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Cad . Saúd e Púb lica, Rio d e Jane iro , 16(3):847-850, jul-se t, 2000 N O TA RESEARCH NO TE
Cult ura de organizações públicas
de saúde – not as sobre a const rução
de um objet o
The culture o f p ub lic he alth o rg anizatio ns:
no te s o n the co nstructio n o f an o b je ct
1 Dep artam en to d e Ciên cias Socia is, Escola N a cion a l d e Sa ú d e Pú b lica , Fu n d a çã o Osw a ld o Cru z . Ru a Leop old o Bu lh ões 1480, 9oa n d a r, Rio d e Ja n eiro, RJ
21041- 210, Bra sil. v a it sm a n @en sp .fiocru z .b r
Jen i Va it sm a n 1
Abst ract T h e a u t h or d efin es som e cen t ra l con cep t s for con st ru ct ion of t h e su b ject of “p u b lic h ea lt h orga n iz a t ion s”. Th e con cep t of cu lt u re is ex ceed in gly b roa d , a n d m u st b e a d ju st ed t o t h e t yp es of p a rt icu la r p h en om en a a n a lyz ed . As p erceiv ed in a p u b lic h ea lt h orga n iz a t ion , cu lt u re im p lies p h en om en a b elon gin g t o d ifferen t socia l d im en sion s a n d w h ich ca n b e gra sp ed t h rou gh t h e con cep t s of p olit ica l, civ ic, orga n iz a t ion a l, a n d p rofession a l cu lt u re.
Key words Cu lt u re; Orga n iz a t ion s; Hea lt h
Resumo N est a s n ot a s, d efin o a lgu n s con ceit os n ecessá rios p a ra a con st ru çã o d o objet o “cu lt u ra d e orga n iz a ções p ú b lica s d e sa ú d e”. O con ceit o d e cu lt u ra é a m p lo e d ev e ser a ju st a d o a os t ip os d e fen ôm en os p a rt icu la res q u e se p ret en d e a n a lisa r. Ta l com o é p erceb id a em u m a orga n iz a çã o p ú b lica d e sa ú d e, a cu lt u ra im p lica u m a im b rica çã o d e fen ôm en os d e d ist in t a s ord en s, a n a lisa -d os m e-d ia n t e os con ceit os -d e cu lt u ra p olít ica , cu lt u ra cív ica , cu lt u ra orga n iz a cion a l e cu lt u ra p rofission a l.
VAITSMAN, J.
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Cad . Saúd e Púb lica, Rio d e Jane iro , 16(3):847-850, jul-se t, 2000
Nestas n otas, faço algu m as reflexões a resp eito d e q u estões con ceitu ais relativas à con stru ção d o ob jeto “cu ltu ra d e organ izações p ú b licas d e sa ú d e”, n o p ro jeto “Cu ltu ra Orga n iza cio n a l e Mu d a n ça : u m a a n á lise d os p rocessos d e reestru tu ração organ izacion al em in stitu ições p ú -b licas d e saú d e”. O p rojeto faz p arte d a lin h a d e in vestigação Avaliação e Desem p en h o d e Políti-ca s Pú b liPolíti-ca s d a Esco la Na cio n a l d e Sa ú d e Pú
-b lica (ENSP) e p reten d e in corp orar a d im en são cu ltu ral n a an álise d as m u d an ças organ izacion a is, a s q u a is vêm seizacion d o p ro p o sta s e/ o u im -p lem en ta d a s n o seto r sa ú d e co m o -p a rte d o p rocesso d e reform a d o Estad o.
A p a rtir d a ú ltim a d éca d a , vem se p ro cu -ran d o trazer p ara a ad m in istração p ú b lica b ra-sileira a id éia d e revolu ção geren cial q u e ocor-reu n a ad m in istração d e em p resas p or m eio d a flexib ilização, d a d escen tralização d os p roces-sos d e d ecisão e trab alh o, d o con trole d e resu l-ta d os, em lu ga r d o con trole d e p rocessos e d a ên fa se n a q u a lid a d e e eficiên cia d o s ser viço s p restad os. Esta con cep ção – d esen volvid a p ara o co n texto n o rte-a m erica n o p rin cip a lm en te p or Osb orn e & Gaeb ler (1992) – p arte d o p rin -cíp io d e q u e os servid ores p ú b licos teria m a l-gu m as características, tais com o: com p etên cia p a ra se a u to gerir, a u to n o m ia , in icia tiva , res-p on sab ilid ad e e com res-p rom etim en to com a coi-sa p ú b lica.
O geren cialism o n a ad m in istração p ú b lica p ressu p oria a su b stitu ição d as p ráticas e valo-res trad icion ais, p articu laristas, p or ou tras qu e, com b in ad as ao u n iversalism o exp lícito n a con -cep çã o d e Esta d o m o d ern o, a lca n ça ssem efi-ciên cia e eficá cia . Isso ta m b ém su p o ria u m a m u d an ça n a relação en tre os agen tes d o estad o e os d a socied ad e, ou seja, d os su jeitos q u e rep resen ta m esta s d u a s en tid a d es n o s m o m en -tos em qu e elas in teragem em d istin -tos con tex-to s. Em u m a situ a çã o id ea l, tería m o s, p o r u m la d o, ser vid o res/ p resta d o res d e ser viço s res-p o n sá veis e res-p a ssíveis d e resres-p o n sa b iliza çã o e, p or ou tro, cid a d ã os cu ja con sciên cia em rela -ção aos cu stos d os serviços e aos d ireitos tivesse, com o con trap artid a, in stitu ições qu e garan -tissem o exercício efetivo d esses d ireitos.
O fa to d e esta rm o s lo n ge d essa situ a çã o id ea l req u er p esq u isa s co m d iferen tes fo co s, m as, a m eu ver, qu alqu er an álise qu e p reten d a ap reen d er a relação en tre a p rop osta geren cia-lista e o q u e existe d e esp ecífico em organ iza-ções p ú b licas d e saú d e n ão d everia p rescin d ir d e u m a ab ord agem in terd iscip lin ar ou m esm o tran sd iscip lin ar. Do p on to d e vista estritam en -te d iscip lin ar, os fen ôm en os q u e se p assam n o in terior d e u m a organ ização d e saú d e são atra-vessa d o s p o r d istin to s ca m p o s d e co n h
eci-m en to e d oeci-m ín ios teóricos; u eci-m eci-m od o d e ab ordar os p roblem as de form a com p lexa seria p en -sá -lo s a p a rtir d a a rticu la çã o d e co n ceito s d a História, Sociologia, An trop ologia, Ciên cia Po-lítica, Ad m in istração etc. Con tu d o, as ‘organ i-zações p ú b licas d e saú d e’ n ão são n osso ob je-to, m as su a cu ltu ra, o q u e recorta e, ao m esm o tem p o, d esd ob ra o escop o d a an álise, u m a vez q u e cu ltu ra p od e se referir a várias d im en sões d o sim b ólico. Esta categoria, q u e já p ossu i to-d a u m a trato-d ição n a área to-d a saú to-d e – com o, p or exem p lo, n o cam p o da an trop ologia m édica, do estudo de en dem ias e rep resen tações sobre saúdedoen ça – vem sen do bastan te utilizada quan -d o se fala -d e organ izações e in stitu ições com o u m a esp écie d e ch a ve p o lissêm ica q u e n em sem p re d iscrim in a os fen ôm en os aos qu ais es-tá sen d o ap licad a.
Não existe u m a ú n ica d efin ição d e cu ltu ra, ain d a m ais p orqu e, em se tratan d o d e con ceito q u e se in stitu i com o eixo d iscip lin ar d a An tro-p o lo gia , su a s d efin içõ es vêm a co m tro-p a n h a n d o as p róp rias tran sform ações e d isp u tas n o in te-rior d o cam p o. Mas se en ten d em os p or cu ltu ra u m sistem a d e sign ificad os qu e cria algu m tip o d e id en tid a d e co m p a rtilh a d a (Geertz, 1989), u m a esp écie d e cód igo q u e orien ta as p ráticas so cia is d e p esso a s p erten cen tes a vá rio s gru -p o s e ca tego ria s so cia is d en tro d e u m a so cie-d acie-d e, essa cie-d efin ição m ais am p la cie-d eve ser aju s-ta d a a o s tip o s d e fen ô m en o s p a rticu la res q u e se p reten d e an alisar. É p ossível recortar os fe-n ôm efe-n os ou p rob lem as relativos à cu ltu ra em u m a organ ização p ú b lica d e saú d e, a p artir d e su a p ertin ên cia a d istin tas d im en sões, tais co-m o cu ltu ra p olítica, cu ltu ra cívica, cu ltu ra or-gan izacion al e cu ltu ra p rofission al. Vejam os os elem en to s d o m u n d o so cia l q u e p o d em ser ap reen d id os p or estes con ceitos.
Se cu ltu ra p olítica refere-se ao con ju n to d e cód igos, valores, regras n ão escritas qu e orien -tam as p ráticas p olíticas d e d eterm in ad o gru p o ou socied a d e, p or cu ltu ra cívica p od em os en ten d er o s va lo res, cren ça s e a titu d es em rela -çã o a o s d ireito s e d everes d e cid a d a n ia n essa socied ad e. Cu ltu ra cívica d iz resp eito, p or con -segu in te, à co n fia n ça d a s p esso a s em rela çã o às in ten ções e ações d e govern an tes e d irigen -tes, b em com o su as rep resen tações a resp eito d e com o fu n cion am as relações en tre coisa p ú -b lica e socied a d e. Desse m od o, con stitu i u m a d im en são qu e se p rod u z a p artir d a p róp ria ex-p eriên cia e d a ex-p erceex-p çã o d e co m o o ex-p era m a s p ráticas p olíticas n a socied ad e.
o-Cad . Saúd e Púb lica, Rio d e Jane iro , 16(3):847-850, jul-se t, 2000 d erem ser a n a litica m en te d iferen cia d o s en
-qu an to d istin tas d im en sões d a cu ltu ra, tais ele-m en tos resu ltaele-m d e u ele-m a ele-m esele-m a ele-m atriz sócio-h istórica, d e u m m esm o p rocesso d e con stitu i-ção d as in stitu ições p olíticas e sociais. Am b os o s co n ceito s referem -se a sistem a s d e sign ificad os q u e atravessam p ráticas e valores orien -ta d os a fin s q u e p od em ser d iferen cia d os, p orém articu lam se n o in terior d os su jeitos e im -b ricam -se n a con stitu ição d e p ráticas p olíticas e sociais, n a in stitu cion alização d a coisa p ú b lica, n as relações en tre estad o e socied ad e. Con -sistem em u m a esp écie d e su b strato sim b ólico, p a n o d e fu n d o in visível o rien ta n d o a s a çõ es d os atores – in d ivid u ais e coletivos – q u e in te-ra gem n o s d iverso s esp a ço s so cia is, en tre o s qu ais, as organ izações p ú b licas.
Produ to de u m a h istória social, p olítica e cí-vica , a co n figu ra çã o d e q u a lq u er o rga n iza çã o p ú b lica tam b ém revela d eterm in ad o p ad rão d e in terações en tre seu s m em b ros. Se, p or cu ltu ra organ izacion al, en ten d em os o sistem a d e sig-n ifica d o s co m p a rtilh a d o s p elo s m em b ro s d e u m a o rga n iza çã o, q u e lh es d á a lgu m tip o d e id en tid ad e coletiva, a cu ltu ra d as organ izações p úblicas é m arcada p elo m odo com o se in stituí-ram as relações en tre estad o e socied ad e, b em com o as relações do sujeito com a coisa p ública. Para m u itos au tores, falar em cu ltu ra orga-n izacioorga-n al é coorga-n sid erar u m a orgaorga-n ização com o u m a esp écie d e “m in isso cied a d e”, q u e co n s-tru iu u m sistem a d e sign ificad os (Ott, 1989). A cu ltu ra d e u m a organ ização seria algo con form ado p or coisas coform o valores, cren ças, p ressu p ostos, p ercep ções, n orm as e p ad rões d e com -p o rta m en to n ã o m u ito -p a l-p á veis e ta m -p o u co fáceis d e serem ob servad as e ap reen d id as, em -b ora tom ad as com o ó-bvias. Con stitu iriam u m a força su b ja cen te, m oven d o e con figu ra n d o a s p rá tica s o rga n iza cio n a is e m o b iliza n d o seu s m em b ros p ara agir em certas d ireções.
Mas, certam en te, esta m in issocied ad e está d en tro d e u m a socied ad e m aior e, assim , a cu l-tu ra d e q u a lq u er o rga n iza çã o, se é resu lta d o, p or u m lad o, d a teia d e relações in stitu íd as ao lon go d e su a p róp ria h istória en qu an to organ i-zação, tam b ém com p orta elem en tos d a cu ltu ra d a socied ad e em qu e está in serid a, aí in clu íd as su as d im en sões p olítica e cívica.
O p erten cim en to a u m a organ ização p ú b li-ca d e sa ú d e im p lili-ca a lgu m tip o d e id en tid a d e coletiva , d a d a p ela ca ra cterística d o p ú b licoe
d a saú d e. Um d os elem en tos d efin id ores d essa
id en tid a d e é o fa to d a s a tivid a d es d o s m em -b ro s d a o rga n iza çã o esta rem vo lta d a s p a ra o en fren tam en to d e fen ôm en os d e vid a e m orte, ou , falan d o d e ou tro m od o, p ara a p rod u ção d e b en s e/ o u ser viço s p a ra a p ro m o çã o d o b em
-CULTURA DE O RGANIZAÇÕ ES PÚBLICAS DE SAÚDE 849
esta r físico, m en ta l e so cia l d e seu s u su á rio s/ clien tes. Diferen tes tip o s d e o rga n iza çõ es d e saú d e p ossu em lógicas esp ecíficas, m as tod as elas com p artilh am algu m as características se-m elh a n tes, co se-m o, p o r exese-m p lo, a a u to n o se-m ia d o s m éd ico s e a cen tra lid a d e d e seu lu ga r n a h ierarqu ia organ izacion al.
Perten cer a u m a o rga n iza çã o p ú b lica d e saú d e certam en te con stitu i elem en to d e id en -tid a d e, m a s n ã o o ú n ico. Um d o s critério s d e d iferen ciação in tern a é o fato d as p essoas faze-rem p a rte d e d istin ta s ca tego ria s o u gru p o s p rofission ais, b em com o d e setores e d ep arta-m en to s vo lta d o s p a ra d eterarta-m in a d o s tip o s d e a tivid a d es. As h a b ilid a d es a p ren d id a s, o s co -n h ecim e-n to s, p rá tica s e va lo res p ró p rio s d a s p rofissões e/ ou ocu p ações qu e con vivem n o lo-cal de trabalh o, en volvem a existên cia de vários sistem as d e sign ificad os e h ierarqu ias d e p od er q u e op eram sim u ltan eam en te, articu lan d o-se ou n ão, estabelecen do vários tip os de con flito – e p rod u zin d o u m a certa gestalt organ izacion al.
Aqui en tram os n o terren o da cultura n ão co-m o u co-m sisteco-m a d e sign ificad os u n ificad o, co-m as co m o u m a esp écie d e m o sa ico em q u e vá rio s m u n d os p rático-sim b ólicos coexistem em n ossa socied ad e com p lexa e fragm en tad a. A cu ltu -ra d e u m a organ ização – se ain d a p u d erm os fa-zer referên cia a esse con ceito n o sin gu lar –, tal com o ob servad a em u m corte sin crôn ico, ap re-sen ta-se com o m om en to d e u m p rocesso d ia-crôn ico com m ú ltip las d im en sões. Cu ltu ra re-fere-se à trad ição, ou seja, à rep rod u ção d e sig-n ificad os e p ad rões d e com p ortam esig-n tos atra-vés do tem p o. A tradição é tran sm itida p ela cu ltu ra e su a p ersistên cia resid e n o fato d e ser in -corp orad a in con scien tem en te p or in term éd io d a h istó ria so cia l e in d ivid u a l, tra d u zin d o -se n os h abitu s,valores e rep resen tações sociais.
VAITSMAN, J.
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Cad . Saúd e Púb lica, Rio d e Jane iro , 16(3):847-850, jul-se t, 2000
o s co m p o rta m en to s, a rela çã o en tre p erm a -n ê-n cia e m u d a-n ça é sem p re i-n certa, i-n esp era-d a e m esm o p araera-d oxal.
Este é u m d os d ilem as qu e se colocam p ara a in tro d u çã o d a s p ro p o sta s refo rm a d o ra s n a s orga n iza ções p ú b lica s d e sa ú d e e leva a ou tra qu estão m etod ológica: a an álise d a relação en -tre, d e u m lad o, n ovos d esen h os in stitu cion ais e/ ou in ovações geren ciais e, d e ou tro, m u d an ças n a cu ltu ra d e organ izações p ú b licas d e saú -d e, a s q u a is só p o -d em ser feita s co m b a se em
m eto d o lo gia q u e p erm ita a verifica çã o d a re-p rodu ção ou n ão de certos re-p adrões ao lon go d o tem p o.
Portan to, além d a con stru ção d o ob jeto p or m eio d e u m a articu lação con ceitu al em q u e se a p reen d a m d istin ta s o rd en s d e fen ô m en o s, a elab oração d e in d icad ores d e m u d an ças cu ltu -rais e su a sistem atização m ed ian te ín d ices cap azes d e acom cap an h ar o sen tid o d essas m u d an -ça s é o u tro d esa fio q u e se a p resen ta à co n ti-n u id ad e d este p rojeto.
Referências
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