• Nenhum resultado encontrado

Mana vol.10 número1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Mana vol.10 número1"

Copied!
33
0
0

Texto

(1)

Em b ora o te m a te n h a sid o tra ta d o e m d é ca d a s p a ssa d a s p or a lg u n s d os m a is p re stig iosos e con h e cid os a n trop ólog os (ve r Ba te son 1942; Be n e d ict 1946; G ore r 1953; Low ie 1954; M e a d 1942; 1962, e n tre ou tros), a p e sq u i-sa e m p írica sob re n a çõe s e id e n tid a d e s n a cion a is te m tid o u m a vid a d ifícil n o in te rior d a d iscip lin a . Por a lg u m a s b oa s ra zõe s. A tra n sp osiçã o im e d ia ta d e con ce itos e la b ora d os n o â m b ito d e e stu d os d e p e q u e n a s com u -n id a d e s é t-n ica s — oriu -n d os p a rticu la rm e -n te d a Escola d e C u ltu ra e Pe rson a lid a d e — re su ltou e m u m a sé rie d e m on og ra fia s sob re “ cu ltu ra s n a cion a is” p a rticu la re s ou “ ca ra cte re s n a cion a is” e sp e cíficos, cu ja s g e n e ra liza çõe s e sim p lifica çõe s fora m e m la rg a m e d id a re p u d ia d a s p or in a ce itá -ve is (N e ib u rg e G old m a n 1998:68-ss.).

Em vista d isso, q u a n d o volta d a p a ra a s “ socie d a d e s com p le xa s” , a p e sq u isa a n trop ológ ica lim itou -se p rin cip a lm e n te a o e stu d o d e m in oria s é tn ica s e / ou p e q u e n a s com u n id a d e s a ld e ã s. Até m e sm o a a n trop olog ia u rb a n a e a ch a m a d a an th rop olog y at h om e (C ole 1977; J a ck son 1987) p e rm a n e ce ra m e n foca n d o g ru p os p e q u e n os e su p osta m e n te b e m d e lim i-ta d os d o p on to d e visi-ta te rritoria l ou cu ltu ra l. N o q u e toca a g ru p os d e m a ior e sca la e , ou trossim , socie d a d e s n a cion a is, form a d a s p or m ilh õe s d e m e m b ros e p or u m a g ra n d e com p le xid a d e e m u ltip licid a d e d e “ cu ltu -ra s” , p a re cia n ã o h a ve r u m a via d e a ce sso te órico-m e tod ológ ica con siste n siste com o “ p a ra d ig m a e tn og rá fico” fu n d a d o p or M a lin ow sk i, q u e b a -se ia tod o ra zoa m e n to a n trop ológ ico e m p e sq u isa d e ca m p o e ob -se rva çã o p a rticip a n te1.

Existe m , p oré m , in ce rte za s e m d u a s d ire çõe s. De u m la d o, n a çõe s p od e m se r com u n id a d e s cu jo g ra u d e coe sã o e n tre os m e m b ros, a d e sp e ito d e se u ta m a n h o, é com sp a rá ve l a o d e q u a lq u e r g ru sp o é tn ico d e sp e -q u e n a e sca la , ou a ssim con sid e ra d o. Esta ca ra cte rística sin g u la r — a g ra n d e ca p a cid a d e d e m ob iliza r se u s m e m b ros, a p on to m e sm o d e fa ze r

DISCURSOS SIMBÓLICOS E

SÍMBOLOS DISCURSIVOS:

CON SIDERAÇÕES SOBRE A ETN OGRAFIA

DA IDEN TIDADE N ACION AL

*

(2)

com q u e e le s e ste ja m “ a p tos a m orre r p e la n a çã o” (An d e rson 1991:7, 144) — foi o q u e , n o in ício d os a n os 80, m otivou a lg u n s h istoria d ore s a in ve sti-g a r m a is d e p e rto os m e ios p e los q u a is a s n a çõe s losti-g ra m torn a r-se a p rincip a l re fe rê n cia p a ra a con stitu içã o d os se n tim e n tos d e p e rte n ça (cf. An -d e rson 1991; H ob sb a w m 1990; H ob sb a w m e Ra n g e r 1983; G e lln e r 1983; Sch n e id e r 2001a :19-32). C om u n id a d e s n a cion a is sã o forte s re fe rê n cia s p a ra a form a çã o d a id e n tid a d e . N ã o é se m ra zã o, p orta n to, q u e Be n e d ict An d e rson in siste e m com p re e n d e r o p e rte n cim e n to n a cion a l n ã o com o sim p le s id e olog ia , m a s com o u m a “ ca te g oria cu ltu ra l b á sica ” , ta l q u a l o p a re n te sco e a re lig iã o (An d e rson 1991:5). Sólid o a rg u m e n to, a liá s, p a ra in clu ir a s n a çõe s e a s id e n tid a d e s n a cion a is sob o “ olh a r a n trop ológ ico” .

Por ou tro la d o, o ta m a n h o e a d e n sid a d e p op u la cion a l n ã o d e ve m se rvir d e a rg u m e n to p a ra a a n trop olog ia e vita r o te m a . Em p rim e iro lu -g a r, p orq u e e xiste m -g ru p os é tn icos m u ito m a is n u m e rosos q u e ce rtos Es-ta d os-n a çã o. Se g u n d o: n a çõe s e g ru p os é tn icos p od e m tra n sform a r- se u n s n os ou tros — m u ita s ve ze s, a liá s, d e m a n e ira b a sta n te rá p id a , com o ilu stra m d ra m a tica m e n te os e ve n tos ocorrid os n o Le ste Eu rop e u d e p ois d e 1989. Te rce iro: g ru p os é tn icos ta m b é m sã o “ com u n id a d e s im a g in a -d a s” n o se n ti-d o -d e An -d e rson (1991). Tom a n -d o a sé rio a s con clu sõe s -d e a n trop ólog os com o Fre d rik Ba rth (1969), G e org e De ve re u x (1978) e J oh n Arm stron g (1982), p od e m os d ize r q u e a id e n tid a d e é tn ica fu n cion a b a si-ca m e n te com o u m “ d isp ositivo d e rotu la g e m ” [lab e llin g d e v ice ]. Assim , a form a çã o d o g ru p o e d a id e n tid a d e sã o, a m b os, p roce ssos q u e n ã o e s-tã o n e ce ssa ria m e n te vin cu la d os a “ com p orta m e n tos cu ltu ra is” e sp e cífi-cos (De ve re u x 1978).

Alé m d isso, se a cu ltu ra n ã o é o e xe rcício su i g e n e ris d e u m p od e r d e te rm

i-n a i-n te sob re a s p e ssoa s, e i-n tã o e la p re cisa se r coi-n sid e ra d a com o o p rod u to d e

ou tra coisa : se n ã o a re p lica çã o lóg ica d e ou tros p roce ssos socia is — re la çõe s

d e p rod u çã o, p or e xe m p lo —, e n tã o a re p lica çã o lóg ica d a in te ra çã o socia l

e la m e sm a . […] Porta n to, n ossa s con stru çõe s e tn og rá fica s e e xp lica çõe s a n

-trop ológ ica s n ã o p od e m d e riva r o com p orta m e n to d os in d ivíd u os a p a rtir d a

p re m issa a xiom á tica d a cu ltu ra . É p re cisa m e n te e ssa re la çã o e n tre o in d

ivi-d u a l e o cole tivo q u e ivi-d e ve se r re con h e ciivi-d a com o p rob le m á tica (C oh e n

1994:119).

(3)

Da p e rsp e ctiva d e u m a p rá tica e tn og rá fica q u e d e d u z a s id e n tid a -d e s e fron te ira s é tn ica s -d ire ta m e n te -d os com p orta m e n tos cu ltu ra is ob se r-va d os, a s n a çõe s só p od e m m e sm o a p a re ce r com o a lvo im p ossíve l p a ra a s p e sq u isa s d e ca m p o e m a n trop olog ia . Prim e iro, p orq u e q u a n d o se e n -te n d e , p or e xe m p lo, “ os b ra sile iros” ou “ os a le m ã e s” , p rim ord ia lm e n -te , com o cu ltu ras n a cion a is, se e stá p rod u zin d o u m d ile m a e m p írico in solú ve l, p e la p róp ria m a g n itu d e d os g ru p os e m q u e stã o. Q u a lq u e r ob se rva -çã o sob re “ a cu ltu ra ” d e u m d e sse s g ru p os se rá con sid e ra d a , in e vita ve l-m e n te — e corre ta l-m e n te —, u l-m a h ip e rsil-m p lifica çã o e / ou g e n e ra liza çã o. Se g u n d o, p orq u e m e sm o se fosse p ossíve l e n via r m ilh a re s d e a n trop ólo-g os a ca m p o, e se p u d é sse m os cole ta r u m a q u a n tid a d e m a ciça d e d a d os sob re a vid a cotid ia n a d e u m a g a m a m u ltiva ria d a d e p e ssoa s, tira r con -clu sõe s a re sp e ito d e u m a cu ltu ra n acion al, p rova ve lm e n te , torn a r-se -ia a in d a m a is com p lica d o. Q u a n to m a is p e rto, m a is d ifícil d e e n xe rg a r.

De fa to, n ã o h á n e n h u m a ra zã o p a ra q u e d e ve sse e xistir u m a cu ltu -ra n acion al. C om o já foi ob se rva d o d e a n te m ã o p e lo filósofo f-ra n cê s Er-n e st Re Er-n a Er-n , e m 1882, Er-n e m a s coEr-n d içõe s te rritoria is e g e og rá fica s, Er-n e m os a sp e ctos cu ltu ra is (lín g u a ou re lig iã o, p or e xe m p lo) p rova ra m -se h istórica e e m p iriistórica m e n te n e ce ssá rios ou su ficie n te s n os p roce ssos d e con stru -çã o n a cion a l (Re n a n 1992). Tod a via — ca b e a d ve rtir —, n e g a r q u e su a s p rop rie d a d e s se ja m con d içõe s n e ce ssá ria s ou su ficie n te s n ã o sig n ifica d ize r q u e cu ltu ra , h istória e te rritório se ja m e le m e n tos ou fa tore s n e g lig e n -ciá ve is n a a n á lise d e ce rta s n a çõe s. Ao con trá rio, e le s d e se m p e n h a m u m p a p e l cru cia l n o p roce sso con tín u o d e “ a u toim a g in a çã o” d a s com u n id a -d e s n a cion a is — m a s e le s p róp rios, ta m b é m , e n q u a n to con stru çõe s.

Para uma antropologia da construção da ident idade nacional

O ra , d irig ir o foco d e n ossa a te n çã o p a ra os p roce ssos d e con stru çã o d a s d ife re n ça s e n volve con sid e ra r q u e n a çõe s e g ru p os é tn icos ob e d e ce m b a -sica m e n te a os m e sm os p roce ssos d e form a çã o. Isto n os fa z ve r a n a çã o com o u m “ su b tip o” — h istórica e p olitica m e n te e sp e cífico — d e form a -çã o é tn ica . N e sse se n tid o, a a n trop olog ia p od e d e se m p e n h a r u m p a p e l p roe m in e n te n os e stu d os in te rd iscip lin a re s d a id e n tid a d e , sob re tu d o e m vista d e se u rico a ce rvo d e p e sq u isa s sob re u m a va sta g a m a d e p roce ssos d e form a çã o g ru p a l.

(4)

id e n titá ria re alm e n te ocorre — n ã o a p e n a s e n q u a n to re p re se n ta çã o sim -b ólica , m a s ta m -b é m e n q u a n to d isp ositivo e xtre m a m e n te p od e roso p a ra a re p rod u çã o con tín u a e cotid ia n a , e n tre os m e m b ros d e u m a d a d a n a çã o, d os p rin cíp ios b á sicos q u e a fu n d a m e e stru tu ra m . C om o já foi d ito h á p ou co, a id e n tid a d e é p od e rosa o su ficie n te p a ra m ob iliza r ra p id a m e n te m ilh õe s d e p e ssoa s p a ra “ m orre r p e la n a çã o” . O u , p e lo m e n os, p a ra se n -ta r e m fre n te à te le visã o e torce r p e la se le çã o d e fu te b ol d u ra n te u m a com p e tiçã o in te rn a cion a l.

Um a ve z q u e a n a çã o a rticu la se n tim e n tos d e “ com u n h ã o” [c o m m on n e ss] e n tre se u s m e m b ros (m e sm o q u e e sta ú ltim a n ã o p ossa se r ob se rva d a e m p irica m e n te ), ta l a rticu la çã o d e ve e sta r in tim a m e n te a ssocia -d a à m e d iação ou tran sm issão d a s “ n a rra tiva s-m e stra s” d a n a çã o a os se u s m e m b ros. M in h a h ip óte se é q u e u m a p a rte im p orta n te d e ssa tra n sm issã o e stá n a p róp ria e stru tu ra com u m a e ssa s n a rra tiva s, isto é , e m se u s e le -m e n tos in te rin d ivid u a is, ou — se g u in d o M ich e l Fou ca u lt — d iscu rsiv os, q u e re a liza m a ta re fa , ta n to n o q u e d iz re sp e ito a os se n tim e n tos d e p e r-te n cim e n to, q u a n to à s n a rra tiva s e m od os d e e xp re ssã o2. Por ou tra s p a la -vra s, o d iscu rso n a cion a l n ã o é a p e n a s u m a e x p re ssão d e d e te rm in a d os se n tim e n tos n a cion a is, m a s ta m b é m u m m e ca n ism o q u e cria a n a çã o e n -q u a n to u m a com u n id a d e3.

De fa to, com o se sa b e , a re la çã o e n tre n a çã o e lín g u a é m u ito e stre i-ta . O id iom a é a p rin cip a l fe rra m e n i-ta d e u n ifica çã o cu ltu ra l (cf. An d e rson 1991:70-ss.), e o p e rte n cim e n to d e u m in d ivíd u o a u m a com u n id a d e é , n a m a ioria d a s ve ze s, “ d ito” ou “ d e cla ra d o” e m p rim e iro lu g a r (De ve -re u x 1978:148). A lín g u a é u m e q u ip a m e n to com u n ica cion a l q u e p -re cisa se r a p re n d id o; é , p orta n to, u m a d e q u a d o m a rca d or d e d istin tivid a d e p a -ra m e m b ros d e d ife re n te s cu ltu -ra s e n a çõe s. O u so d o id iom a e m d e te rm in a d a socie d a d e é , e rm g e ra l, e stá ve l o su ficie n te p a ra g a ra n tir a corm u -n ica çã o e -n tre vá ria s g e ra çõe s, m a s é ta m b é m fle xíve l o su ficie -n te p a ra in corp ora r ra p id a m e n te m u d a n ça s h istórica s e / ou socia is.

(5)

Discurso como campo et nográf ico

A q u e stã o é sa b e r, e n tã o, se é p ossíve l im a g in a r u m a a b ord a g e m e tn o-g rá fica ob je tiva d o d iscu rso n a cion a l e n q u a n to “ ca m p o d e p rod u çã o cu l-tu ra l” (Bou rd ie u 1993), p re se rva n d o, a o m e sm o te m p o, a lg u m a s d a s “ vir-tu d e s e m p írica s” d a a n trop olog ia , ta is com o: ob se rva çã o e p a rticip a çã o, e m p a tia d o p e sq u isa d or a com p a n h a d a sim u lta n e a m e n te d e re fle xivid a -d e crítica , e n tre ou tra s4.

Discu rsos, d a m e sm a form a q u e sím b olos, a d q u ire m p od e r, e ficá cia e fu n çã o p or m e io d o con te xto socia l e m q u e se situ a m . De fa to, a p róp ria d e fin içã o d e d iscu rso com o u m siste m a form a tivo in te r ou su p ra -in d ivi-d u a l, volta ivi-d o p a ra a s n a rra tiva s e p a ra a con stru çã o ivi-d e sig n ifica ivi-d o, im p li-ca su a “ im e rsã o” [e m b e d d n e ss] e m u m con te xto m a is a b ra n g e n te . O te r-m o q u e ve r-m se n d o u tiliza d o, ta n to e r-m lin g ü ística q u a n to e r-m a n trop olo-g ia , p a ra d e scre ve r a re la çã o e n tre d iscu rso e con te xto é ‘in te rte x tu ali-d aali-d e ’. Ele se re fe re à s con e xõe s ali-d iscu rsiva s e n tre toali-d os os tip os ali-d e “ te x-to” e o con te xto m a is a m p lo. Assim :

[…] a a n á lise in te rte xtu a l d e m on stra d e q u e m a n e ira os te xtos la n ça m m ã o,

se le tiva m e n te , d e ord e n s d e d iscu rso — con fig u ra çõe s e sp e cífica s d e n tro d o

con ju n to d a s p rá tica s con ve n cion a d a s (g ê n e ros, d iscu rsos, n a rra tiva s, e tc.)

q u e e stã o à d isp osiçã o d e p rod u tore s e in té rp re te s d e u m te xto e m u m a d e

-te rm in a d a situ a çã o socia l […]. M a s a a n á lise in -te r-te xtu a l, con ce b id a p or

Ba k h tin d e form a d in â m ica e d ia lé tica , ta m b é m m ostra com o os te xtos p

o-d e m tra n sform a r e sse s m e sm os m a te ria is socia is e h istóricos; com o os te xtos

p od e m d a r n ova s in te n sid a d e s a d e te rm in a d os g ê n e ros; e com o os g ê n e ros

(d iscu rsos, n a rra tiva s, re g istros) p od e m m istu ra r-se u n s a os ou tros e m ce rtos

te xtos. N os te rm os d e Kriste va [1986:39], tra ta -se d a ‘in se rçã o d a h istória

(so-cie d a d e ) e m u m te xto, e d e sse te xto n a h istória ’ (Fa irclou g h 1992:194-195).

N e sse se n tid o, p orta n to, os “ te xtos” n ã o sã o a n a lisa d os com o e x -p re ssõe s cu ltu ra is sin g u la re s, m a s com o re fe rê n cias p a ra d e te rm in a d a s con d içõe s socia is, cu ltu ra is e d iscu rsiva s m a is a b ra n g e n te s, e m cu jo â m -b ito e sse s te xtos sã o p rod u zid os (cf. Tyle r 1991:86). C e rta m e n te , isto é vá lid o ta m b é m , q u içá m a is a in d a , n o ca so d e e n u n cia d os ora is e con ve r-sa çõe s, tom a d os e n q u a n to p rá tica s d iscu rsiva s (e d ife re n cia is) cotid ia n a s.

(6)

r-m a d u ra d iscu rsiva g e ra l a p e n a s p orq u e isso é u r-m im p e rativ o com u n ica -cion a l — ca so con trá rio e le s n ã o se a p re se n ta ria m com o “ cu ltu ral in tim a-te s” (H e rzfe ld 1997). N ã o ob sta n a-te , com o já d isse , a s con stru çõe s d iscu r-siva s ob tê m su a força e p re va lê n cia ju sta m e n te p e la p ossib ilid a d e d e e s-ta re m d e scon e ctad as d e d e te rm in a d a s p rá tica s e circu n stâ n cia s socia is. Porta n to, a re p re se n ta çã o d iscu rsiva n ã o p re cisa se r a “ p u ra re fle xã o” d a s re la çõe s socia is e d a s p rá tica s cotid ia n a s p a ra p od e r d e se m p e n h a r a fu n çã o d e p rin cíp io e stru tu ra n te d a p e rce p çã o e d a in te rp re ta çã o.

Ve ja m os u m e xe m p lo. Em p e sq u isa d e op in iã o re a liza d a e m d e ze mb ro d e 1990, d ois m e se s a p ós a u n ifica çã o a le m ã , p e rg u n ta va se a os a le -m ã e s orie n ta is o se g u in te : “ E-m q u e -m você p e n sa q u a n d o se fa la e -m e stra n g e iros (A u slän d e r)?” A ca te g oria m a is m e n cion a d a e m p rim e iro lu g a r foi a d os “ tu rcos” (48% ), a d e sp e ito d o fa to d e q u e n a é p oca p ra tica -m e n te n ã o h a via tu rcos vive n d o n a re cé -m -e xtin ta Re p ú b lica De -m ocrá ti-ca d a Ale m a n h a (Die Tag e sz e itu n g , 6/ 8/ 1991). Ao q u e tu d o in d iti-ca , a re sp osta n ã o se b a se ou ta n to n a e xsp e riê n cia cotid ia n a — o q u e te ria a m sp lia -d o a p orce n ta g e m -d e m e n çõe s a “ ru ssos” ou “ vie tn a m ita s” —, m a s sim e m u m d iscu rso p róp rio à Ale m a n h a O cid e n tal, n o q u a l os tu rcos tê m ti-d o u m lu g a r p roe m in e n te h á m a is ti-d e u m q u a rto ti-d e sé cu lo. Isso m ostra q u e n ã o é p re ciso h a ve r u m a p rática social op on d o e d istin g u in d o “ a le -m ã e s” e “ tu rcos” p a ra q u e e ste s ú lti-m os ve n h a -m a ocu p a r o p a p e l p ri-m ord ia l d e “ O u tro” , in clu sive n a d e fin içã o d os a le ri-m ã e s d o la d o orie n ta l (cf. Sch n e id e r 2001b ).

N a s se çõe s q u e se se g u e m , p re te n d o a p re se n ta r m in h a s p róp ria s te n ta tiva s d e tra n sp la n ta r a s con sid e ra çõe s te órica s e sb oça d a s a té a q u i p a ra o ca so d e d ois p roje tos d e p e sq u isa e m p írica sob re id e n tid a d e n a -cion a l, n a Ale m a n h a e n o Bra sil.

A pesquisa no campo dos discursos nacionais alemão e brasileiro

(7)

i-ro” , re a liza d o d e 2001 a 2003, in corp orou d ife re n ça s re g ion a is e d e u m a is ê n fa se à q u e stã o d a “ d ive rsid a d e é tn ica ” .

Re a liza r u m a p e sq u isa a n trop ológ ica n o “ ca m p o d a p rod u çã o cu ltu -ra l” (Bou rd ie u 1993) d e d iscu rsos sob re g e rm a n id a d e , b ra silid a d e e p e rte n cim e n to n a cion a l im p lica , a n rte s d e tu d o, a ssid u id a d e n os d ois a m b ie n te s e tn og rá ficos (p a sse i vin te m e se s e m Be rlim e d ois a n os n o Bra sil). Im -p lica ta m b é m -p a rtici-p a r d e (ou a ssistir a ) u m a g ra n d e va rie d a d e d e “ situ a çõe s d iscu rsiva s” : con ve rsa s, d iscu rsos, d iscu ssõe s p ú b lica s, p rog ra -m a s d e TV, jorn a is e re vista s, re p re se n ta çõe s cotid ia n a s e -m id iá tica s d e d e te rm in a d os e ve n tos e tc. Alé m d isso, tod a con ve rsa q u e tive com a m i-g os, cole i-g a s ou con h e cid os a re sp e ito d o m e u te m a d e p e sq u isa se con s-titu iu , d e fa to, e m va liosa fon te d e d a d os.

O u tra s ve ze s, p rocu re i com p le m e n ta r a ob se rva çã o e a n á lise d a s “ si-tu a çõe s-p a d rã o” d e p rod u çã o d iscu rsiva p or m e io d a ob se rva çã o p a rticip a n te e n tre g ru rticip os socia is q u e m e e ra m m e n os a ce ssíve is cotid ia n a m e n -te . Em Be rlim , p or e xe m p lo, p a sse i d u a s se m a n a s n a re d a çã o d e u m d os m a iore s jorn a is d a im p re n sa m a rrom d a cid a d e . Pa sse i ou tra s cin co se m a n a s n a se d e loca l d o com itê p a rla m e n ta r d o Pa rtid o d o Socia lism o De -m ocrá tico (PDS) — a n tig o Pa rtid o Socia lista Un itá rio (SED) —, q u e g o-ve rn a va a Ale m a n h a O rie n ta l. J á n o Bra sil, m a n tio-ve con ta tos p e riód icos com re p re se n ta n te s d e d ive rsos p roje tos cu ltu ra is e socia is e com p e ssoa s d a s m a is d ife re n te s orig e n s e p rofissõe s. Alé m d isso, fiz via g e n s a vá ria s cid a d e s d o p a ís (sob re tu d o n a s re g iõe s N orte , N ord e ste , Su l e Su d e ste ), on d e p u d e e n tre vista r jorn a lista s e p olíticos, com p le m e n ta n d o a ssim a rotin a d iá ria d e tra b a lh o n o Rio d e J a n e iro — cid a d e on d e vivi com m i-n h a fa m ília . N os d ois p a íse s fiz u m a com p a i-n h a m e i-n to siste m á tico d os m e ios d e com u n ica çã o d e m a ssa , q u e re su ltou e m fa rto a ce rvo, con stitu í-d o í-d e a rtig os í-d e im p re n sa e í-d ive rsos ou tros í-d ocu m e n tos. Toí-d a s e ssa s e x-p e riê n cia s d e ca m x-p o a ca b a ra m com x-p on d o u m a im a g e m m u ltifa ce ta d a d a s re p re se n ta çõe s d iscu rsiva s p ú b lica s e cotid ia n a s, se ja d a “ g e rm a n i-d a i-d e ” (e i-d a ii-d e n tii-d a i-d e a le m ã ), se ja i-d a “ b ra silii-d a i-d e ” (e i-d a ii-d e n tii-d a i-d e b ra sile ira ) — in clu in d o a í a s e stra té g ia s d e id e n tifica çã o ta n to n o p la n o in d ivid u a l q u a n to cole tivo.

(8)

As e n tre vista s fora m a n a lisa d a s le va n d ose e m e sp e cia l con sid e ra çã o os se g u in te s tóp icos: d e fin içõe s d e id e n tid a d e ou p e rte n cim e n to; d e -fin içõe s d os a trib u tos “ típ icos” d e a le m ã e s e b ra sile iros; g e ra çã o/ id a d e ; re con stru çõe s h istórica s e p e riod iza çã o d e e ve n tos; con stru çõe s d e d ife -re n ça s e m e ca n ism os d e “ a lte riza çã o” [oth e rin g ]. Pa ra a s a n á lise s, u tili-ze i b a sica m e n te a té cn ica d e in te rp re tação te x tu al e in te rte x tu al — p ro-ce d im e n to a lg o se m e lh a n te à a n á lise lite rá ria ou d e te xtos: a s e n tre vista s e ra m situ a d a s e m con te xtos d ive rsos (d iscu rsivo, p olítico, socia l, “ circu n s-ta n cia l” e b iog rá fico). O ob je tivo p rin cip a l a í e ra d e sve la r a s “ ord e n s d e d iscu rso” (Fa irclou g h 1992) su b ja ce n te s. Por ou tra s p a la vra s, re la cion a r a s n a rra tiva s e e stra té g ia s d iscu rsiva s in d iv id u ais com a s re fe rê n cia s “ in -te r-te xtu a is” com p artilh ad as p e los in d iv íd u os.

Em su m a , ca d a e n tre vista p re cisou se r “ situ a d a ” : a ) n o corp u s tota l d e e n tre vista s; b ) n a a rm a d u ra d iscu rsiva e sociop olítica m a is g e ra l; c) n o con te xto e sp a cia l e te m p ora l e m q u e foi re a liza d a . A in te rp re ta çã o b u scou re ve la r a s re fe rê n cia s e e stru tu ra s com u n s su b ja ce n te s — su m a riza n d ose , e n tã o, a s te n d ê n cia s m a joritá ria s e m in oritá ria s, e re ssa lta n -d o a s p rin cip a is lin h a s -d ivisória s n o in te rior -d e ca -d a g ru p o e n tre vista -d o. Fin a lm e n te , ta is te n d ê n cia s e lin h a s d ivisória s fora m tra d u zid a s e m p o-siçõe s p rototíp icas e ilu stra d a s p or cita çõe s q u e e xp re ssa m d e m a n e ira p a rticu la rm e n te cla ra a s ca ra cte rística s d om in a n te s p e rce b id a s n o g ru p o e m q u e stã o.

Exemplos: Deutsch sein e brasilidade6

Bra sil e Ale m a n h a re p re se n ta m d ois ca sos-m od e lo con tra sta n te s n o q u e d iz re sp e ito à s su a s re sp e ctiva s orig e n s, a o tra n scu rso d e su a s h istória s n a cion a is, a se u s “ m itos fu n d a d ore s” e a se u s id e a is con stitu cion a is b á si-cos sob re cid a d a n ia e n a cion a lid a d e . N ã o ob sta n te , sã o ca sos ra ra m e n te com p a ra d os7.

(9)

Em com p a ra çã o, a s le is d e cid a d a n ia n a Ale m a n h a d ã o ê n fa se à as-ce n d ê n cia. In d e p e n d e n te d o loca l d e n a scim e n to, filh os d e a le m ã e s tê m n a cion a lid a d e a le m ã g a ra n tid a (ju s san g u in is**). Por ou tro la d o, o n a sci-m e n to, e sci-m te rritório g e rsci-m â n ico, d e u sci-m in d ivíd u o cu jos p a is n ã o te n h a sci-m n a cion a lid a d e a le m ã , n ã o fa cu lta o a ce sso à cid a d a n ia a le m ã . Foi som e n -te d e q u a tro a n os p a ra cá q u e o p rim e iro e le m e n to d e ju s soli foi in trod u -zid o, p a ssa n d o-se a con sid e ra r a u tom a tica m e n te cid a d ã o a le m ã o q u a l-q u e r d e sce n d e n te d a se g u n d a g e ração d e im ig ran te s (ou se ja , in d ivíd u os q u e te n h a m p e lo m e n os u m d os p a is n a scid os n a Ale m a n h a ), b e m com o os in d ivíd u os q u e ch e g a ra m a o p a ís com m e n os d e 14 a n os8.

Nasciment o e descendência

C on form e d e m on strou J oh n Born e m a n (1992) e m tra b a lh o q u e com -p a ra va -p olítica s fa m ilia re s n a Ale m a n h a O rie n ta l e O cid e n ta l d o p ós-1945, te xtos ju ríd icos e p rá tica s b u rocrá tico-a d m in istra tiva s p od e m e xe rce r p ro-fu n d a in flu ê n cia n a s n a rra tiva s d e con stru çã o d e id e n tid a d e s p e ssoa is e h istória s d e vid a . De ig u a l m od o, a s d ife re n ça s n a s le g isla çõe s b ra sile ira e a le m ã re fle te m -se n os re sp e ctivos p roce ssos d e a u tod e fin içã o e d e for-m a çã o d o se n tid o d e p e rte n cifor-m e n to q u e ocorre for-m n o d ia -a -d ia d os d ois p a íse s (ve r, ta m b é m , Bru b a k e r 1994). O s m e u s “ g ru p os d e e n tre vista ” , a q u i e lá , re p rod u zira m p re d om in a n te m e n te u m d iscu rso coe re n te com os crité rios oficia is d e d e fin içã o d a n a cion a lid a d e . De a cord o com a s p ro-p osiçõe s te órica s a ro-p re se n ta d a s ro-p ou co a cim a , ro-p od e -se d ize r q u e a con s-tru çã o d a id e n tid a d e se com p õe d e trê s e le m e n tos: u m a d e cla ra çã o d e p e rte n cim e n to; u m a rg u m e n to q u e “ ju stifica ” e ssa a u tod e cla ra çã o; e u m a e stra té g ia d iscu rsiva . Ta is e le m e n tos sã o n itid a m e n te d isce rn íve is (e fa -cilm e n te e voca d os) n a s e n tre vista s q u e re a lize i. C om e ço com a lg u n s e xe m p los d o Bra sil.

1. Você se con sid e ra b rasile ira?

— Sim .

Por q u e ?

*Ju s soli: d ire ito d o solo. Prin cíp io se g u n d o o q u a l a p e ssoa te m a n a cion a lid a d e d o p a ís on d e n a

s-ce u [N . d o T.].

**Ju s san g u in is: d ire ito d o sa n g u e . Prin cíp io se g u n d o o q u a l a p e ssoa h e rd a a n a cion a lid a d e d e

(10)

— (Pa u sa ) Porq u e e u n a sci a q u i e m e id e n tifico com os b ra sile iros (M a ria ).

2. Você é b rasile ira?

— Sou .

Por q u e ?

— Eu n a sci n o Bra sil. Porq u e e u n a sci a q u i n o Bra sil (J ú lia ).

3. Você é b rasile iro?

— Sou b ra sile iro.

Por q u e ?

— (Risos) Bom , e u n a sci n o Bra sil, ob via m e n te , é u m p a ís b om d e se vive r,

a p e sa r d e tod a s a s con tra d içõe s q u e a g e n te a p re se n ta (Re n a to).

4. Você é b rasile iro?

— M in e iro, u a i. (risos)

Por q u e é b rasile iro?

— Por q u e e u sou b ra sile iro? …Por q u e e u sou b ra sile iro… (risos) Bom , n a tu

-ra lm e n te , e m p rim e iro lu g a r p orq u e e u n a sci a q u i, n ã o é ? M a s, m a is d o q u e

isso, p orq u e e u g osto d a n ossa te rra (Alb e rto).

5. Você é b rasile iro?

— Sou .

Por q u e ?

— Por q u e e u sou b ra sile iro? (risos) Eu n a sci a q u i, só p or isso. M a s e u p od e

ria se r a m e rica n o, e u p od e ria se r a le m ã o, e u p od e ria se r a frica n o, e u p od e

-ria se r in d ia n o, e u p od e -ria se r a u stra lia n o, n ã o te -ria o m e n or p rob le m a (J oã o).

(11)

icos, a m a ioria d os e n tre vista d os a cim a cita d os p rocu rou re força r su a id e n -tid a d e b ra sile ira e e n fa tiza r os p on tos p ositiv os d e se r b ra sile iro, a d icio-n a icio-n d o ou tros e le m e icio-n tos — m e icio-n os “ p a ssivos” q u e o icio-n a scim e icio-n to, a sa b e r: ra íze s re g ion a is, forte id e n tifica çã o com o p a ís e se u p ovo e tc.

J á n a s e n tre vista s a le m ã s, a coisa se p a ssa d e m od o b e m d ife re n te . Re fle tin d o ta m b é m os con ce itos sob re cid a d a n ia con tid os n a le g isla çã o d a Ale m a n h a , a s e n tre vista s m ostra m m u ita s re fe rê n cia s à a sce n d ê n cia e a os vín cu los com p a re n te s (p a is e a vós) g e rm â n icos. Ao con trá rio d o Bra sil, p oré m , a s le is d e re g u la m e n ta çã o d a cid a d a n ia a le m ã fora m e xte n sa -m e n te d e b a tid a s n a s ú lti-m a s d u a s d é ca d a s ou -m a is. O p rin cíp io d e ju s san g u in is fa lh a d ia n te d a s d e m a n d a s d a re a lid a d e e m p írica — m a rca d a p e la im ig ra çã o e p e lo in cre m e n to d a d ive rsid a d e é tn ica n a socie d a d e a le -m ã con te -m p orâ n e a . Ao -m e m o te -m p o, e le é u -m a re -m in iscê n cia d o p a s-sa d o n a cion a l-socia lista e d e su a id e olog ia d e “ s-sa n g u e e solo” . Por isso, a con stru çã o d e u m a g e rm a n id a d e b a se a d a n a ‘a sce n d ê n cia ’ p od e se r a lta -m e n te p rob le -m á tica , sob re tu d o p a ra os -m e -m b ros d a s “ e lite s d iscu rsiva s” . De sorte q u e a s re fe rê n cia s d ire ta s sã o e xce çã o. Poré m , com o n ã o h á a lte rn a tiva s d iscu rsiva s p le n a m e n lte con solid a d a s, é m u ito d ifícil e vita r re -fe rê n cia s in d ire ta s ou in volu n tá ria s, m e sm o q u a n d o a in te n ção d o d iscu r-so é e xa ta m e n te o con trá rio. Tom e m os o se g u in te e xe m p lo.

6. Você se con sid e ra ale m ã?

— Sou a le m ã , sou …

Por q u e ?

— … c id a d ã a le m ã ; ist o , d o p o n t o d e v ist a le g a l. E sp ir it u a lm e n t e m e v e jo

m u ito m a is com o e u rop é ia .

M as v ocê se d e fin iria com o ale m ã ap e n as d o p on to d e v ista le g al?

— Eu n u n ca p e n se i m u ito sob re e sse a ssu n to p orq u e n u n ca se n ti a n e ce

ssd a ssd e ssd e m e issd e n tifica r, e n q u a n to p e ssoa , a tra vé s ssd a n a çã o. E… o q u e sig n

i-fica se r a le m ã o? Bom , se g u ra m e n te e u te n h o a lg u n s tra ços ca ra cte rísticos,

q u a lifica d os, e m g e ra l, com o tip ica m e n te a le m ã e s. Isso é ób vio: sou a le m ã ,

m e u s p a is e ra m a le m ã e s, m e u s b isa vós e ra m a le m ã e s… Só m e u s ta ta ra vós

n ã o e ra m a le m ã e s, tin h a m a lg u m a coisa a ve r com a Fra n ça (risos) (G a b rie le ).

(12)

7. Você se con sid e ra ale m ã?

— C la ro.

Por q u e ?

— Te n h o p a ssa p orte a le m ã o; n a sci p e rto d e C olôn ia , q u e fica n a Ale m a n h a ;

m in h a m ã e ve m d e u m a fa m ília ce n te n á ria d a re g iã o d o Re n o. E m e u p a i,

d a Prú ssia d o Le ste . M a s com e sse la d o e u n ã o te n h o m u ito con ta to… N ã o

se i… N ã o m e e voca n e n h u m se n tim e n to (Sa b in e ).

A m e n çã o à s orig e n s ce n te n á ria s d a m ã e n a re g iã o d o Re n o, on d e n a sce u ta m b é m n ossa e n tre vista d a (jorn a lista d e e sq u e rd a ), p od e se r vis-ta com o u m a re fe rê n cia cu ltu ral imp orta n te p a ra fu n d a m e n ta r se u se n ti-m e n to d e g e rti-m a n id a d e — d a ti-m e sti-m a forti-m a coti-m o viti-m os a p a re ce r n a s re s-p osta s d os e n tre vista d os b ra sile iros. N o e n ta n to, e sse e fe ito in te n cion a l é , d e a lg u m a m a n e ira , e n fra q u e cid o p e la orig e m p a te rn a e m u m te rritó-rio q u e fe z p a rte d a Ale m a n h a som e n te a té o fin a l d a Se g u n d a G ra n d e G u e rra , e q u e , p orta n to, n ã o te ve in flu ê n cia d ire ta n a socia liza çã o cu ltu -ra l loca l d a e n tre vista d a . De n tro d a a rm a d u -ra d iscu rsiva d om in a n te , é cla ro q u e su a ‘a sce n d ê n cia ’ p ru ssia n a p e lo la d o p a te rn o re força a a u tod e fin içã o tod e a le m ã . M a s e la é a o m e sm o te m p o p rob le m á tica , com o p a -re ce in d ica r o fin a l e va sivo d a fa la .

Todavia, note-se que o primeiro argumento de Sabine foi o fato de pos-suir p assap orte a lemã o. Aliá s, e sse foi re a lme n te o a rg u me n to ma is fre q ü e n-te e n tre os me u s e n tre vista d os. E isso é e stra té g ico, p ois, u ma ve z q u e o p a s-sa p orte tra n sm ite u m a id é ia m e ra m e n te “ a d m in istra tiva ” d o p e rte n cim e n to n a cion a l, o a rg u m e n to se rve com o u m in stru m e n to a m a is p a ra re la tiviza r a im p ortâ n cia d a id e n tid a d e n a cion a l. N ova m e n te , h á a í u m a a m b iva lê n cia , visto q u e o fu n d a m e n to le g a l m a is com u m p a ra p ossu ir u m p a ssa p orte a le -m ã o é , ju sta -m e n te , o fa to d e te r n a scid o d e p a is a le -m ã e s. As p rofu n d a s ra í-ze s d a n oçã o d e d e sce n d ê n cia n o d iscu rso d om in a n te sob re a g e rm a n id a d e sã o ilu stra d a s p e lo fa to d e q u e a m a ioria d os e n tre vista d os con firm ou se u “ p e rte n cim e n to” a le m ã o, q u a n d o lh e s p e rg u n te i, a títu lo d e h ip óte se , q u a l se ria su a id e n tid a d e ca so fosse m filh os d os m e sm os p a is, m a s tive sse m n a s-cid o e m ou tro p aís. Ta is con ce p çõe s se e xp re ssa ra m ta mb é m n o fa to d e q u e q u a se tod os os e n tre vista d os u tiliza ra m ‘a sce n d ê n cia ’ e ‘orig e m ’ com o cri-té rio p rin cip a l d e d istin çã o e n tre “ n a tivos” e A u slän d e r (e stra n g e iros), in -clu sive n o ca so d e filh os e n e tos d e im ig ra n te s n ascid os n a Ale m a n h a .

(13)

com a n a çã o. Ao con trá rio, a e stra té g ia m a is fre q ü e n te foi in trod u zir u m a id é ia d e “ in e vita b ilid a d e ” . Ve ja m os a lg u n s e xe m p los.

8. Eu sou a le m ã o — p or u m la d o, p orq u e n a sci a q u i; p or ou tro, p orq u e cre

s-ci, fu i e d u ca d o e socia liza d o a q u i. Ach o q u e é isso, a n te s d e tu d o, o q u e fa z

a lg u é m se r a le m ã o. N ã o foi u m a coisa q u e e u p u d e sse d e cid ir (Ste fa n ).

9. Eu n a sci a q u i. Até on d e e u e m e u s fa m ilia re s sa b e m os, p e lo la d o m a te

r-n o, vive m os r-n a Ale m a r-n h a d e sd e o sé cu lo XVI. N ã o se i d ize r p or q u e ra zã o

e u n ã o m e se n tiria a le m ã o (Wolfg a n g ).

10. Be m , n ã o se p od e d e cid ir n e ssa m a té ria — você é , ou n ã o é , ce rto? Q u e r

d ize r, é p e lo n a scim e n to sim p le sm e n te (M on ik a ).

Pe rce b e -se q u e a n oçã o d e d e sce n d ê n cia , a p e sa r d e p rob le m á tica , su ste n ta a id é ia d e u m a “ in e vita b ilid a d e ” d o p e rte n cim e n to à n a cion a li-d a li-d e a le m ã . E isto é , li-d e fa to, su a p rin cip a l fu n çã o e in te n çã o. Um a li-d a s con stru çõe s m a is forte s n e ssa lin h a a p a re ce n o se g u in te tre ch o:

11. Você é a le m ã o?

— Sim , isso é in e vitá ve l. M e u p a ssa p orte e m in h a ca rte ira d e id e n tid a d e já

d ize m … Eu n a sci a q u i, o q u e e u p osso fa ze r? É com o se você m e p e rg u n ta

s-se : ‘você é b ra n co?’. Sim , e u te n h o a p e le cla ra , sou b ra n co, n ã o p osso sa ir

d e d e n tro d a m in h a p róp ria p e le (Die te r).

En q u a n to a m a ioria d os b ra sile iros p rocu rou a d icion a r u m e le m e n to ativ o (p or e xe m p lo, “ m e id e n tifico” [1], “ g osto” [4]), os e n tre vista d os a le -m ã e s te n d e ra -m a e n fa tiza r -m a is a p assiv id ad e e m su a con stru çã o d a g e r-m a n id a d e . N a ú ltir-m a cita çã o (11), p or e xe r-m p lo, o e n tre vista d o — q u e é jorn a lista e con se rva d or — ch e g a m e sm o a a firm a r, d iscu rsiva m e n te , se u p e rte n cim e n to n a cion a l e m te rm os d e se u s p ré -re q u isitos b iológ icos, e re in trod u z a n oçã o d e a sce n d ê n cia . In d o a lé m , o tre ch o in d ica , e m b ora in d ire ta m e n te , q u e a q u e stã o d a id e n tid a d e a le m ã ta m b é m a p re se n ta com p on e n te s “ ra cia liza d os” , já q u e , n a in te ra çã o cotid ia n a , a cor d a p e le fu n cion a com o u m “ in d ica d or visíve l” d e orig e m ou d e sce n d ê n cia e stra n -g e ira — a m b os os a sp e ctos e q u iva le m a u m a n ão-g e rm an id ad e .

Tipicidades brasileira(s) e alemã(s)

(14)

re sp e ctiva s com u n id a d e s n a cion a is com o u m tod o. À p rim e ira vista , p a ra d oxa lm e n te , a rig id e z d o crité rio b ra sile iro d e ‘n a scim e n to’ p a re ce con -tra d ize r a b oa in te g ra çã o d os im ig ra n te s re cé m -ch e g a d os. M a s e m b ora a socie d a d e b ra sile ira se ja , d e fa to, tole ra n te e a b e rta à p re se n ça d e “ e s-tra n g e iros” , é p re ciso n ota r q u e a p rim e ira g e ra çã o d e im ig ra n te s n u n ca p e rd e u m ce rto “ e stig m a ” d e e stra n g e iro, a d e sp e ito d e te re m vivid o à s ve ze s q u a se a vid a in te ira n o p a ís ou a té se n a tu ra liza d o b ra sile iros. N o e n ta n to, a situ a çã o m u d a ra d ica lm e n te com a se g u n d a g e ra çã o, i.e ., p a ra os filh os d e im ig ra n te s. Este s, e m g e ra l, n ã o e n con tra m n e n h u m ob stá cu -lo a o p le n o re con h e cim e n to com o b ra sile iros. Um a sp e cto ce n tra l a q u i é o a ce sso ilim ita d o à cid a d a n ia . O u tro a sp e cto im p orta n te é a a u toim a -g e m d o p a ís, q u e se vê com o u m a socie d a d e h e te ro-g ê n e a e tole ra n te com a d ife re n ça . É isto q u e p e rm ite con cilia r a m a n u te n çã o d e ce rtos “ a trib u -tos é tn icos” (com o a re lig iã o e a lín g u a d os p a is) com a a d oçã o in q u e stio-n á ve l d a id e stio-n tid a d e b ra sile ira .

Em re la çã o à q u e stã o d a d iv e rsid ad e — tid a com o ca ra cte rística d a id e n tid a d e e d a socie d a d e b ra sile ira s —, con vé m ob se rva r q u e p a re ce h a ve r d ois m od e los a n ta g ôn icos: o m od e lo carioca e o m od e lo p au lista. O p rim e iro, p re d om in a n te n o N ord e ste e n o Rio d e J a n e iro, va le -se d o d is-cu rso d a m iscig e n ação, con stru in d o o “ b ra sile iro típ ico” com o u m in d iv íd u o “racialm e n te ” m istu raíd o, cu ja h e ra n ça g e n é tica a p re se n ta iíd e a lm e n -te tra ços d a s “trê s raças fu n d ad oras”: p ortu g u e se s, a frica n os e in d íg e n a s. Exe m p lo típ ico d e sse d iscu rso se e n con tra n a cita çã o a se g u ir:

12. — Você p od e a ch a r q u e e u d e sce n d o d e ssa ou d a q u e la e tn ia , q u e isso

p od e in flu ir n a m in h a id é ia d e b ra silid a d e . M a s, n ã o. Ao con trá rio, e u te n h o

ra íze s b e m p rofu n d a s n o Bra sil. Eu sou ca rioca , d o Rio d e J a n e iro, on d e isso

[e tn ia ] re a lm e n te já e stá p e rd id o h á m u ito m a is te m p o. A colon iza çã o d o Su l

d o Bra sil ve io b e m m a is re ce n te , n ã o é ? Em 1840 a in d a tin h a g e n te ch e g a n d o.

V ocê sab e alg o sob re a orig e m d a su a fam ília?

— É d e sce n d e n te d e n e g ros… d e e scra vos. Ta m b é m som os d e sce n d e n te s d e

p ortu g u e se s, m a s d a p rim e ira le va d e p ortu g u e se s, a in d a n o p e ríod o colo

-n ia l. Isso d a fa m ília im p e ria l… Alg u -n s, d e a -n te s a té . De ssa é p oca , -n ã o é ?

Tê m h ola n d e se s, […] d os h ola n d e se s d e 1630!

Do N ord e ste ?

— Do N ord e ste . Pa rte d a m in h a fa m ília ve io d o N ord e ste . M e u p a i e ra p a

-ra íb a , a in d a , sa b e ?

E a m ãe , é carioca m e sm o?

— M in h a m ã e e ra d o in te rior d o Rio d e J a n e iro. De u m a fa m ília q u e ve io d o

(15)

sa b e ? De sce n d e n te d e ín d ios ch a rru a com e sta n cie iros, d o tip o h e róis d o fe

-d e ra lism o. Be n to G on ça lve s é m e u a n te p a ssa -d o.

V ocê s são d e sce n d e n te s e m lin h a d ire ta d e Be n to G on çalv e s? (risos)

— É e m lin h a d ire ta , sim . Eu n ã o sou G on ça lve s, m a s os G on ça lve s sã o u m a

c o isa d a fa m ília a in d a , e n fim … O u se ja : u m a sa la d a . (r iso s) É u m a sa la d a

b e m le g a l n a m in h a fa m ília .

A ch a q u e , n e sse se n tid o, v ocê é u m a típ ica b rasile ira?

— Exa to. Este é o b ra sile iro m a is típ ico, e n te n d e u ? Aq u e le q u e e stá n o Rio

(H e le n a ).

O tre ch o — a ssin a lo d e p a ssa g e m q u e a e n tre vista d a é u m a jorn a lis-ta d e e sq u e rd a , d o Su l d o p a ís — é d e fa to e xce p cion a l p e la com b in a çã o d e q u a se tod os os e le m e n tos con tid os n o m od e lo “ ca rioca ” d e b ra silid a -d e . Te m os u m a re fe rê n cia e xp lícita a o Rio -d e J a n e iro; h á a q u e stã o -d a s trê s ra ça s; a p a re ce m m e n çõe s à s d u a s re g iõe s d e e sp e cia l sig n ifica d o n a re p re se n ta çã o d o Bra sil com o p a ís d a d ive rsid a d e (N ord e ste e Su l); e , fi-n a lm e fi-n te , te m os a lu sõe s a e le m e fi-n tos d o im a g ifi-n á rio h istórico fi-n a ciofi-n a l (os p rim e iros p ortu g u e se s, a fa m ília im p e ria l e Be n to G on ça lve s — “ h e rói d o fe d e ra lism o” ). Aliá s, a p e sa r d e te r, e m d a d o m om e n to, u tiliza d o o te rm o “ sa la d a ” , o q u e a e n tre vista d a q u is re a lm e n te in d ica r é q u e os d ife re n te s “ in g re d ie n te s” q u e form a m su a h istória fa m ilia r n ã o sã o m a is d isce rn í-ve is, tra n sform a ra m -se e m u m a “ m istu ra n a cion a l” , e n ca rn a d a e m su a p róp ria p e ssoa9.

Alé m d isso, n a p rim e ira p a rte d a fa la d e H e le n a , n ota se u m a rg u -m e n to e xp licita -m e n te con trá rio a o ou tro -m od e lo — “ p a u lista ” —, q u e vê o Bra sil com o u m a socie d a d e p lu rié tn ica ou m u lticu ltu ra l form a d a p or im ig ra n te s. N o m od e lo p a u lista , p re d om in a n te e m Sã o Pa u lo e n o Su l, o in d ivíd u o é “ típ ico” q u a n d o p e rte n ce a u m (ou m a is) d os “ g ru p os é tn i-cos” q u e com p õe m o u n ive rso cu ltu ra l d a im ig ra çã o b ra sile ira , ou se ja , p ortu g u e se s, ja p on e se s, a le m ã e s, ita lia n os e ou tros, q u e p e rm an e c e m d isce rn ív e is e n q u a n to ta is (tip o salad b ow l). Sã o Pa u lo su rg e , e n tã o, com o u com a cid a d e com a is tip ica com e n te b ra sile ira q u e o Rio d e J a n e iro e com ra -zã o d a p re se n ça forte e visíve l d a s cu ltu ra s im ig ra n te s. É e sse m od e lo q u e se p e rce b e , p or e xe m p lo, n a se g u in te e n tre vista , re a liza d a com u m jorn a lista te le visivo d e Sã o Pa u lo.

13. — Eu a ch o q u e sou u m típ ico b ra sile iro. Você sa b e , o Bra sil te m u m a m

istu ra m u ito g ra n d e . É d ifícil você ve r u m b ra sile iro q u e n ã o te n h a p a i e stra n

-g e iro ou m ã e e stra n -g e ira , m u ito d ifícil. […] Eu te n h o a vós ita lia n os, te n h o

(16)

q u in h o d e ssa s cu ltu ra s d ife re n te s, p rin cip a lm e n te n a é p oca d a in fâ n cia . Pa

-ra você te r u m a id é ia : e m ca sa , m e u s p a is sã o b u d ista s. En tã o, é d ifícil você ,

e m Sã o Pa u lo p rin cip a lm e n te , se se n tir e xclu siva m e n te d e n tro d e u m a cu

l-tu ra b ra sile ira … Aca b a se n d o a ssim : p e q u e n os p a íse s d e n tro d e Sã o Pa u lo.

M a s é isso, e u a ch o, q u e é a n ossa cu ltu ra … É d ifícil você a ch a r a lg u é m q u e

n ã o tra g a u m p ou co d a Eu rop a , d a Ásia , a lg u m a coisa d e sse tip o p a ra d e n

-tro d e ca sa . N ã o con sig o ve r, a ssim , fa m ília s b ra sile ira s q u a -troce n ton a s, n ã o

con sig o ve r isso a in d a n o Bra sil.

Q u al é o lu g ar m ais b rasile iro d o Brasil?

— O lu g a r m a is b ra sile iro? Ah , e u fica ria a q u i com Sã o Pa u lo m e sm o, sa b e ?

(risos), q u e é o lu g a r q u e a ce itou tod o m u n d o, on d e h á os im ig ra n te s, on d e

h á … Eu a ch o q u e d e u u m p ou co ce rto e ssa m istu ra . Eu sou re su lta d o d e ssa

m ist u r a . E u a c h o q u e o Br a sil é isso m e sm o . U m p o u c o d a id e n t id a d e d o

m u n d o in te iro. En tã o, e u a ch o q u e Sã o Pa u lo e stá re p re se n ta n d o b e m o Bra

-sil (Pe d ro)10.

Ap e sa r d e m e n cion a r a “ m istu ra ” , e d e se r e le m e sm o “ ra cia lm e n te m istu ra d o” , n ã o é a m iscig e n a çã o o q u e m a rca e d e fin e a “ b ra silid a d e tí-p ica ” n o d iscu rso d e Pe d ro, m a s sim o tí-p e rte n cim e n to a os d istin tos g ru -p os d e im ig ra n te s. A id é ia q u e su b ja z a o m od e lo -p a u lista é a p re se rv ação d a s d ife re n ça s, a o p a sso q u e o m od e lo ca rioca p ostu la a con v e rg ê n cia d a s d ife re n ça s orig in a is n a d ire çã o d e u m “ a m á lg a m a ” com u m d e id e n ti-d a ti-d e b ra sile ira .

N o e n ta n to, a op osiçã o e n tre e sse s d ois m od e los d e sa p a re ce q u a n d o se tra ta d os in g re d ie n te s cu ltu ra is d a b ra silid a d e . C om o e m q u a l-q u e r con stru çã o d e id e n tid a d e cole tiva , “ im a g in a r” a com u n id a d e n a cio-n a l b ra sile ira re q u e r q u e se te cio-n h a u m a coe rê cio-n cia cu ltu ra l m ício-n im a e cio-n tre os b ra sile iros. O ra , isso é cla ra m e n te p e rce p tíve l, ou tra ve z, n o ca so d os im ig ra n te s, e , sob re tu d o, m e lh or d ize n d o, n o q u e d iz re sp e ito a os crité -rios im p lícitos e e xp lícitos (e à s e xp e cta tiva s) d os b ra sile iros sob re o q u e d e fin e a in te g ra çã o ou a ssim ila çã o d os im ig ra n te s. Dois e xe m p los:

14. — O q u e fa z d e u m im ig ra n te , u m b ra sile iro? Prim e iro, e u a ch o q u e é e

s-colh e r u m tim e d e fu te b ol, [o tim e ] p e lo q u a l se va i torce r (risos)… Isso é u m a

coisa q u e va le u n ive rsa lm e n te , você se a d a p ta à s p rá tica s loca is. En tã o, a s

p rá tica s loca is sã o os va lore s, q u e r d ize r, os va lore s cu ltu ra is q u e você … Q u e r

d ize r, ch e g a u m im ig ra n te , p or e xe m p lo, n a p e rife ria d e Sã o Pa u lo: e le va i

com e ça r a fre q ü e n ta r os b a re s a li, va i tom a r ce rve ja com os a m ig os, va i a

ssistir a d e te rm in a d os p rog ra m a s d e te le visã o, va i com e n ta r os a ssu n tos co

(17)

15. O q u e faz d e u m im ig ran te , u m b rasile iro?

O lh a , e u a ch o q u e o im ig ra n te , e le com e ça a se torn a r b ra sile iro q u a n d o

com e ça a se p re ocu p a r sin ce ra com e n te cocom os d e stin os d o p a ís. E d e p ois, q u a n

-d o e le a ssu m e a s ca ra cte rística s m a is típ ica s -d o b ra sile iro: g osta r -d e fu te b ol,

g osta r d a m ú sica , g osta r d a p ra ia . Da í, e le se torn a d e sse je ito, e le se torn a

e ssa p e ssoa m a is fle xíve l, b e m h u m ora d a … e u a ch o q u e sã o e ssa s ca ra cte

-rística s q u e e u sin to n o b ra sile iro (M a rce lo).

O s d ois e n tre vista d os d e fin e m e d e scre ve m os crité rios cu ltu ra is p a -ra q u e u m im ig -ra n te se ja con sid e -ra d o “ b e m a ssim ila d o” . E a im a g e m d a “ b ra silid a d e típ ica ” a cion a d a a í, n o con te xto d e u m d iscu rso sob re im i-g ra n te s e im ii-g ra çã o, é m u ito m a is con sp ícu a e h om oi-g ê n e a d o q u e su a im p ortâ n cia n orm a tiva p a ra os p róp rios “ n a tivos” . O ca so d e M a rce lo é re ve la d or, p ois, n o m om e n to e m q u e e le d á su a a u tod e fin içã o d e b ra sile i-ro, te rm in a p or m in im iza r a im p ortâ n cia d a q u e le s m e sm os crité rios u tili-za d os a n te riorm e n te . Ve ja m os:

16. V ocê se con sid e ra u m típ ico b rasile iro?

— (Pa u sa ) Ach o q u e isso é d ifícil d e re sp on d e r, m a s… e u n ã o se i, é d ifícil ca

-ra cte riza r o b -ra sile iro típ ico…

Em q u e se n tid o sim , e m q u e se n tid o n ão?

— Assim , d ig a m os, q u a is sã o a s ca ra cte rística s d e u m b ra sile iro? Ele g osta

d e ca rn a va l, e u n ã o g osto d o ca rn a va l. G osta d e fu te b ol, e u n ã o g osto d e fu

-te b ol. G osta d e p ra ia , g osto d e p ra ia , isso sim (risos), n e ssa p a r-te é ve rd a d e ,

e u g osto d a p ra ia … En tã o, se você p e g a o e ste re ótip o d o b ra sile iro, ta lve z

e u n ã o se ja u m b ra sile iro […]. M a s e u ta m b é m … os e ste re ótip os g e ra lm e n te

e stã o e rra d os, n ã o é ? (M a rce lo)

Ao m e sm o te m p o, p e rce b e -se q u e o “ lim ia r d e a d a p ta çã o cu ltu ra l” é con sid e ra ve lm e n te b a ixo. A m a ioria d os “ in d ica d ore s d e a ssim ila çã o” q u e fora m m e n cion a d os n os tre ch os a cim a fa z p a rte d a q u e le s “ e ve n tos cu ltu ra is cole tivos” a b e rtos à p a rticip a çã o a m p la , ta is com o jog a r fu te b ol, ir à p ra ia , p u la r ca rn a va l, tom a r ce rve ja n o b ote q u im d a e sq u in a . Situ a -çõe s, e n fim , d e fá cil a ce sso p a ra q u a lq u e r e stra n g e iro ou re cé m -ch e g a d o.

(18)

-ta n to, e a o con trá rio d o ca so b ra sile iro, p a re ce se r m a is d ifícil lid a r com a te n sã o e n tre u m m od e lo vig oroso, p or u m la d o, e u m a n ítid a d iscre p â n -cia e tn og rá fica n o p la n o d os com p orta m e n tos e p re fe rê n -cia s cu ltu ra is d a s p e ssoa s, p or ou tro. É o q u e d e m on stra o tre ch o a se g u ir:

17. — ‘Tip ica m e n te a le m ã o’… e u n ã o se i o q u e isto sig n ifica . O q u e é tip ica

m e n te a le m ã o? Em g e ra l, q u a n d o se fa la d e a lg u m a coisa tip ica m e n te a le

m ã , isso te m u m a con ota çã o n e g a tiva . É ób vio, e n tã o, q u e e u n ã o a ce ite n e

-n h u m a co-n e xã o com a m i-n h a p róp ria p e ssoa . (risos)

M as p od e h av e r alg u n s te rm os con sid e rad os n e g ativ os e q u e , n ão ob stan te , alg u é m …

— Pon tu a l… p on tu a lid a d e .

S im , isto, p or e x e m p lo.

— Eu sou b a sta n te p on tu a l. M a s a con te ce , in fe lizm e n te , q u e a p on tu a lid a d e

n ã o é m a is u m a coisa tip ica m e n te a le m ã . N e sse se n tid o, os [a le m ã e s]

oci-d e n ta is, p r in c ip a lm e n t e o s oci-d e e sq u e r oci-d a , b a g u n ça r a m t u oci-d o . E st ã o se m p re

a tra sa d os, e isso ve m te n d o u m a in flu ê n cia . M a s, sim … a p on tu a lid a d e p or

e xe m p lo (Silk e ).

Do p on to d e vista form a l, a fa la d e n ossa e n tre vista d a (a le m ã orie n -ta l, p olítica d e e sq u e rd a ) é m u ito se m e lh a n te à d o b ra sile iro M a rce lo (a cim a , 15 e 16). Acim b os re cu sa cim a va lid a d e d os re sp e ctivos e ste re ótip os n a -cion a is e , a d e m a is, n ã o se re con h e ce m n e le s. Am b os re p rod u ze m , e m p a rte , o m od e lo d iscu rsivo d om in a n te sob re os su p ostos a trib u tos típ icos d e b ra sile iros e a le m ã e s. Poré m , a o con trá rio d e M a rce lo, Silk e a ca b a re n d e n d o-se à a rm a d u ra d iscu rsiva . As d ú vid a s q u e e la d e m on stra te r sob re a va lid a d e e m p írica d a “ p on tu a lid a d e ” e n q u a n to tra ço d o ca rá te r cole tivo n a Ale m a n h a con te m p orâ n e a u n ifica d a n ã o sã o su ficie n te s p a ra q u e stion a r o m od e lo d iscu rsivo, e ta m p ou co e vita m q u e a e n tre vista d a a ca b e p or id e n tifica r-se e a p lica r a si m e sm a a ca ra cte rística .

(19)

cu ltu ra l le g ítim o p a ra a re con stru çã o d o p ós-g u e rra (W ie d e rau fb au )11, e la s a d q u ire m , p or ou tro la d o, ju n ta m e n te com a n oçã o d e ty p isch d e u tsch , u m a con ota çã o fra n ca m e n te n e g a tiva , com o re g istra o d e p oi-m e n to d e Silk e (17).

A e xp re ssã o ty p isch d e u tsch é u tiliza d a n os d ia s d e h oje , p or e xe m -p lo, -p e los a le m ã e s ocid e n ta is q u a n d o q u e re m rid icu la riza r os orie n ta is, im p in g in d o-lh e s a p e ch a d e se re m m a is p a re cid os com os a le m ã e s “ p ré -d e m ocrá ticos” , o q u e sig n ifica d ize r “ q u a d ra d os” , p re con ce itu osos, in tole ra n te s e a tra sa d os (tu d o isso, sin te tiza d o n a p a la vra sp ie ßig ). Ve ja -m os os tre ch os a b a ixo, e xtra íd os d e e n tre vista s co-m d ois p olíticos: u -m d e e sq u e rd a , ou tro d e d ire ita .

18. — Se você q u ise r in ve stig a r a ve rd a d e ira Ale m a n h a , te m q u e visita r u m a

vila n a RDA [Ale m a n h a O rie n ta l]. Lá você va i e n con tra r a Ale m a n h a ta l

co-m o e ra a n te s d e tod a s e ssa s in flu ê n cia s n orte - a co-m e ric a n a s, ita lia n a s e tc. Lá

tu d o é m u ito m a is a u tê n tico; e m u ito m a is “ q u a d ra d o” [sp ie ßig ] (risos) (An

-d re a ).

19. — N a Ale m a n h a O rie n ta l a s p e ssoa s tê m u m a rotin a m u ito re g u la r. Eu

n ã o d iria s p ie ß ig , a in d a q u e o te rm o fiq u e b e m p e rto d isso. Lín g u a s m a is

a fia d a s ce rta m e n te d iria m q u e isso é ‘tip ica m e n te a le m ã o’. A socie d a d e n a

RDA e ra m u ito m a is ‘a le m ã ’ q u e a socie d a d e d a Ale m a n h a O cid e n ta l [RFA],

con sid e ra n d o e sse se n tid o n e g a tivo d a p a la vra … você sa b e … te m g e n te q u e

u sa a p a la vra ‘a le m ã o’ com o ofe n sa (C h ristia n ).

Símbolos nacionais e alt erização

C om e fe ito, e m u m con te xto d iscu rsivo a m b iva le n te com o e sse , fica d ifí-cil e sta b e le ce r, se m a m b ig ü id a d e , u m a re la çã o p ositiva com a “ cu ltu ra a le m ã ” . E isto n ã o p od e se r com p e n sa d o, p or e xe m p lo, p or m e io d e u m a re la çã o a fe tiva com os sím b olos n a cion a is — b a n d e ira , h in o e tc. —, ju sta -m e n te p orq u e e sse s sí-m b olos ta -m b é -m le va n ta -m “ su sp e ita s” , p e la s -m e sm a s ra zõe s h istórica s h á p ou co a lu d id a s. Pod e se d ize r q u e o ú n ico sísm -b olo p ositivo, in con te stá ve l, d a id e n tid a d e a le m ã a tu a l é a G ru n d g e se tz : a C on stitu içã o De m ocrá tica d a Ale m a n h a O cid e n ta l d o p ós-g u e rra .

(20)

d e q u e m n ão é — a le m ã o. Se n d o a ssim , a im ig ra çã o m a ciça d e m ã od e -ob ra p a ra o p a ís n o p e ríod o d o p ós-g u e rra ofe re ce u a os a le m ã e s u m a op ortu n id a d e e xce le n te d e id e n tifica re m -se in d ire ta m e n te p e la op osiçã o a o e sp e ctro n e g a tivo d o A u slän d e r (e stra n g e iro) e d o G astarb e ite r (tra -b a lh a d or a d ve n tício), e vita n d o, d e sse m od o, a s a rm a d ilh a s d e u m a d e fi-n içã o d ire ta d a g e rm a fi-n id a d e .

Sob e sse s d ois a sp e ctos — a re la çã o com os sím b olos n a cion a is e os p rin cíp ios fu n d a m e n ta is d e a lte riza çã o —, o Bra sil re p re se n ta u m m od e lo q u e con tra sta forte m e n te com o ca so a le m ã o. As re fe rê n cia s à b a n d e ira e a o h in o b ra sile iro sã o se m p re p ositiva s, n ã o le va n ta n d o, p or si, su sp e ita s d e n a cion a lism o ou ch a u vin ism o. Alé m d isso, m u itos d os tra ços con sid e -ra d os ca -ra cte rísticos ou “ típ icos” d a cu ltu -ra b -ra sile i-ra corriq u e i-ra , com o fu te b ol e ca rn a va l, n ã o sã o a p e n a s p rá tica s cu ltu ra is cole tiva s, m a s sím -b olos n a cion a is e m si m e sm os. Por e xe m p lo, o sim p le s fa to d e a lg u é m “ te r u m tim e ” , isto é , se r fã d e u m clu b e d e fu te b ol loca l, já é u m a p e rfor-m an ce sirfor-m b ólica d a id e n tid a d e b ra sile ira ta n to q u a n to a ce le b ra çã o d e u m a vitória d a se le çã o n a cion a l n a C op a d o M u n d o, in d e p e n d e n te d e q u a lq u e r p rá tica socia l ou cu ltu ra l e fe tiva m e n te re a liza d a p e la p e ssoa e n q u a n to torce d or12. N e sse se n tid o, a e xp e riê n cia d a id e n tid a d e n a cion a l b ra sile ira p a re ce u m p roje to a m p la m e n te d e m ocrá tico, d e scom p lica d o e n ã o p rob le m á tico.

Essa im a g e m a u tocon fia n te é re força d a p e la visã o d om in a n te q u e se te m d o lu g a r ocu p a d o p e lo Bra sil e n tre os d e m a is p a íse s d o m u n d o. N e -la , o p a ís a p a re ce com o u m “ g ig a n te ” p a cífico, ch e io d e a le g ria e cria ti-vid a d e , q u e n ã o se d e ixa e n volve r e m situ a çõe s d e g u e rra . As te n d ê n cia s n a cion a lista s n o Bra sil p a re ce m lim ita r-se a u m p osicion a m e n to con trá rio à s in te n çõe s h e g e m ôn ica s d os EUA e a u m a ce rta “ riva lid a d e e sp ortiva ” com a Arg e n tin a . De m od o sig n ifica tivo, a “ p a z” ta m b é m é u m a “ cifra ” on ip re se n te n o d iscu rso p ú b lico b ra sile iro, e o le m a “ p a z e a m or” p a re ce te r se torn a d o u m sím b olo n a cion a l p rop ria m e n te d ito.

20. Em q u e v ocê p e n sa q u an d o se fala d a “p az ”?

— Um g ra n d e ob je tivo a se r a lca n ça d o. […] Eu a ch o q u e é p re ciso b a ta lh a r

p e la p a z, te m q u e b rig a r p e la p a z, te m q u e lu ta r p e la p a z…

M as a e sse re sp e ito v ocê e stá p e n san d o m ais n o Brasil, ou n o Rio, e m p arti-cu lar…

— Eu a ch o q u e n o Bra sil…

… ou e m n ív e l m u n d ial?

— N ã o, n o n íve l m u n d ia l. Eu a ch o q u e o Bra sil é u m p a ís p a cífico. O b ra

(21)

d e J a n e iro: d á p a ra se vive r e m p a z? N ã o d á p a ra vive r e m p a z, p or ca u sa

d a violê n cia . Ag ora , o cid a d ã o ca rioca é p a cífico, n ã o é ? Sa i u m m ovim e n

to, u m a p a sse a ta , d e b a n d e ira b ra n ca , e le va i. Ele va i p a ra a s ru a s, se m a

-n ife sta e ta l…

Isso é p arte d a id e n tid ad e b rasile ira, se r p acífico, am ar a p az ?

— Eu a ch o q u e o b ra sile iro te m u m a re je içã o à g u e rra , re je içã o à b rig a , re

-je içã o a o con flito, n ã o é ? Você vê q u e o b ra sile iro é p a cífico… o b ra sile iro…

u m cid a d ã o p a cífico (Lu ca ).

O ca rá te r sim b ólico d a cifra “ p a z” é e xp re sso, sim u lta n e a m e n te , p or su a v e rsatilid ad e con te x tu al — e la é u tiliza d a p a ra fa la r ta n to d a p olítica e d os con flitos e m â m b ito m u n d ia l q u a n to d e te m a s loca is, com o a vio-lê n cia d a s ru a s — e p or su a a p a re n te im u n id a d e con tra a s m a is g rita n te s con tra d içõe s. A im a g e m d o “ b ra sile iro p a cífico” con tra sta com os n íve is d e violê n cia p re se n te s e m q u a se tod os os se g m e n tos d a vid a cotid ia n a : d e sd e os a ssa ssin os d e a lu g u e l e o u so d e a rm a s d e fog o p a ra solu cion a r a s con te n d a s p olítica s n o in te rior d o p a ís, a té a tortu ra e a violê n cia p oli-cia l e m d e le g a oli-cia s e p risõe s; d e sd e os e fe itos ca ta stróficos d a s d e sig u a l-d a l-d e s socia is, a té a a lta in cil-d ê n cia l-d e violê n cia l-d om é stica , e a ssim p or d ia n te . Um e xe m p lo e loq ü e n te d e ssa con tra d içã o p od e se r visto n a form a com o o p ú b lico b ra sile iro re ce b e u o film e d e M ich a e l M oore (Tiro s e m Colu m b in e , 2002) sob re o p rob le m a d os crim e s à m ã o a rm a d a e o fa scí-n io p e la s a rm a s scí-n a socie d a d e scí-n orte -a m e rica scí-n a . O film e fe z su ce sso e foi b a sta n te com e n ta d o n o Bra sil. N o e n ta n to, q u a se n in g u é m m e n cion ou q u e , se o film e a p re se n ta u m n ú m e ro a la rm a n te d e m orte s p or a rm a d e fog o n os EUA, e sse n ú m e ro é ce rca d e q u a tro ve ze s m a ior n o Bra sil.

(22)

Um p rob le m a p u ra m e n te fra n cê s? N ã o. H á os tu rcos n a Ale m a n h a , ou tros

á ra b e s ou m u çu lm a n os ou a frica n os e m ou tros p a íse s e u rop e u s, la tin os n os

Esta d os Un id os e , a té , n ord e stin os e m Sã o Pa u lo. Se rve m tod os, com a s e

x-ce çõe s d e p ra xe , a p e n a s p a ra su a r, n ã o p a ra g oza r. M a is e m a is le va s con

ti-n u a rã o b u sca ti-n d o o su p osto Eld ora d o […]. C om o o m e l d e Eld ora d o ti-n ã o jorra

p a ra tod os, u m ou ou tro se m p re te n d e rá a p e n sa r n a form a O sa m a Bin La

-d e n -d e se r com o u m a solu çã o, n ã o u m p rob le m a (C lóvis Rossi, Folh a d e S . Pau lo, 18/ 10/ 2001).

Le va n d o a d ia n te o ra ciocín io, se ria ta lve z a p e n a s u m a q u e stã o d e te m p o p a ra q u e “ os n ord e stin os” d e Sã o Pa u lo com e ça sse m a form a r g ru-p os g u e rrilh e iros d o tiru-p o “ J ih a d ” , a te rroriza n d o a m u n d a n a cla sse m é d ia p a u lista . A “ fa ve la ” , on d e vive a m a ioria d os n ord e stin os d e sd e q u e ch e g a m à s g ra n d e s m e tróp ole s d o Su l e Su d e ste , vira sin ôn im o d e “ con fu -sã o” e “ violê n cia ” , se m n e ce ssid a d e d e m a is e xp lica çõe s. O e lo d iscu rsivo q u e con e cta os n ord e stin os (e a im ig ra çã o vin d a d o N ord e ste ) à s fa ve -la s e à violê n cia é firm e o b a sta n te , e re ve lou -se com m u ita fre q ü ê n cia n a s fa la s d e m e u s e n tre vista d os, in d e p e n d e n te d e vive re m n e sta ou n a -q u e la cid a d e . Eis a lg u n s e xe m p los d e Forta le za , Rio d e J a n e iro e Bra sí-lia , re sp e ctiva m e n te .

21. Você te m m e d o d a v iolê n cia?

— Eu , [se n d o] d e cla sse m é d ia , te n h o. Eu , com d ois filh os a d ole sce n te s, te n h o.

H á fav e las e m Fortale z a?

— M u ita s, […] a q u i h á m a is d e 600, n ã o se i q u a n ta s, e xiste m m u ita s fa ve la s.

E e las re p re se n tam u m p rob le m a p ara v ocê ?

— Re p re se n ta m , n ã o é ?, p orq u e “ in ch a ” [a cid a d e ]… é u m p rob le m a socia l,

e sse “ in ch a m e n to” . A cid a d e a n te s e ra p a cífica . Às 3 h ora s d a m a n h ã , você

ia p a ra ca sa tra n q ü ilo; h oje você já te m m e d o. En tã o, h oje , você vive m a is e n

-cla u su ra d o d e n tro d e ca sa , você te m m e d o d e ir a o ce n tro, a o te a tro (Wa ld ir).

22. — Por e xe m p lo, a s fa ve la s n o Rio d e J a n e iro, [isso] é p orq u e o N orte é

tã o m a l d e se n volvid o, q u e a s p e ssoa s m ig ra m , q u e r d ize r, n ã o h á d istrib u

i-çã o d e re n d a . A violê n cia e stá a í, p or q u ê ? Porq u e re a lm e n te n ã o te m n a d a

q u e se fa ça p e lo p ovo, e n te n d e u , a ssim , o p ovo m e sm o…

Esp on tan e am e n te : e m q u e p e n sa q u an d o se fala d e “fav e la”?

— Im ig ra çã o.

Im ig ração? Com o?

— Im ig ra çã o d o N orte , d o N ord e ste … As fa ve la s só fora m cria d a s p or isso,

e la s fora m cria d a s p or ca u sa d o N orte e N ord e ste . Q u a n d o você sob e a

(23)

s-tin os]. Este é u m p rob le m a re a lm e n te d e im ig ra çã o q u e n ã o foi re solvid o,

[…] n ã o foi d e se n volvid o lá , o q u e fe z com q u e e le s vie sse m p rocu ra r a s

ci-d a ci-d e s g ra n ci-d e s, n ã o é ?, p a ra p oci-d e r tra b a lh a r e vive r (C la u ci-d ia ).

23. — Esse ê xod o ru ra l a q u i n o Bra sil é im p re ssion a n te , a s cid a d e s d ob ra m

d e p op u la çã o e m p ou cos a n os. […] En tã o, e sse ê xod o ru ra l tra z tod o o p

ro-b le m a d e d e se n ra iza m e n to, e d e p ois d e re la cion a m e n to d e n ovo. C om o q u e

e ssa s p e ssoa s […] vã o se n d o lite ra lm e n te jog a d a s p a ra a s p e rife ria s. E d a í

tod o o p rob le m a d e violê n cia q u e e xiste , n ã o é ?

Q u e e x iste aq u i e m Brasília tam b é m ?

— Em Bra sília ta m b é m … e xiste sim (Alb e rto)13.

N o Bra sil, a s fron te ira s id e n titá ria s sã o, e sse n cia lm e n te , fron te ira s sociais. E a cla sse m é d ia , com su a in flu ê n cia p re p on d e ra n te sob re a m íd ia e a a g e n íd a p olítica , íd e te rm in a a s cliva g e n s p rin cip a is: os p ob re s e m -b a ixo e a s “ e lite s” — e m la rg a m e d id a “ im a g in á ria s” — n o top o. De fa to, é in te re ssa n te ob se rva r q u e os e ste re ótip os m a is com u n s a re sp e ito d os fa ve la d os n o Bra sil sã o m u ito se m e lh a n te s a os e ste re ótip os q u e d e scre -ve m os A u slän d e r (e stra n g e iros) n a Ale m a n h a . C om o sã o se m e lh a n te s ta m b é m a s p rá tica s p olicia is d e viole n ta a lte riza çã o. Assim , os d iscu rsos sob re a id e n tid a d e n o Bra sil ce n tra m-se n a q u e stã o d e cla sse ou ou tra s q u e stõe s socia is, e n q u a n to a n oçã o d e id e n tid a d e n a cion a l é d e ixa d a a ca rg o d a s re p re se n taçõe s sim b ólicas — n ã o som e n te sím b olos oficia is d o Esta d o, m a s ta m b é m o fu te b ol, o sa m b a e a té m e sm o a “ p a z” .

O p re d om ín io d a con stru çã o socia l d a id e n tid a d e te m a p oio, ta m-b é m , e m u m a ou tra re p re se n ta çã o fre q ü e n te som-b re o Bra sil, se g u n d o a q u a l o p a ís e stá “ d e costa s volta d a s” a o re sto d o con tin e n te . Dirig in d o o olh a r sob e ja m e n te “ p a ra d e n tro” , os b ra sile iros a ca b a m , ip so facto, a g u ça n d o a ca p a cid a d e d e p e rce b e r a s d ife re n ça s “ in te rn a s” . E isto se re fle -te , p or e xe m p lo, n a con ce p çã o d e q u e o Bra sil “ sã o vá rios Bra sis” (cf. Fre yre 1952) — m ote q u e fa z re fe rê n cia à su a g ra n d e d ive rsid a d e g e o-g rá fica , m a s ta m b é m a su a s im e n sa s d e sio-g u a ld a d e s socia is.

Conclusão

(24)

-p re se n ta çã o d iscu rsiv a — d a g e rm a n id a d e ou d a b ra silid a d e — e a re a li-za çã o d e ssa s id e n tid a d e s e n q u a n to p rá tica social e cu ltu ral. Assim , os e xe m p los m ostra m q u e a s re p re se n ta çõe s d iscu rsiva s, m e sm o g a n h a n d o vig or e va lid a d e e m d e te rm in a d os con te xtos socia is, n ã o e stã o n e ce ssa ria m e n te con e cta d a s à s p rá tica s sociocu ltu ra is corre sp on d e n te s. Pod e h a -ve r, in clu si-ve , u m a con tra d içã o m a rca n te e n tre o q u e é d ito e o q u e é fe ito. Ta is con sid e ra çõe s sã o vá lid a s n o q u e con ce rn e ta n to à s p rá tica s in-d iviin-d u a is q u a n to cole tiva s. A a sse rçã o b ra sile ira e m fa vor in-d a p a z e in-d o a m or, p or e xe m p lo, n ã o n os re ve la n a d a sob re o coe ficie n te d e violê n cia q u e é e xe rcid o se ja p e la socie d a d e b ra sile ira vista com o u m “ tod o socio-lóg ico” , se ja p e los in d ivíd u os. Um b om e xe m p lo d e ssa d iscre p â n cia foi o p e d id o d e “ p a z” p in ta d o n o te rra ço d o p rin cip a l p a vilh ã o d e u m a p e n i-te n ciá ria d e Sã o Pa u lo, p e los p re sos p e ri-te n ce n i-te s a o ch a m a d o C om a n d o Re volu cion á rio Bra sile iro d o C rim e , d e p ois d e te re m a ssa ssin a d o ou tros se te p re sos d e u m a fa cçã o riva l, e m m a io d e 2002 (Jorn al d o Brasil, 3/ 5/ 2002). A in te n çã o d iscu rsiva d o p e d id o d e “ p a z” d e se n h a d o n o ch ã o foi con ve n ce r a op in iã o p ú b lica d e q u e os p a rticip a n te s tin h a m “ b oa s ra -zõe s” p a ra p e rp e tra r a m a ta n ça , e q u e con tin u a va m se n d o “ b on s b ra si-le iros” .

C e rta m e n te , e sse tip o d e “ d e fin içã o in con siste n te ” e xiste e m tod a e q u a lq u e r con stru çã o d e id e n tid a d e . Tom e -se , p or e xe m p lo, a n e g a çã o d iscu rsiva d a “ g e rm a n id a d e tu rca ” , q u e ro d ize r, a “ d e sn a cion a liza çã o” d a se g u n d a e te rce ira g e ra çõe s d e im ig ra n te s tu rcos n a Ale m a n h a . N ã o som e n te e la é u m a n e g a çã o in con siste n te d e u m a d a d a “ re a lid a d e e tn o-g rá fica ” , com o, a d e m a is, n ã o im p e d e p rá tica s socia is e cu ltu ra is e m q u e se p e rce b e u m a lto g ra u d e in te g ra çã o d e sse s im ig ra n te s, sob re tu d o n a s e scola s e u n ive rsid a d e s.

A m e u ve r, e ssa s con tra d içõe s n ã o d e ve m se r e n ca ra d a s com o “ fa lá -cia ” , m a s com o fa to in e re n te a q u a lq u e r con stru çã o d e id e n tid a d e e a q u a lq u e r “ im a g in a çã o” d e com u n id a d e (cf. M a cDon n e ll 1986:3940). Pe -lo q u e p u d e m os a p re e n d e r d os e xe m p -los a p re se n ta d os, ta is con tra d içõe s sã o, in clu sive , p a rticu la rm e n te sig n ifica tiva s p a ra a a n á lise . Do p on to d e vista m e tod ológ ico, a “ d iscu rsivid a d e ” in e re n te à con stru çã o d a id e n ti-d a ti-d e forn e ce u m a via ti-d e a ce sso ti-d ire to a os p rin cíp ios b á sicos ti-d e ssa con s-tru çã o m e sm a . E a a n á lise te xtu a l e d e d iscu rso se rve com o fe rra m e n ta já m u ito b e m te sta d a q u a n d o se tra ta d e b u sca r “ n a rra tiva s m e stra s” (Bor-n e m a (Bor-n 1992) e “ form a çõe s d iscu rsiva s” (Fou ca u lt 1994).

Referências

Documentos relacionados

Ref erências bibliográf icas.. ALVES-SILVA, J ., SAN TO

Esta in clu sã o... Pa

Th e stru ctu re of social action.. En say os sob re m e tod olog ía

M adrid: Consejo Superior de Inves- tigaciones Científicas... O f im da religião: dilemas da liberdade religio- sa no Brasil e

O f im da religião: dilemas da liberdade religio-.. sa no Brasil e

Crianças indígenas: ensaios ant ropo- lógicos.. São

Hist ória social e cult ural do mo- dernismo art íst ico em São Paulo.. São Paulo: Companhia das

Hist ória social e cult ural do mo- dernismo art íst ico em São Paulo.. São Paulo: Companhia das