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Memórias: pessoalidade e impessoalidade na representação de sujeito.

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Academic year: 2017

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RES UMO:O artigo trata das form as de representação consideradas

pela psicanálise. Indaga tanto as produções de m em órias pessoais, quanto as atribuições de responsabilidade nas organizações sociais totalitárias. Indaga, tam bém , a im bricação entre representação indivi-dual e coletiva e a particularidade que assum em as m em órias da in-fância nessa questão.

Palavras - c h ave : m em órias, escrita, responsabilidade social.

ABSTRACT: Mem ories: the personal and the im personal in the

sub-ject representation.This paper concerns form s of representation con-sidered by psychoanalysis. It investigates both the production of per-sonal m em ories and attributions of responsibility in totalitarian soci-eties. It also exam ines the relation between individual and collective representation and underlines the special im portance of childhood m em ories in this context.

Ke y w o rds : m em ories, w riting, social responsibility.

É

de se indagar por que a psicose — m ais precisam ente a paranóia — tem sua apresentação na psicanálise a partir de um a escrita de “m em órias”. Foi através do escrito autobiográfi-co de Daniel Paul Schreber que Freud ( 1911/ 1972) descreveu o m ecanism o da psicose, inaugurando sua abordagem na co-m unidade analítica. Esta condição inaugural é tão co-m arcante, que sua elaboração ainda é referência, apesar de Schreber nunca ter consultado Freud, que não se dispunha a trabalhar com a psico-se. Não foi a prim eira nem a últim a vez que Freud utilizou-se de textos literários para construir conceitos, m as no caso de Schreber há uma peculiaridade. Os outros escritos serviram como suporte, ou bem analógico, ou bem nom eante ( no caso do Doutora em

Psicologia Clínica, PUC/ SP. Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Ap p o a.

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Édipo) , ou bem aplicativo de questões que lhe suscitava a escuta de seus pacientes. Já o caso de Schreber m ereceu um a descrição clínica com o se fosse um caso em transferência.

Esse sim ples exem plo já serviria para perguntar acerca do lugar que ocuparia a escrita num percurso de análise. Em Freud, pode-se m esm o sublinhar se escrever não foi o elem ento central, o elem ento que lhe perm itiu até m esm o escutar. Os indícios são m uitos e basta lem brar som ente dois testem unhos: seu célebre texto sobre a interpretação dos sonhos ( FREUD, 1900/ 1972) , que se com põe de inú-m eras análises de seus próprios sonhos e que ele situa coinú-m o uinú-m trabalho de luto pela m orte de seu pai. Seu trabalho de análise pessoal, que acontece preponderan-tem ente na escrita de cartas a Fliess ( FREUD, 1950/ 1972) . É interessante observar que quando Freud escreve nesses dois lugares ele não faz distinção, nem estabelece distância, entre seus processos pessoais e as elaborações de conceitos que propôs com o universais.

Um a aproxim ação a essa questão pode ser pensada em testem unhos de análise híbrida, vam os dizer assim , quando acontecem m om entos em que o analisante escreve ao analista, dentro de um a análise clássica, que sem pre se dá pela com uni-cação oral. É corriqueiro que essa escrita aconteça em m om entos de m aior angús-tia, ou quando um sonho desperta um a cadeia associativa que se tem necessidade de registrar. Só que, com o já dizia Proust ( PROUST, 1988) , escreve-se para esque-cer, e o que foi escrito não passa à com unicação oral subseqüente. Mas, m esm o quando passa, não se trata m ais da m esm a questão. Em percursos de análise em que a escrita não com põe um m ovim ento eventual, m as passa a integrar o próprio processo, chega-se a pelo m enos duas constatações: a escrita é um a resolução em si m esm a; escreve-se para o analista ( ou, m ais precisam ente, para a transferência) .

Que tipo de resolução essa escrita produz? Seria do lado do recalque, seria um a saída sublim atória? A sublim ação m ereceria um a análise m ais detida. Tem -se a ten-dência de pensá-la com o um a saída feliz de um conflito pulsional. Com o se hou-vesse a possibilidade de um transporte absoluto da m undanidade rala de nossos dejetos corporais, ao sublim e das letras, das cores, das form as, da estética... Freud ( 1915/ 1972) a situou com o um a satisfação da pulsão, sem recalque, e a psicaná-lise sem pre lhe deu o valor de um a resolução. No entanto, basta acom panhar um pouco os que dedicam sua vida a esta experiência para reconhecer que, apesar de se im por com o um a necessidade, não há propriam ente saída do m al estar, trazido pelo conflito, na produção do ato criativo. Diríam os m esm o que esses atos entram na m esm a com pulsão à repetição que caracteriza o sintom a. Basta lem brar Van Gogh, que no final de sua vida pintou 70 quadros em 70 dias, para constatarm os um a inclinação com pulsiva na criação.

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dos atos hum anos, com o m aneiras diferentes de representação. Mas Freud tem razão num ponto: o ato criativo é um a resolução — um a saída — para algo im -possível de se expressar com o sintom a.

Retornando à escrita em análise, afirm am os que esta se produz para a transfe-rência. O sentido am plo da experiência inclui o corpo na relação com o sem elhan-te e com o real ( com o um a deelhan-term inada produção de ato do sujeito) . Enquanto atividade pulsional — inscrita na com pulsão à repetição — a experiência é tom a-da com o um saber que não se sabe, m as que busca um sujeito ( um Outro que interprete) . Pode tam bém ser tom ada com o um a adequação ao eu. A transferência tem sido bastante abordada, nos escritos de inspiração lacaniana, com o um sujei-to supossujei-to saber, atribuído ao analista. Então, esse saber inconsciente ganha um sujeito ao custo da neurose de transferência. A clássica proposta lacaniana de fim de análise está colocada na possibilidade de dispensar a necessidade de atribuição de um sujeito suposto saber, ao saber inconsciente. Pois bem , graças à transferên-cia, as form ações do inconsciente ganham um endereço único: os sonhos, lapsos, sintom as acabam se particularizando: são para o analista.

Poder-se-ia dizer que, no início de sua produção, Freud escrevia para Fliess. Poderíam os pensar que seus artigos duplicavam suas cartas. Estas, m isturavam co-m unicações de análises de seus sonhos, de seus sintoco-m as, de leco-m branças da infân-cia, com com unicações de suas construções teóricas. Em m uitos m om entos, os dois registros não se distinguiam . Indo ainda além : Freud não personalizava suas com unicações m ais íntim as, tornando-as um cam po de investigação e produção que não lhe pertencia, que ele nom eou com o inconsciente e que registrou com o um saber que não era seu, m as da psicanálise. O único personalizado nesse m o-m ento inicial era Fliess, que too-m ava coo-m o parceiro e endereço de tudo o que pro-duzia. Isto se deu até a publicação de seus textos sobre as form ações do incons-ciente, em 1900, que m arca a m udança de endereço na sua escrita: a passagem de um a personificação para um a com unidade aberta, sem um sujeito situado.

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de algo cultural, algo que ele precisava revelar ao mundo. Aqui, “revelar” entra m ais no registro de um a doação e não no sentido de um a preservação narcísica.

A IMPESS OALIDADE TOTALITÁRIA

O “m elhor” e o “pior” das produções hum anas vêm do m esm o lugar. Por isso, dificilm ente se consegue estabelecer, de um a vez para sem pre, m ecanism os regula-dores das relações sociais. Já se denom inou de tantas coisas o “pior” da condição hum ana — dem ônio, aberração, degeneração, perversão, ou sim plesm ente “m al” — variações estas conform es à sua descrição pela religião, ciência ou filosofia. Seria o “m al” próprio da natureza do indivíduo, ou lhe seria exterior, vindo das diferentes form as de representação e dom inação pelas organizações sociais? Essa pergunta, até hoje, continua aberta, m antendo seu trânsito entre esses dois pólos, na m edida que cada um deles não a consegue responder satisfatoriam ente.

Iniciam os desta form a um a série de considerações sobre a construção de m e-m órias, talvez por ue-m a particularidade contextual: parece que estae-m os hoje, pela proliferação de testem unhos biográficos, muito m ais convocados a responder pelo que foram os exterm ínios. A construção de nossas m em órias passa inevitavelm en-te por aí. Esse “responder” en-tem algum as conseqüências, todas elas relativas à res-ponsabilidade de representar algo, no que está im plicada tam bém a construção de um julgam ento. Recentem ente, foi relançado no Brasil um livro de Arendt ( 1999) , inexplicavelm ente esgotado por m ais de dez anos, sobre o julgam ento de Eichm ann, em que ela enfrenta essa questão com bastante coragem . Eichm ann era um m ilitar nazista responsável prim eiro pela deportação em m assa dos judeus e, por últim o, pela cham ada “solução final” ( transporte para os cam pos de exterm ínio) . As duas questões m ais instigantes do livro ligam -se à indagação sobre as responsabilida-des. A prim eira, diz respeito à participação dos líderes das com unidades judaicas junto aos com andos nazistas ( tam bém os que foram coordenados por Eichm ann) . Essa participação tanto dizia respeito à orientação para a não-reação ( um dos fato-res a que Arendt atribui a passividade dos judeus) quanto à ajuda da escolha de quem seria levado, sob a alegação de “salvar os m elhores”. Com o coloca Arendt ( 1999) , a “aceitação de categorias privilegiadas... fora o com eço do colapso m oral da respeitável sociedade judaica” ( p. 148) .

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“...essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer, tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis. Ele cum pria seu dever... ele não só obedecia ordens, ele tam bém obedecia à lei.” ( ARENDT, 1999, p. 148)

Assim , pode-se depreender que a “banalidade do m al” ( pelo m enos no que diz respeito aos sistem as totalitários) , para Arendt ( 1999) , está nessa im possibilidade de restringi-lo a um a natureza individual. Na m áquina, na burocracia totalitária e no ideal do Führer, era possível banalizarem -se atos que em outras circunstâncias seriam considerados condenáveis. No fim das contas, Eichm ann poderia ser sim -plesm ente considerado com o um funcionário eficiente. O que, evidentem ente, não o exim e da responsabilidade nos atos que com eteu.

Seguindo um a linha de raciocínio próxim a a Arendt, Calligaris ( 1991) propõe denom inar isso que torna o “m al” banal com o um a saída perversa. Só que o autor propõe a perversão com o um a patologia social e não sexual ( com o seria tradicio-nal dentro da psiquiatria e da psicanálise) . No referido trabalho, ele se propõe a analisar o caso de Speer, arquiteto de Hitler, com eçando por sua frase: “a guerra era

inevitável porque havia os m eios técnicos para fazê- la”. Calligaris ( 1991) aproxim a esta frase das reações contra o desenvolvim ento da técnica, encontradas desde os heideg-gerianos, passando por Arendt e Jaspers. O autor diz que não acha suficiente pen-sar que o desenvolvim ento técnico enquanto tal seja alienante, ou seja, que im pli-que necessariam ente num exercício, propondo pli-que algo m ais deve ser juntado a esse pensam ento.

“...o que cham a triunfo da técnica, da instrum entalidade, só é triunfo na m edida que

os hom ens m esm os funcionem com o parte integrante desta técnica, quero dizer, fun-cionem com o instrum entos”.

Com o “efeito da técnica” ele propõe que se leia:

“...efeito do interesse e da paixão hum ana em sair do sofrim ento neurótico banal... reduzindo a própria subjetividade a um a instrum entalidade”. ( CALLIGARIS, 1991, p. 110)

O autor atribui a paixão da instrum entalidade a um a tentativa de saída da ig-norância do saber e querer neuróticos, que se sustentam de um a suposição de saber ao pai nunca com pletam ente positivada. É então que propõe a saída perversa da neurose:

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coletiva-m ente — ucoletiva-m secoletiva-m blante de saber paterno que por isso coletiva-m escoletiva-m o seja sabido e cocoletiva-m par-tilhado.” ( CALLIGARIS, 1991, p. 112)

A conseqüência é a transform ação do sujeito em instrum ento de um saber assim estabelecido. É então que o gozo não está em m atar pessoas e sim em ser um “funcionário exem plar”. O autor não atribui a paixão da instrum entalidade so-m ente aos episódios do totalitarisso-m o, colocando-a coso-m o uso-m a condição cotidiana e abrangente de saída da neurose.

Gostaríam os de nos deter um m om ento na expressão “perversão”. Na psicaná-lise, ela foi originalm ente utilizada por Freud ( 1905/ 1972) para designar desvios pulsionais na infância — a sexualidade perversa polim orfa. Já Lacan a sugere com o designação de toda versão do pai (père- version, em francês) . Talvez essas duas pro-postas não sejam divergentes. A perversão polim orfa indica um a condição de desnaturação da pulsão. Ou seja, a perda de seu objeto “natural”, o que provocaria um a desm edida na sua expressão, pela m ultiplicação de objetos substitutivos. É aí que podem os situar um a questão um pouco controversa no texto de Freud ( 1905/ 1972) dos Três ensaios. Ele diz ali que a cultura é dique, refreia o pulsional. Mas o que ele não diz é que a desnaturação — ou seja, a própria cultura — é o que provoca a desm edida, o desenfream ento. Se a pulsão tivesse objeto natural, ela estaria contida — refreada — pelo próprio objeto. É aqui que podem os encontrar proxim idade com o texto lacaniano: por term os constituído versões do pai, pelo nosso funcio-nam ento depender disso, o pulsional desgarrou-se da natureza e a lei se confunde com a transgressão. Ou seja, o pai significa em si a perversão da natureza e suas refe-rências podem trazer a desm edida e o desenfream ento.

Na natureza, a lei são os ciclos de procriação e preservação. Já para nós, a m ãe — pelo olhar do pai ( onde se representaria a lei) — divide-se entre satisfação e desejo, sendo que um a coisa term ina por confundir-se com a outra. Nunca m ais encontram os a “m ãe natureza”, a m ãe pura necessidade, que enfim pudesse ser acalm ada.

Algo que m ereceria um m elhor desenvolvim ento, dentro das colocações de Calligaris ( 1991) que destacam os, diz respeito à afirm ação de que a perversão seria social e não sexual. Poderia ficar subentendido que o que é sexual não é social e vice-versa, questão que não se sustenta dentro da psicanálise. Acreditam os que essa colocação liga-se à im agem corriqueira da perversão com o definindo um a prática erótica, sendo a isso que o autor se contrapõe.

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ordem dos bens, seja do sujeito, seja do outro ( é por aí que o autor situa “estar bem no m al”) . A lei em Kant é o encontro de um im perativo categórico — logo, um a abstração que não tem objeto, se im pondo em todos os casos — que faz de cada um , ao m esm o tem po, sujeito e objeto da lei. Essa proposta de inter-relação de Kant com Sade foi certam ente inspirada na afirm ação freudiana de que o supereu contém o im perativo categórico kantiano. É aí onde Lacan ( 1998) constrói essa ironia de situar o supereu ( o que seria representante da lei) com o im perativo do gozo, produzindo essa junção entre a academ ia ( onde prim eiro aparece o discur-so do m estre) e a alcova ( lugar do enlace dos corpos) . Com a colocação de que ali onde o supereu diz “goza!”, o sujeito só pode responder “ouço”, Lacan lem bra as duas im possibilidades de totalização: a de um universal abstrato de um a lei sem corpo ( a “objetivação” da academ ia) e a de um encontro absoluto de corpos fora de um discurso.

No que diz respeito ao universal, é interessante retom ar Calligaris ( 1991) na sua abordagem do term o “totalitário” ( ligado à sua análise do totalitarism o) : ele se situa tanto na referência associativa ( quem não se associasse seria reduzido a instrum ento na m orte) , quanto na alienação total do sujeito à sua posição instru-m ental. Nesse sentido, perdeinstru-m -se as fronteiras entre privado e público:

“...o princípio básico de um regim e totalitário é efetivam ente um a gestão total da vida

cotidiana... A esfera da vida privada desaparece progressivam ente... Entende-se então que, do m eu ponto de vista, o ideal político nunca é m ais do que a procura de um equilíbrio instável entre um a alienação necessária para a vida social e a resistência à sua inércia totalitária.” ( CALLIGARIS, 1991, p.116)

Im porta, aqui, pensar um pouco nessa questão das fronteiras entre privado e público. Nela, se tem atizam coisas bastante relevantes. Essa espécie de separação é o que garante a im possibilidade de realização de um universal: seja com o língua, seja com o lei, seja com o identidade. Nesse sentido, a passagem à cultura, enquanto realização plena de um reconhecim ento, nunca se efetua com pletam ente. O “equi-líbrio instável”, colocado por Calligaris ( 1991) , diz respeito a isso. É isso tam bém que interpela a psicanálise, seja com o um debate interno a ela, seja com o sua justi-ficativa social. Se a psicanálise se propusesse a “curar” a neurose — num sentido m édico — entraria na prom essa de elim inar o que faz resistência a um a língua universal. O que é im pressionante de se constatar é que a língua das neuroses é a m esm a da cultura. Freud situa isso m uito bem . Por isso, suas análises culturais não se diferenciam de suas análises individuais. A organização da neurose obsessiva, por exem plo, pode situá-la com o um a expressão religiosa. No entanto, ela não é com unicável, não é com partilhável, com o é a religião.

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de um a língua à outra: da m ãe ao pai, ou tam bém do incesto à cultura, com o se queira. Essa passagem , com o continua se realizando pela vida afora, im plica na m anutenção de elem entos heterogêneos e a própria referência ao pai contém esses elementos.

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA

Perec ( 1995) foi um dos judeus a testem unhar, na sua infância, os eventos da Se-gunda Guerra Mundial. Ele não teve um a história m uito diferente de outros que viveram esse contexto e, tam bém com o tantos outros, decide escrever seu teste-m unho. No entanto, deve-se ressaltar, é uteste-m dos poucos a se tornar escritor.

O autor intitulou W ou a m em ória da infância ( PEREC, 1995) a um a construção autobiográfica. São duas histórias paralelas — desenvolvidas em capítulos alterna-dos — aparentem ente sem relação um a com a outra. Um a delas trata da história de W, a ficção de um a ilha — a Terra do Esporte — da qual só restou um sobrevivente. Na outra o autor nos com unica um a tentativa de reconstrução de m em órias de sua infância. Com o o próprio título do livro nos sugere, as duas histórias são equiva-lentes, ou seja, um a pode ser substituída pela outra — é isso que o “ou”, que liga as duas, nos sugere. Sobre o “W” — essa letra solta que aparece enigm aticam ente no título — Perec faz um a série de associações e transform ações no interior da narrativa ( até m esm o sua associação com a suástica) . Perec ( 1995) com eça assim as m em órias:

“Não tenho nenhum a m em ória da infância. Até os doze anos m ais ou m enos, m inha história se resum e em poucas linhas: perdi m eu pai aos quatro anos, m inha m ãe aos

seis; passei a guerra em diversos pensionatos... Em 1945, a irm ã de m eu pai e seu m arido m e adotaram ... Não tenho recordações da infância: eu fazia essa afirm ação com segurança, quase com um a espécie de desafio. Não precisavam m e interrogar sobre essa questão. Ela não estava inscrita no m eu program a. Estava dispensado dela.

...um a outra história, ...a História com H m aiúsculo, havia respondido em m eu lugar: a guerra, os cam pos de concentração.” ( p. 13)

Por outro lado, o relato paralelo — a ficção de W — coloca, no prim eiro capí-tulo, o seguinte:

“Não im porta o que aconteça, não im porta o que eu faça, eu era o único depositário, a única m em ória viva, o único vestígio daquele m undo. Isso, m ais que qualquer outra

consideração, m e levou a escrever.” ( PEREC, 1995, p.10)

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fica-m os nos indagando sobre os elos: onde eles estão, cofica-m o se explicitafica-m ? O outro paradoxo é de que nas m em órias da infância, ali onde esperaríam os encontrar a intim idade, a fam iliaridade e a auto-representação do narrador, o que aparece é a estranheza e a distância. São outros que falam , na ausência absoluta de reconheci-m ento pelo eu: são tentativas de descrição a partir de fotos, tentando reconstituir personalidades e cenas, bem com o a partir de relatos de outros ( da tia, principal-m ente) . Ficaprincipal-m os, coprincipal-m o o narrador, enquanto observadores de uprincipal-m a história reconstituída quase artificialm ente. Contraditoriam ente, o m undo anônim o da Terra do Esporte, onde nada de singular sobrevive ( até m esm o os nom es próprios são designações das provas e com petições) , com eça a envolver-nos, a angustiar-nos, com eça a nos fazer m em ória. Na ilha W im pera o ideal olím pico, em que as constantes provas determ inam os dias e a vida. Um ideal de com petição, higiênico e estético, que vai progressivam ente, na narrativa, fazendo-se cada vez m ais e m ais cruel, até tornar-se insuportável. É ali onde reconhecem os um a organiza-ção totalitária.

Não é surpreendente a afirm ação “não tenho nenhum a m em ória da infância”. Freud ( 1905/ 1972) já sugeriu que a am nésia é o com ponente norm al das “m e-m órias” infantis, que sucue-m bee-m ao recalque, independente de eventos reconheci-dam ente traum áticos. Mas o que sim surpreende é a afirm ação do sentim ento de ser dispensado de responder pela infância, entrando ali um a história anônim a: História com H m aiúsculo. É som ente nessas colocações m ais radicais que é possí-vel perceber o paradoxo que faz parte de nossa “norm alidade” de exílio. Todos som os convocados a responder pela infância, a responder por um m om ento que aparentem ente não nos diz respeito, porque se trata preponderantem ente da en-carnação do desejo de nossos pais. Ou seja, som os convocados ao im possível de responder por um desejo que nos gerou, um desejo im pronunciável, enigm ático ( que nem os genitores conseguem expressar) . No entanto, talvez essa sim ples ba-nalidade constitua a diferença em relação a organizações totalitárias. Nesse senti-do, responder pela infância pode ser o que perm ita a saída de posições instrum en-tais, na m edida que o m undo à nossa volta nos “olha”, nos diz respeito. Essa é, pelo m enos, a posição da psicanálise.

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BIBLIOGRAFIA

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Ana Maria Medeiros da Costa

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