advogados. Uma segunda mensagem, tão importante quanto a primeira, é que este

arse-nal aarse-nalítico não existe por si só. Ele é apenas meio para que os advogados e juízes

argu-mentem, raciocinem, expressem, defendam e legitimem seus interesses ou de seus clientes,

com maior ou menor grau de consciência cívica. Nesse sentido, os interesses sociais que no

constitucionalismo assumiram uma dimensão macro – interesses de classe, de grupos etc.

– agora assumem dimensão micro, como interesses dos clientes, ou do autor e réu, ou ainda

do próprio juiz.

O bloco joga com um conceito simplificado de interpretação, entendida por meio de seus

três elementos básicos: sujeito, método e objeto. Método entendido não no sentido

carte-siano, isto é, como o conjunto de regras graças às quais os que as observam exatamente

jamais tomarão como verdadeiro o que é falso, mas apenas como conjunto de instrumentos

conceituais possivelmente úteis na aplicação de normas jurídicas, em especial das normas

constitucionais. Iniciamos com uma aula que, ao invés de enfocar o objeto, o artigo

constitu-cional, encaminha-se para o sujeito. A decisão sobre o que é ou não constitucional é um ato

de conhecimento ou um ato de vontade? Como ato de conhecimento, o intérprete se anularia

e somente conta o objetivo como um datum. Se prevalecer o ato de vontade, a interpretação

aparece como um constructo e múltiplas possibilidades se abrem; muitos seriam os sujeitos

(27)

e todos são muito imprevisíveis. Passa a existir uma incerteza que é o sustento de um

plura-lismo interpretativo defendido pelo curso.

O texto “A Interpretação”, de Hans Kelsen, desmistifica a apropriação que o formalismo jurídi

-co autoritário, predominante no regime militar, fez do próprio Kelsen, na medida em que

afas-tou do direito qualquer julgamento de valor – sobretudo o de liberdade – e tenafas-tou reduzi-lo a

uma análise formal do ordenamento.20 Esta apropriação, verdadeira estratégia napoleônica para

impedir que se toque no “código civil”, é mecanismo excludente da participação da

comunida-de comunida-de intérpretes no processo comunida-de atribuição comunida-de significado à Constituição e às normas jurídicas

em geral. Ao mesmo tempo, serão explicitados os mecanismos institucionais para evitar o

sub-jetivismo puro: o duplo grau de jurisdição, os recursos, a decisão coletiva nos órgãos colegiados

etc. O caso selecionado varia a cada período letivo, mas, em geral, escolhe-se um acórdão do

Supremo em uma decisão polêmica, com votos divergentes, permitindo aos alunos relacionar

as opções jurídicas expressas em cada voto com características pessoais dos ministros.

A segunda aula centra-se não no interprete, mas no texto legal, objeto da interpretação. Que é

esta norma? Trata-se de um “ponto fixo” a partir do qual diversos significados vão se conflitar, sendo a própria escolha do ponto fixo matéria de disputa. Qual o artigo a aplicar? Como inter

-pretá-lo? Escolhido esse ponto fixo, pode ser questionado ou ser aceito pelos participantes da

argumentação. Daí porque a aula caminha para a relação entre pensamento dogmático e

pen-samento zetético, conceitos com os quais os alunos entrarão em contato por meio do texto de

Tércio Sampaio Ferraz Jr. sobre ensino jurídico.21 Em seguida, será demonstrado que o artigo

constitucional – ponto fixo dogmático a partir do qual não se tem mais uma atitude zetética – é na

verdade um “topos”, caixa vazia que pode acomodar várias interpretações, arena onde brigam as

interpretações concorrentes que lutam pelo bem escasso: só uma será considerada constitucional.

O caso estudado é a decisão do STF no HC 717- RS, envolvendo a possibilidade de coleta

forçada de material genético para exame de DNA em ação de investigação de paternidade.

A terceira e a quarta aula do bloco dizem respeito aos instrumentos da interpretação

constitu-cional. Não mais o sujeito, nem o objeto. Enfoca o “método”, isto é, os instrumentos de

cons-trução de argumentos à disposição dos intérpretes. O objetivo é treinar os alunos no emprego

de conceitos técnicos hoje largamente utilizados na aplicação das normas constitucionais.

Inicia com princípios de interpretação especificamente constitucional, a partir das premissas

da supremacia e da unidade da Constituição, que pedem uma interpretação sistemática e

integradora. Este compromisso com a coerência e a sistematicidade na aplicação é

particular-mente importante se levarmos em conta o processo genético constituinte que nos legou uma

(28)

Constituição analítica, prolixa e até mesmo potencialmente contraditória. Vale enfatizar que

o decisivo aqui não é discutir em teseo catálogo de princípios expostos pela doutrina, mas

sim enfatizar o possível caráter instrumental pragmático destes princípios. O caso envolve

debate sobre saúde pública e liberdade de informação em torno das restrições legais à

propa-ganda de cigarro, a partir de ADIn proposta pela Confederação Nacional da Indústria.22

Na quarta aula, a interpretação especificamente constitucional continua a ser desenvolvida,

agora centrada nos conceitos de razoabilidade e proporcionalidade. A razoabilidade se

dis-tingue da racionalidade por apontar para uma construção de justiça e correção mais próxima

do acordo de sujeitos, enquanto a racionalidade aponta para uma noção de justiça e correção

que é externa e independente do acordo dos sujeitos. A razoabilidade é construída cada vez

mais por uma comunidade de intérpretes e por fatores extrajurídicos. Já a proporcionalidade

visa a ser um instrumento capaz de “medir” a adequação entre fim e meios, a necessidade da

medida, e o balancing entre direitos promovidos e direitos sacrificados.

O bloco acaba com uma quinta e última aula, na qual se fará a análise da interpretação de

bloqueio e da interpretação legitimadora. A interpretação legitimadora aponta para um

ati-vismo, fruto de uma aliança sobretudo entre Ministério Público e juízes. A aula será uma

aprofundada análise do parecer “Direitos da Mulher: Igualdade Formal e Igualdade

Mate-rial”, de Joaquim Falcão.2 Em sala de aula, o professor fará um “making of” da elaboração

de um raciocínio jurídico sobre um caso concreto, procurando retratar as idas e vindas do

problema até a Constituição e de volta ao problema, na tentativa de construção de uma

ar-gumentação coerente e persuasiva.

Finalmente, o curso se encerra com um júri simulado sobre a lei de quotas, revisitando-se

a primeira aula. Como observado, o objetivo é evidenciar para os alunos a diferença entre

uma argumentação de senso comum, que deverá ter predominado na primeira aula, e a

argu-mentação jurídico-profissional que foi incorporada ao longo do curso.

. OBSERVAçõES FINAIS

Neste artigo, tentou-se fazer uma síntese dos principais problemas enfrentados e os

compro-missos assumidos na construção do material didático de Teoria do Direito Constitucional.

22 ADIn n° 11.

2 FALCãO, J. “Direitos da Mulher: Igualdade Formal e Igualdade Material”, in AMARAL JR., A.;

(29)

Dentro do escopo deste registro, seria impossível analisar em detalhes todos os casos

sele-cionados (um para cada aula) e as múltiplas maneiras pelas quais eles podem ser trabalhados.

Assim como o próprio curso, o detalhamento da estratégia didática permanece em aberto, em

construção. Nesse sentido, vale insistir que se trata de uma experiência; enquanto

escreve-mos, o curso está terminando de ser ministrado pela segunda vez e já conta com alterações,

cortes e aprimoramentos significativos em relação à primeira versão.

A recepção dos alunos tem sido bastante positiva, mas ainda é cedo para uma avaliação

conclusiva. Em todo caso, a mensagem central do curso e o seu compromisso pluralista e

democrático parecem ter ficado claros. Do dissenso na elaboração ao dissenso na aplicação,

passando por estágios de precário consenso obtido nas decisões (constituintes, legislativas

ou judiciais), a Constituição deve ser encarada pelos alunos como a arena que torna possível

a própria existência de sua prática profissional.

Se conseguirmos que os alunos construam progressivamente essa perspectiva em relação à

Constituição de 19 ao longo das 0 aulas da disciplina, e que a utilizem para dar um

sen-tido ao domínio dos instrumentos técnicos necessários à sua vida profissional (e que devem

ter aprendido a manusear durante o curso), acreditamos que a nossa experiência poderá ser

considerada bem-sucedida.

. REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS

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Referências

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