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Processo de concretização normativa e direito tributário : transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal

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Academic year: 2017

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO

DANIEL LEIB ZUGMAN

PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA E DIREITO TRIBUTÁRIO:

Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal

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DANIEL LEIB ZUGMAN

PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA E DIREITO TRIBUTÁRIO:

Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal

Dissertação apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito

Campo de conhecimento: Direito e Desenvolvimento/Direito Tributário

Orientador: Prof. Dr. Dimitri Dimoulis Coorientador: Prof. Dr. Eurico Marcos Diniz de Santi

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DANIEL LEIB ZUGMAN

PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA E DIREITO TRIBUTÁRIO:

Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal

Dissertação apresentada à Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito

Campo de conhecimento: Direito e Desenvolvimento/Direito Tributário

Data de Aprovação:

__/__/____

Banca examinadora:

___________________________________ Prof. Dr. Dimitri Dimoulis (Orientador)

___________________________________ Prof. Dr. Eurico Marcos Diniz de Santi (Coorientador)

___________________________________ Prof. Dr. José Rodrigo Rodriguez

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Zugman, Daniel Leib.

Processo de Concretização Normativa e Direito Tributário: transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal. / Daniel Leib Zugman. - 2014.

142 f.

Orientador: Dimitri Dimoulis.

Coorientador: Eurico Marcos Diniz de Santi.

Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.

1. Direito tributário. 2. Transparência no governo. 3. Sigilo (Direito). 4. Estado de direito. I. Dimoulis, Dimitri. II. Santi, Eurico Marcos Diniz de. III. Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. IV. Título.

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AGRADECIMENTOS

Embora escrever seja uma prática solitária, este trabalho não teria sido produzido sem o apoio de várias pessoas durante os últimos dois anos.

Conta Hesse que Sidarta, após estudar e compreender a doutrina de Buda, percebeu que apenas sozinho alcançaria seu destino e descobriria sua própria verdade. Buda, do alto de sua sabedoria, compreendeu as necessidades do jovem sacerdote, e não se zangou: abençoou o rapaz para que tivesse êxito em sua empreitada espiritual.

Do mesmo modo meus professores me conduziram e transmitiram seus ensinamentos, porém sempre com a preocupação de que eu me apoderasse do trabalho, construísse e desconstruísse minhas próprias verdades. Foi-me dado o privilégio de ser livre para acertar e para errar. Assim são os verdadeiros mestres: guiam-nos para nos tornarmos aquilo que somos, tal como recomendaria Leminski.

Professor Dimitri Dimoulis, obrigado pela rigorosa orientação, por me fazer refletir sempre, buscar as fontes originais, contrapô-las, não aceitar verdades pré-concebidas, por ler e reler meus escritos com atenção, questionando-me e fazendo com que criasse calos e cicatrizes para suportar as dores do crescimento pelo próprio esforço.

Professor Eurico Marcos Diniz de Santi, serei eternamente grato pela amizade, pela generosidade inigualável, por tratar seus alunos como membros de sua família. E, sobretudo, por mostrar, com o poder dos atos e não meramente das palavras, que mesmo no mundo do direito, onde a tradição e o formalismo têm assento especial, há espaço para a intuição e a criatividade. Melhorar o Brasil, sim, nós podemos!

Sou imensamente grato a meus pais, Noêmia e Ari, por terem possibilitado que viesse a São Paulo estudar. Não apenas me provendo materialmente, mas me oferecendo todo suporte e carinho que um filho pode esperar dos pais. Muito obrigado, também, aos meus irmãos Gabriel e Ana Beatriz, sempre comigo.

Obrigado à família Roiter Prestes pela recepção tão acolhedora em São Paulo, que, em muitos momentos, fez com que me sentisse ter duas famílias.

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Christopoulos, Dalton Hirata, Isaias Coelho, Mariana Pacheco, Nara Taga, Roberto Codorniz e Vanessa Rahal Canado.

Um agradecimento especial a Frederico Bastos, companheiro de mestrado, de NEF/Direito GV e que esteve junto nas angústias e alegrias dos últimos dois anos. Obrigado, irmão.

Também agradeço a todos os colegas de mestrado, cujo convívio rendeu excelentes amizades, o que faço especialmente nas pessoas de Antonio Deccache, Fernando Stival e Vicente Braga (mais conhecido como “regulador”).

Agradeço à Fundação Getulio Vargas pela Bolsa Mario Henrique Simonsen, que me permitiu, sem custos, estudar na escola de direito mais inovadora da América Latina. A todos os funcionários da instituição, especialmente aos professores, que sempre demonstraram grande empenho e seriedade na condução dos cursos, os quais muito contribuíram para minha formação e para a elaboração desta dissertação.

Muito obrigado ao Professor Luís Cesar Souza de Queiroz, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pelas importantes sugestões e críticas construtivas feitas em minha banca de defesa de dissertação, as quais possibilitaram o refinamento analítico deste texto.

Um agradecimento efusivo ao Professor José Rodrigo Rodriguez, não apenas por sua produção acadêmica profícua e inovadora, que muito me auxiliou na construção deste trabalho, mas principalmente pelo diálogo enriquecedor que passamos a travar desde minha banca.

Obrigado, também, ao Professor Humberto Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pelas relevantes considerações tecidas em minha banca de qualificação, fundamentais para determinar a verdadeira vocação desta pesquisa.

Tenho de agradecer, ainda, à Professora Betina Treiger Grupenmacher, primeira incentivadora e orientadora de minhas incursões ao direito tributário na Universidade Federal do Paraná, casa onde me graduei.

Por fim, agradeço à Yasmin. Não há palavra no vernáculo capaz de expressar minha gratidão a você.

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar o processo de concretização normativa do art. 198 do Código Tributário Nacional. Tal dispositivo veda a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. Trata-se do chamado "sigilo fiscal", hipótese infraconstitucional de proteção de dados pessoais no âmbito tributário que visa dar efetividade ao direito fundamental à privacidade.

Inicialmente, adota-se como pressuposto o conceito de Estado de Direito, que se fundamenta na previsibilidade conferida pelas normas e procedimentos estabelecidos previamente a respeito das consequências jurídicas das condutas praticadas por cada indivíduo. Também se utiliza o conceito de zona de autarquia para demonstrar que, mesmo em sociedades democráticas, há decisões jurídicas que são tomadas de modo puramente arbitrário, sem se preocupar em demonstrar os raciocínios dogmáticos que pautam a tomada de decisão.

Tais conceitos, aplicados em pesquisa empírica que analisa os argumentos propugnados em atos de interpretação e aplicação da norma do sigilo fiscal, aliados ao histórico de pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais da DireitoGV, demonstram que há um déficit de informações tributárias no Brasil. Ademais, permitem apontar uma série de contradições e incoerências na interpretação atualmente predominante do "conceito" de sigilo fiscal.

Tendo em vista as mencionadas incoerências, e com o objetivo de incrementar a conformidade ao ideal político do Estado de Direito, apresentam-se parâmetros interpretativos que permitem conciliar a necessidade de sigilo e proteção a informações tributárias, de um lado, e de publicidade de atos de aplicação da legislação tributária, de outro. Basicamente, defende-se que a publicidade dos atos de aplicação do direito pode contribuir para o aumento de shared sensibilities

(expectativas compartilhadas) entre contribuintes e instituições fiscais, tornando mais segura a aplicação das normas tributárias.

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ABSTRACT

This work intends to analyze the process of normative enforcement of Article 198 of the Brazilian Tax Code. Such Article prohibits the disclosure, by the Tax Administration or its servers, of information obtained by virtue of the tax audits and other kinds of services on the economic or financial condition of the taxpayer or a third party and the nature and condition of its business or activities. It constitutes the so-called "tax secrecy", legal hypothesis of protection of personal data in the tax framework that aims to give effect to the right to privacy.

Initially, we adopt the concept of rule of law which is based on predictability enabled by rules and procedures regarding the legal consequences of behaviors practiced by individuals. We also use the concept of zone of authority, which demonstrates that even in democratic societies, there are legal decisions taken in a purely arbitrary way, without bothering to demonstrate the dogmatic reasoning that guide the decision-making.

Such concepts, applied in the empirical research that examines the arguments developed in documents and decisions which apply the tax secrecy rule, combined with the historical of researches of the Center for Fiscal Studies of DireitoGV, demonstrate that there is a shortfall of tax information in Brazil. Furthermore, it enables to indicate contradictions and inconsistencies in the currently prevailing interpretation of the "concept " of tax secrecy .

Given the inconsistencies mentioned, and with the aim of increasing conformity to the political ideal of the rule of law, we present interpretative parameters for reconciling the need for secrecy and protection of tax information, on one hand, and disclosure of decisions applying tax law, on the other. Basically, it is argued that disclosing decisions which apply tax legislation may contribute to the increase of shared sensibilities between taxpayers and tax authorities, making the application of tax rules more certain.

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SUMÁRIO

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O segredo está no núcleo mais interno do poder. (...) O poderoso, que se serve do próprio segredo, conhece-o com exatidão e sabe muito bem apreciar a sua importância nas várias circunstâncias. Ele sabe qual o seu objetivo se quer obter algo, e sabe também qual de seus colaboradores empregar na cilada. Ele tem muitos segredos porque deseja muito, e combina-os em um sistema dentro do qual se preservam reciprocamente: um segredo confia a este, ou àquele, e faz de tal modo que os indivíduos depositários dos segredos não possam unir-se entre si. Qualquer um que saiba de alguma coisa passa a ser controlado por um outro que contudo ignora qual seja na verdade o segredo espionado. (...) [Apenas o poderoso] tem a chave do todo complexo de segredos, e sente-se em perigo quando deve dele tornar inteiramente partícipe um outro.

Elias Canetti1

                                                                                                               

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Introdução

O Estado de Direito cria regras e procedimentos para a prática de atos de poder, permitindo captar as diversas demandas sociais e transformá-las em decisões oficiais, e, ao mesmo tempo, possibilitando que os órgãos competentes comuniquem suas deliberações à sociedade. Tais regras e procedimentos são anunciados de antemão e tornam possível prever com relativa certeza quando e como o poder coercitivo será empregado, permitindo que os indivíduos planejem suas vidas com base nesse conhecimento.

Onde não há Estado de Direito, o poder não é constrangido por regras e procedimentos, não sendo possível prever as consequências jurídicas das condutas praticadas por cada um. Desse modo, o soberano, arbitrariamente, impõe suas decisões aos súditos.

A característica central do Estado de Direito, portanto, reside na possibilidade de controlar o poder mediante a previsibilidade conferida por regras e procedimentos. Todas as ações estatais devem estar fundamentadas em uma regra e/ou seguir um procedimento de tomada de decisão, o que torna menos provável a produção de decisões puramente arbitrárias.

Hoje, quase todos os países possuem sistemas jurídicos baseados em instituições que conferem algum grau de previsibilidade, seja privilegiando regras gerais e abstratas, seja por meio de precedentes que estabelecem padrões decisórios e que acabam por criar guias de conduta. Assim sendo, o Estado de Direito pode ser considerado um ideal político que um sistema jurídico pode respeitar em menor ou maior grau.

Mesmo em sociedades democráticas é possível encontrar certas zonas de autarquia, conceito de José Rodrigo Rodriguez que será detalhado no decorrer deste trabalho, nas quais o Estado utiliza o direito como mero instrumento para dar forma legítima às suas decisões, mas cujo conteúdo é essencialmente arbitrário. É o caso de decisões baseadas em argumentos irracionais. Essas zonas funcionam como canos de escape para o poder fugir do direito e tomar decisões de forma autárquica, evitando o controle social, com o objetivo de agir unilateralmente.

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tributárias no Brasil. Em suas investigações empíricas, o NEF/Direito GV se deparou com um grande obstáculo: a dificuldade de acesso a informações e documentos detidos por órgãos da Administração Tributária, tais como autos de infração, decisões das Delegacias Regionais de Julgamento (“DRJs”), acórdãos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), soluções de consulta sobre interpretação da legislação tributária, representações fiscais para fins penais e atos administrativos que concedem desonerações fiscais.

Diante da impossibilidade de ter acesso a atos de aplicação do direito praticados por órgãos da Administração Tributária e da tese de que isso pode produzir zonas de autarquia, a tarefa deste trabalho é dar maior precisão àquele diagnóstico inicial. Para tanto, será adotada uma perspectiva eminentemente empírica. O argumento central é o de que a transparência dos atos de concretização normativa emanados de autoridades tributárias é uma estratégia adequada para desestimular o surgimento de zonas de autarquia. Tais atos, portanto, deveriam ser sigilosos apenas em circunstâncias excepcionais.

No decorrer da dissertação, serão articulados argumentos no sentido de que a transparência do processo de concretização normativa: i) possibilita o controle social dos atos de poder praticados por autoridades tributárias; ii) estimula a deliberação pública sobre a melhor interpretação da legislação tributária, tornando as instituições fiscais mais legítimas perante a sociedade; iii) enriquece o repertório de soluções dogmáticas para conflitos tributários que surgem cotidianamente nas relações entre Fisco e contribuinte, agregando eficácia ao direito tributário; e iv) consiste em relevante constrangimento institucional, que contribui para o incremento da segurança jurídico-tributária mediante a exposição dos critérios interpretativos utilizados pelos órgãos competentes, inibindo a modificação desses critérios.

É evidente que a transparência dos atos de concretização normativa, isoladamente, não pode dar respostas completas ou definitivas para todos os problemas que têm importunado a política fiscal e a Administração Tributária. Porém, para uma sociedade que deseja um sistema tributário seguro, previsível e isonômico, pautado por padrões interpretativos consistentes e que perdurem no tempo, a transparência aqui proposta é um instrumento útil.

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principal fonte legislativa é o artigo 198 do Código Tributário Nacional.2 Afinal, seja qual for o modelo teórico ou o argumento que se defenda, sempre é preciso testá-los empiricamente, e não tentar sacralizá-los por meio de abstrações.

O sigilo fiscal não foi escolhido aleatoriamente. Como será demonstrado adiante, os atos de concretização dessa norma estão repletos de zonas de autarquia, porquanto assentados em uma série de justificativas irracionais e incoerentes. Essa aplicação irracional tem impedido o acesso a diversos atos decisórios e interpretativos, sob o argumento de que sua publicidade poderia violar a privacidade de contribuintes. Tal prática tende a ampliar a irracionalidade e a obscuridade no processo de concretização de outras normas tributárias, criando, assim, outras zonas de autarquia.

Por esses motivos, procurar-se-á identificar como o processo de concretização do sigilo fiscal é estruturado e quais as justificativas que o sustentam, com o objetivo de verificar se podem ser consideradas racionais e se, de fato, faz sentido resguardar dos olhares do público certos atos do processo de concretização das normas tributárias.

 

 

 

                                                                                                               

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“Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

§ 1º Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça;

II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa.

§ 2º O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo.

§ 3º Não é vedada a divulgação de informações relativas a: I – representações fiscais para fins penais;

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1. Capítulo metodológico: escolhas e justificativas de uma pesquisa empírica em direito tributário

The science of law is just as much a science of norms as of reality. As a science of norms it has as its subject-matter the objective meaning of legal norms. As a science of reality it investigates the relations between legal norms, the social substructure (Substrat), the social behavior of the legal subjects, and of legal administrators.

Franz Neumann3

O problema de pesquisa está relacionado ao processo de concretização normativa do sigilo fiscal. Nesse rumo, torna-se relevante explicar quais são os caminhos teóricos que conduziram à ideia da transparência do processo de concretização das normas tributárias, e como ela se relaciona à segurança jurídica e à legitimidade e eficácia do direito tributário.

Mas este é um passo anterior à resolução do problema, que consiste, na verdade, em identificar quais os discursos e práticas institucionais de alguns dos principais atores brasileiros a respeito do sigilo fiscal e como são fundamentados. O objetivo, em última instância, é entender como diversos atores relevantes lidam com o tema da transparência e do sigilo na esfera tributária.

A resolução do problema permitirá testar duas hipóteses de pesquisa:

Hipótese 1: Os discursos sobre o sigilo fiscal contêm zonas de autarquia porque são fundamentados em argumentos irracionais.

Hipótese 2: Os discursos sobre o sigilo fiscal produzem zonas de autarquia externas porque restringem a transparência de atos de concretização de outras normas do ordenamento jurídico.

1.1. Objetivos, métodos e relevância da pesquisa empírica

Não é o propósito desta dissertação afirmar que as interpretações praticadas por órgãos tributários a respeito do sigilo fiscal estão equivocadas e que a interpretação aqui esposada é a correta. Defende-se que, dentro do espaço de indeterminação que é possível constatar na redação do art. 198 do CTN, conforme

                                                                                                               

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explicitado mais adiante, uma interpretação que procure equacionar a necessidade do sigilo para proteger a privacidade de contribuintes, de um lado, com a publicidade dos atos de aplicação do direito, de outro, é mais interessante do que aquela atualmente predominante. Grosso modo, tem-se a intenção de argumentar que, em geral, quanto mais decisões e informações produzidas por órgãos públicos forem publicadas, mais próximo do ideal político do Estado de Direito se estará, não só pelo valor intrínseco da liberdade e da submissão estatal ao controle social, mas também como caminho apto a construir padrões interpretativos mais estáveis.

Para realizar essa crítica será utilizado o conceito de zona de autarquia formulado por José Rodrigo Rodriguez. O autor é deveras influenciado por Franz Neumann, pensador alemão citado na epígrafe deste capítulo, integrante da segunda geração da Escola de Frankfurt, nascida na década de 1920, durante a República de Weimar, e formada por pensadores dedicados aos mais diversos campos das ciências sociais. Partindo do diagnóstico de Kelsen de que a mesma norma pode autorizar múltiplas interpretações4, Neumann afirma que o objeto da Ciência do Direito deve abarcar o estudo das normas e do comportamento dos responsáveis por aplicá-las. Considerando que o ato de aplicação possui parcela criativa, segundo Franz Neumann, é papel da pesquisa jurídica vigiar constantemente os órgãos de aplicação, tendo em vista possíveis reformas institucionais para mitigar o excesso de indeterminação no momento da aplicação das normas.

Há poucos autores que trabalham o direito de forma crítica internamente. Rodriguez e Neumann ajudam a refletir essa face interna, ressaltando a importância de se analisar como o direito e as normas são manipuladas cotidianamente pelas instituições.

Como explica José Rodrigo Rodriguez:

Não há crítica do direito sem análise das instituições reais, ou seja, sem pesquisas empíricas que as sustentem e informem propostas normativas de reforma. Neumann deixa muito claro que a crítica ao direito deve estar fundada em evidências empíricas. Para criticar o direito é preciso fazer-se

                                                                                                               

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jurista, ou seja, reconstruir internamente o sentido daquelas instituições que se reproduzem referindo seu comportamento a normas jurídicas.5

A necessidade de controlar a ação do soberano advém de se pensar a dogmática como instrumento de controle do poder e não apenas como um meio de exercê-lo. Pesquisar desta maneira e com este objetivo significa cobrar racionalidade do poder, exigindo que ele siga os procedimentos de tomada e decisão e aja de acordo com a racionalidade dogmática:

Ora, se considerarmos que o modo de pensar dogmático é o instrumental de que os órgãos jurisdicionais se utilizam para tomar suas decisões, descrever seu funcionamento por meio de pesquisas empíricas é reconstruir a maneira pela qual esses órgãos realizam raciocínios dogmáticos a fim de controlar o grau de indeterminação que caracteriza seus julgamentos e, nos termos de Neumann, propor, eventualmente, reformas institucionais...6

Um dogmático que não examina a dimensão da aplicação faz um trabalho parcial que pode se tornar esquizofrênico caso ignore a efetividade do ordenamento jurídico sob a forma de jurisprudência. Ou seja, caso ignore o direito positivo, sem pesquisar “sociologicamente” a jurisprudência, não terá boa dogmática.7

Por isso, este trabalho não procura simplesmente descrever as interpretações cabíveis a partir do contato com textos legislativos. O objetivo primordial é compreender como as autoridades que lidam com matéria tributária no país manipulam o direito, especificamente a norma do sigilo fiscal. Daí a importância da pesquisa empírica, que procura entender os problemas concretos para, a partir daí e em conexão com a prática, propor soluções mais seguras e menos ingênuas.

1.2. Estratégia de investigação e organização do trabalho

Para resolver o problema e testar as hipóteses, e com o objetivo de desenvolver uma pesquisa crítica nos moldes acima mencionados, este trabalho foi dividido em quatro capítulos adicionais. O capítulo “Estado de Direito, processo de concretização normativa e zonas de autarquia: o ideal político da redução do arbítrio

                                                                                                               

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RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre o Direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009. (Série direito em debate. Direito, Desenvolvimento e Justiça), p. 140.

6

RODRIGUEZ, José Rodrigo. A dogmática jurídica como controle do poder soberano: pesquisa empírica e Estado de Direito. In: PÜSCHEL, Flavia Porte; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (orgs.). Dogmática é Conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012. (Coleção Direito, Desenvolvimento e Justiça: série direito em debate), p. 78.

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por meio da previsibilidade, a constatação de que normas gerais e abstratas são insuficientes para produzir segurança jurídica e a necessidade de que os atos de aplicação do direito sejam racionais e possibilitem efetivo controle social” é eminentemente teórico e consiste, na verdade, em um passo anterior ao objeto central. Nele são explicitados os parâmetros teóricos que serão utilizados como ponto de referência para a realização da pesquisa empírica mais adiante, bem como para a avaliação de seus resultados.

Neste capítulo são utilizados, principalmente, textos de José Rodrigo Rodriguez, professor e editor de publicações da Direito GV e pesquisador permanente do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (“CEBRAP”), duas das principais instituições brasileiras que pregam a realização de pesquisas empíricas na Ciência do Direito.

Influenciado por Franz Neumann, Rodriguez defende que o direito, como disciplina acadêmica e como campo institucional, é um importante espaço para lutas emancipatórias concretas. Argumenta que o papel do Estado de Direito é manter a tensão entre Estado e sociedade por meio de formas e procedimentos que permitam controlar o poder e assegurar liberdade; nesse sentido, chama a atenção para a importância de se criar mecanismos de controle dos atos de aplicação, que compõem o processo de concretização das normas jurídicas. Nisso reside a principal conexão entre as ideias do autor e a transparência do processo de concretização normativa defendida neste trabalho.

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provavelmente o principal obstáculo para se ter acesso a atos de aplicação do direito tributário no Brasil é a interpretação atualmente predominante acerca do sigilo fiscal.

Por esse motivo, em seguida, no capítulo “Pesquisa empírica e análise argumentativa dos discursos e práticas institucionais sobre o sigilo fiscal: contradições, incoerências e patologias da interpretação predominante do ‘conceito’ de sigilo fiscal”, realiza-se um trabalho de análise argumentativa dos discursos de alguns dos principais atores brasileiros sobre o sigilo fiscal, com base no conceito de zona de autarquia. São utilizadas decisões do Supremo Tribunal Federal (“STF”), do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), o Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil (“RFB”), o parecer consolidador do entendimento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) sobre o sigilo fiscal, e respostas da RFB a pedidos de acesso à informação. Por fim, são expostas as falas de interlocutores que participaram de debates promovidos pelo NEF acerca do assunto, mas que não serão analisadas do ponto de vista argumentativo, servindo apenas como ilustração das conclusões obtidas a partir do estudo dos demais suportes.

No capítulo “Convite ao debate público: quais devem ser os limites do sigilo fiscal?”, a partir da visão empírica dos problemas relativos à interpretação do sigilo fiscal e perseguindo o ideal político do Estado de Direito, sugerem-se critérios para interpretar de modo mais delimitado o sigilo fiscal, procurando levar em conta os argumentos de oposição mais comuns, mas sem a pretensão de fazer uma construção dogmática suficientemente robusta e sistematizada a ponto de esgotar o tema.

Argumentar-se-á, ainda, que a publicidade dos atos de aplicação do direito pode contribuir para o aumento de shared sensibilities (expectativas compartilhadas) entre contribuintes e instituições fiscais, tornando mais segura a aplicação das normas tributárias.8 No aludido capítulo, não se tem como escopo ignorar os limites impostos pelo texto do art. 198 do CTN ou pelas práticas institucionais existentes sobre o tema para estabelecer o sentido do sigilo fiscal com base em elementos externos ao direito. Apenas será desenvolvido o argumento de que, dentro do espaço de manobra conferido pela redação consideravelmente vaga do art. 198, não há óbice à

                                                                                                               

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publicidade dos atos de concretização das normas fiscais, pelo menos caso sejam adotados certos cuidados.

No fim das contas, este trabalho é muito mais um convite ao debate público do que uma proposta interpretativa pronta e definitiva. Não se advoga em nome da verdade, até porque não se acredita ser possível extrair verdades inquestionáveis de textos legislativos abstratos. Defende-se um ponto de vista que leva em conta a imprecisão intrínseca à linguagem: se, em geral, não é possível extrair uma única verdade dos textos legais, que se exponham todas as verdades praticadas.

Por fim, ressalte-se que este trabalho não pretende se alinhar à corrente do realismo jurídico, que defende que as decisões jurídicas são mais importantes que os textos legislativos, os quais poderiam estabelecer apenas um ideal aproximativo de segurança jurídica. Aqui, parte-se do pressuposto de que leis e regulamentos vinculam, em algum nível, os tomadores de decisões. Mas não se tomará partido sobre um modelo de racionalidade jurídica específico, limitando-se a afirmar que, hoje, a maior parte deles reconhece, com maior ou menor intensidade, que muitos textos legais possuem “textura aberta” e que, em muitas situações, os órgãos jurisdicionais criam direito.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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2. Estado de Direito, processo de concretização normativa e zonas de autarquia: o ideal político da redução do arbítrio por meio da previsibilidade, a constatação de que normas gerais e abstratas são insuficientes para produzir segurança jurídica e a necessidade de que os atos de aplicação do direito sejam racionalmente reconstruíveis e possibilitem efetivo controle social

Se no direito público prescindo, como habitualmente o concebem os juristas, de toda a matéria (...), ainda me resta a forma da publicidade, cuja possibilidade está contida em toda a pretensão jurídica, porque sem ela não haveria justiça alguma (que só pode pensar-se como publicamente manifesta), por conseguinte, também não haveria nenhum direito, que só se outorga a partir da justiça. Toda pretensão jurídica deve possuir a possibilidade de ser publicada...

(...)

São injustas todas as acções que se referem ao direito de outros homens, cujas máximas não se harmonizem com a publicidade.

Immanuel Kant9

Neste capítulo, argumenta-se que a característica fulcral do Estado de Direito reside na possibilidade de controlar o poder, coibindo o arbítrio e assegurando a liberdade dos cidadãos mediante a previsibilidade das consequências jurídicas das condutas praticadas por cada indivíduo.

Na sequência, partindo do diagnóstico de Kelsen de que dificilmente é possível obter, a partir da lei, uma única resposta para casos concretos, assume-se que a atividade de aplicação do direito contém, ao menos em parte, caráter criativo. Isso exige compreender que os embates políticos e as pressões sociais que alimentam o direito não ocorrem estritamente no Legislativo. Esse processo de “informar” o direito é dinâmico e segue ocorrendo no momento da aplicação. Portanto, é relevante conhecer não apenas as regras produzidas pelo Legislativo, porém também os atos de aplicação do direito.

Combinando a noção de Estado de Direito mencionada com a referida constatação kelseniana, passa-se a defender a necessidade de se criar mecanismos para que os atos de aplicação não consistam em simples produtos da subjetividade dos aplicadores, sendo mister que tenham alguma coerência entre si e confiram um mínimo de previsibilidade.

                                                                                                               

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Esse caminho teórico conferirá parâmetros para a pesquisa empírica empreendida no capítulo quatro e para a avaliação de seus resultados, bem como servirá de ponto de partida para a formulação de critérios interpretativos no último capítulo.

2.1. Estado de Direito como possibilidade de controle do poder10

Pode-se afirmar que a ideia central que norteia os escritos de Neumann é a de que o Estado de Direito se caracteriza, fundamentalmente, pela possibilidade de controlar o poder. Quando este controle está em ato, abre-se a possibilidade de que a sociedade transforme sua vontade em norma jurídica e em políticas públicas. Ou seja, não há um conceito de justiça que deve orientar a produção normativa para que se possa considerar um Estado efetivamente um Estado de Direito. O que importa para caracterizá-lo, sobretudo, é a possibilidade de controlar o poder e de afastar o arbítrio por meio da segurança jurídica, ou seja, a previsibilidade que as normas gerais e abstratas e os procedimentos conferem acerca das consequências jurídicas das condutas praticadas por cada indivíduo11:

Na concepção ocidental do termo, estado de direito significa a imposição de limites ao poder soberano e ao poder privado. Ninguém pode agir licitamente sem fundamento em uma norma jurídica ou em uma norma social que autorize diretamente uma determinada conduta ou crie um espaço de autonomia dentro dos limites impostos pelo direito de determinado ente soberano. Pode-se dizer que haja um estado de direito quando toda ação possa ser justificada a partir de uma norma criada ou não pelo Estado e, neste último caso, reconhecida por ele.12

                                                                                                               

10

A expressão “império do direito” também é frequentemente utilizada para designar o que estamos chamando de “Estado de Direito”. O primeiro termo procura ressaltar que o conceito de direito inclui, além do aparelho estatal, práticas sociais mediadas por normas jurídicas que não passam necessariamente pelos órgãos do Estado e, portanto, são reguladas por critérios nascidos na esfera privada e não na esfera pública. A despeito disso, optamos por utilizar “Estado de Direito” por nos parecer ser expressão mais difundida na cultura jurídica brasileira.

11

“Na verdade, Neumann empregava o termo rule of Law, em vez de estado de direito, com o objetivo de ressaltar que o conceito de direito inclui, além do aparelho estatal, práticas sociais mediadas pelas normas jurídicas que não passam necessariamente pelos órgãos do Estado e, portanto, são reguladas por critérios nascidos na esfera pública e não na esfera privada. Neumann defendia um conceito de direito descentrado do aparelho estatal, concebido como uma forma de sociabilidade abrangente. O uso do termo rule of law por Neumann, na contramão da tradição alemã, berço do conceito de estado de direito, liga-se à sua crítica radical a esta mesma tradição, marcada por um Estado forte e autoritário, desprovido de um polo de oposição ancorado na sociedade civil.” Nesse sentido, ver: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma crítica do Direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 40, nota de rodapé 23.

12

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Neumann faz acréscimos ao seu conceito de Estado de Direito a partir de uma descrição histórica.13 O Estado de Direito nasce para afirmar a burguesia como classe excluída do âmbito da ação do Estado. Ao defender que o Estado deve realizar a vontade da sociedade, a burguesia pôde se apresentar como portadora dos interesses universais, forçando sua entrada na condução das políticas estatais, ou seja, na definição do que seja interesse público. O processo de construção dos Estados de Direito resultou na destruição do antigo regime, cujas estruturas não suportavam a participação de outras classes além da aristocracia e do clero na formação da vontade do soberano.14

Nessa linha, a edificação do Estado de Direito e suas instituições fundamentais, especialmente o governo das leis por meio de normas gerais, incluía a garantia da igualdade perante a lei, bem como a liberdade e a segurança individual para todos os indivíduos, a liberdade de associação e o direito de voto. Todas essas instituições permitem que outras classes excluídas tomem parte do sistema político por meio de reivindicações de direitos.15

Não à toa, ao longo do tempo passou-se a contar com a previsão de direitos em quase todos os sistemas jurídicos do mundo para trabalhadores, mulheres, negros e outros grupos historicamente desfavorecidos, que lançaram mão das estruturas e instituições do Estado de Direito para realizar suas reivindicações.

Como exemplo, cite-se o caso do Brasil, que, com o início do processo de abertura democrática do final da década de 1970, ao lado do aumento da complexidade social, foi sensivelmente impactado na esfera política mediante o reconhecimento de novos agentes dotados de voz legalmente reconhecida. Cada vez mais atores passaram a participar do cenário político, tornando mais complexas as negociações, barganhas e procedimentos de deliberação que se pretendam legítimos perante a esfera pública. A Constituição de 1988 é um marco fundamental deste

                                                                                                                13

A descrição histórica de Neumann possui a finalidade de demonstrar que a “forma” Estado de Direito pressupõe escolhas e acontecimentos históricos que, por si só, já dotam essa “estrutura” de conteúdo. Na linha de Hegel, Neumann procura demontrar que não se pode falar de forma dissociada de conteúdo e nem de conteúdo sem forma. Forma e conteúdo não se definem por si mesmos, erigindo-se uma relação íntrinerigindo-seca entre ambos. Isso significa que a lei não é aleatória e nem casuísta, pois erigindo-se funda sobre o que já se pratica, isto é, o costume. Este, por sua vez, não pode ser fruto de mera arbitrariedade, mas somente se constitui e subsiste por meio / em meio a um processo histórico que o interpela permanentemente. Sua efetivação é a expressão viva do que as pessoas pensam, desejam e fazem cotidianamente. Para mais detalhes, consultar: G.W.F. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito. Trad. de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

14

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, pp. 70-71. 15

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processo, tendo contado com intensa participação da sociedade civil em todos os níveis.16

Retomando a exposição, “a afirmação de que a vontade do Estado deve coincidir com a vontade da sociedade arma um mecanismo que tende a colocar em xeque instituições construídas para deixar de fora do sistema político qualquer classe ou grupo.”17 Conforme o autor alemão, esta é a estrutura essencial do Estado de Direito: “Trata-se de uma estrutura institucional que constrange o poder soberano a agir conforme a vontade da sociedade por meio de normas gerais e as instituições ligadas a elas (...), que instituem e garantem a separação entre soberania e liberdade, entre sociedade e Estado”.18

O Estado de Direito, portanto, aponta para além de si mesmo porque possibilita que classes e grupos sociais se utilizem dele para incluir suas demandas no interior do sistema político. Por isso, pode-se afirmar que o Estado moderno caracteriza-se pela existência de duas esferas: a da soberania e a da liberdade em relação à soberania. A separação do Estado nessas duas esferas, acrescida da afirmação de que ele deve servir às necessidades e à vontade de todos os cidadãos, possibilita a ampliação do espaço de participação política das forças sociais por meio das normas do Estado de Direito.19

O Estado de Direito instaura e garante a separação entre Estado e sociedade, criando canais para captar a vontade desta em seu devir e transmiti-la para os órgãos do poder. “Trata-se de uma estrutura inclusiva e, por isso mesmo, aberta para o futuro, capaz de apreender as novas demandas sociais. A questão não é mais qual é a verdade substantiva que deve orientar a elaboração do direito positivo, mas como construir instituições capazes de ouvir a voz da sociedade.”2021

                                                                                                               

16

Como decidem as Cortes, pp. 56-57. 17

Idem, p. 72. 18

Ibidem, p. 72 19

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 84. 20

Idem, p. 123. 21

(27)

Para os fins deste trabalho, o principal raciocínio de Neumann está em reconhecer que, mesmo que os aplicadores procurem se ater aos conteúdos normativos, há quase sempre aspectos e situações que demandam criação jurídica na aplicação das normas gerais, os quais não podem ser utilizados de qualquer maneira pelos aplicadores, ainda que a norma conceda “espaços” de discricionariedade. O autor alemão não explica como deveriam ser utilizados, entretanto o racional formulado parece ser um ponto de partida adequado para lidar com sistemas jurídicos cada vez mais complexos e dotados de normas de baixa densidade normativa, ponto que será aprofundado no próximo item.

Nesse passo, ressalte-se que não apenas as normas gerais e abstratas são importantes, mas também os atos de aplicação do direito, ou seja, as normas individuais e concretas.22 Considerando que as normas costumam admitir múltiplas interpretações, os órgãos que detêm a competência para aplicá-las também precisam assegurar previsibilidade, ainda que em menor grau. Mesmo quando o legislador conferir discricionariedade para os aplicadores, as decisões não poderão ser tomadas inadvertidamente, sem algum tipo de racionalidade por trás que permita aos destinatários das decisões compreenderem por que se privilegiou uma solução jurídica em detrimento de outra.

Rodriguez chama atenção para esse fato e para a importância de que a Ciência do Direito se dedique a ambas as expressões do Estado de Direito:

Diga-se que o conceito de Estado de Neumann é construído para dar conta do problema da aplicação e seu controle. Para ele, o Estado tem, de um lado, uma dimensão jurídica, o poder de estatuir normas individuais e normas gerais; de outro lado, este mesmo estado tem uma dimensão

sociológica: poder de impor suas normas sobre um determinado território. Ele não se reduz ao direito positivado em abstrato, mas se projeta em suas decisões concretas, tomadas pelos poderes e por todas as pessoas, públicas ou privadas, que atuam em seu nome (...). Em todos os casos, estamos diante do objeto de estudo da ciência do direito.23

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

previsibilidade que o Direito confere, aqueles países poderão sobressair em um aspecto: sua conformidade ao Estado de Direito. (RAZ, Joseph. The autority of Law: essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979).

22

Raz também reconhece a relevância das normas individuais e concretas. O vocábulo “direito”, da expressão “Estado de Direito”, significa mais do que leis gerais e abstratas. Ele inclui a Constituição, as leis produzidas pelo parlamento, regulamentações ministeriais, atos administrativos emanados de agentes reguladores etc. Segundo o autor, a doutrina do Estado de Direito não nega que os sistemas jurídicos consistem tanto de regras gerais e abstratas (general, open and stable rules), quanto de normas individuais e concretas (particular laws, legal orders). O que o conceito exige é que as normas individuais e concretas sejam subordinadas a normas gerais e abstratas. O autor reconhece que as normas individuais são comumente utilizadas para flexibilizar as normas gerais, criando instabilidade, e que isso pode colocar em risco o ideal político de Estado de Direito. O que Neumann defende é que a pesquisa jurídica deve vigiar esses atos para reduzir excessos de indeterminação e arbitrariedade.  

23

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Merece destaque a constatação de que esses controles não são suficientes para coibir arbitrariedades, como demonstra a dimensão sociológica. A possibilidade de controlar o poder por meio da previsibilidade deve se estender aos atos de aplicação do direito, já que, em geral, eles possuem parcela criativa.

Cumpre ressaltar, por fim, que a despeito do que sua conexão com a Teoria Crítica poderia sugerir, o conceito de Estado de Direito de Neumann aproxima-se da noção formal. A fim de qualificar um Estado de Direito, é suficiente que as autoridades estatais e os indivíduos sejam submetidos ao direito positivo, seja qual for seu conteúdo.24 Não se confunde a avaliação do caráter justo ou adequado do direito com o problema da existência de um Estado de Direito. “O Estado de Direito não é um ‘Estado de justiça’, mas simplesmente uma forma de organização política e social que garante a previsibilidade das decisões. Mesmo se a norma válida for claramente injusta (...), não deixa de ser juridicamente válida...”.25

Assim, não obstante Neumann seja um defensor do proletariado e lute pela sua emancipação, o autor reconhece que o Estado de Direito, em si, é um tipo de emancipação jurídica. Ou seja, uma ação previsível do Estado, mesmo que opressiva, é preferível a uma ação arbitrária, isto é, não sujeita a padrões.2627

O que Neumann defende é que as normas do Estado de Direito podem ser empregadas em favor da causa proletária, seja por meio de alterações legislativas via Parlamento, seja por meio da luta por interpretações das normas em vigor a favor dos interesses dos trabalhadores. Por isso os direitos fundamentais, cujo texto geralmente

                                                                                                               

24

Kelsen refina ainda mais o conceito de Estado de Direito, mas não chega a se afastar da proposta de Neumann: “Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica. ‘Estado de Direito’ neste sentido específico é uma ordem jurídica relativamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis – isto é, às normas gerais estabelecidas por um parlamento eleito pelo povo, com ou sem a intervenção de um chefe de Estado que se encontra à testa do governo − os membros do governo são responsáveis pelos seus atos, os tribunais são independentes e certas liberdades dos cidadãos, particularmente a liberdade de crença e de consciência e a liberdade da expressão do pensamento, são garantidas”. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 346).

25

DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 85. 26

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 96.

27

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possui textura consideravelmente aberta, ganham atenção especial na obra do autor, especialmente o direito de propriedade:

O resultado deste processo é a explicitação da possibilidade de construir e reconstruir, por meio da forma direito, todos os direitos fundamentais e instituições capitalistas. Todos eles aparecem como escolhas que não se justificam em si mesmas, mas precisam servir à vontade e aos desejos dos cidadãos. Desse modo, Neumann demonstra que, mantida a separação entre as esferas da soberania e da liberdade, existe a possibilidade de que a classe operária transforme o direito a partir de dentro, promovendo a apropriação coletiva dos meios de produção por força de lei. Por isso mesmo, postas estas condições históricas, o direito passa a ser mediação necessária para a emancipação humana.28

Independentemente da concepção política, sociológica ou filosófica para a qual a “forma direito”29 for direcionada, importa destacar para os fins deste trabalho não o potencial do direito para atuar como mediador da emancipação do proletariado, mas a importância intrínseca de se evitar a arbitrariedade por meio da previsibilidade possibilitada pelo direito.

2.2 Processo de concretização normativa: normas gerais e abstratas dependem de normas individuais e concretas para garantir a efetividade do direito

Se há um consenso entre os teóricos contemporâneos do direito é o de que a solução de casos concretos a partir de normas gerais não se resolve exclusivamente com o texto destas, ou seja, a aplicação das normas não se resume a revelar o sentido contido nos textos legislativos.30 É possível haver várias interpretações das mesmas normas. Como afirmou Kelsen, toda decisão jurisdicional, mesmo aquelas que aparentam ser extremamente simples, contém um elemento de decisão, ou seja, um elemento de exercício de poder. Sempre há um espaço de indeterminação para a decisão jurisdicional; maior ou menor, conforme o texto da norma produzida pelo Poder Legislativo. Normas que contenham termos muito abstratos ou terminologia difusa aumentam o espaço de indeterminação para a ação dos aplicadores, mas este espaço está sempre presente:

                                                                                                               

28

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, pp. 94-95. 29

Expressão utilizada por Rodriguez para se referir àquilo que estamos chamando de Estado de Direito. Ver: Fuga do Direito.

30

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A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para o que órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever.

Daí resulta que todo ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica, quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado.31

É possível dar vários exemplos ilustrativos no âmbito do direito tributário da indeterminação das normas jurídicas, mesmo daquelas que aparentemente não dariam margens para grandes controvérsias interpretativas.

Por exemplo, auferir renda ou obter acréscimo patrimonial são os fatos jurídicos sobre os quais incide o imposto sobre a renda (IR). Todavia, a percepção de recursos a título de indenização por danos morais por pessoa física pode ser considerada fato jurídico tributário para fins de incidência do IR?

A Receita Federal, historicamente, entendia que em casos como este o imposto era devido. O fundamento da aludida interpretação residia no artigo 91 do Código Civil (“CC”) combinado com o artigo 43 do Código Tributário Nacional. De acordo com o art. 91 do CC, patrimônio é o complexo de todas as relações jurídicas do titular, desde que dotadas de valor econômico. Assim sendo, considerando que os bens morais de uma determinada pessoa não possuem expressão econômica, não poderiam pertencer ao patrimônio. Desse modo, sempre que recebida uma indenização por lesão a bens morais, restaria configurado acréscimo patrimonial. E, nos termos do art. 43 do CTN, o IR incide sobre a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital ou do trabalho, e de proventos de qualquer natureza, assim compreendidos os acréscimos patrimoniais não abarcados pelo conceito de renda. Portanto, a indenização por danos morais estaria sujeita à incidência do IR.

Durante certo período de tempo este foi o entendimento predominante acerca da matéria, tendo o STJ proferido decisão nesse sentido (no Recurso Especial 748.868, em 28 de agosto de 2007, até recentemente considerado leading case na

                                                                                                               

31

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matéria). No entanto, em 8 de outubro de 2008, a Primeira Seção do STJ, colegiado composto por ministros da Primeira e da Segunda Turmas, proferiu entendimento diverso. O Ministro Relator Herman Benjamin concluiu que a indenização por dano moral não representa riqueza nova, mas sim uma reposição do patrimônio imaterial pela via da substituição monetária. Ademais, a incidência do IR nesse caso reduziria a eficácia do princípio da reparação integral.

Tal acórdão do STJ influenciou seguidas decisões no mesmo sentido, impingindo várias derrotas ao Fisco. Após sucessivos fracassos no Judiciário e ante o argumento favorável e justo dos contribuintes, em 2011 a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional emitiu o Parecer/CRJ n. 2.123/2011, posteriormente reconhecido pelas autoridades fiscais por meio do Ato Declaratório n. 9/2011, os quais explicitaram formalmente que não incide IR sobre as indenizações por danos morais recebidas por pessoas físicas e dispensam os procuradores de recorrer em processos em que a União é derrotada.

Outra discussão que demonstra a indeterminação de regra jurídica aparentemente precisa diz respeito à incidência (ou não) de ICMS sobre veiculação de material publicitário em sítios eletrônicos de provedores de internet. Sabe-se que o ICMS incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Porém, o que pode ser considerado exatamente um serviço de comunicação? A veiculação de material publicitário estaria abrangida pela aludida hipótese de incidência?

Até 30 de julho de 2003 sobre esta atividade incidia o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), conforme constava no item 86 da lista anexa ao Decreto-Lei n. 406/68, acrescentado pela Decreto-Lei Complementar n. 56/87. Entretanto, com a promulgação de nova lista de serviços, por meio da LC n. 116/03, esta atividade foi objeto de veto pelo Ministério da Justiça, tendo como justificativa a incompetência do ente municipal para tributar serviços de comunicação, que seriam de competência estadual.

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para cobrar o ICMS-Comunicação de provedores de acesso à internet que, historicamente, eram contribuintes do ISS e nunca haviam sido orientados a recolher o ICMS-Comunicação.

Isso deu azo ao surgimento de várias decisões judiciais em que se debate o conceito de “serviço de comunicação” e a incidência (ou não) do ICMS-Comunicação sobre serviços de veiculação de material publicitário na internet. Na esteira desses acontecimentos, observou-se também a profícua produção de artigos científicos pela doutrina tributária discutindo o mesmo assunto.

Não bastasse isso, alguns entes municipais continuaram exigindo o ISS do contribuinte prestador de tal atividade, passando a enquadrar o serviço de veiculação de material publicitário na hipótese de incidência prevista para a atividade de publicidade e propagada ou de agenciamento de publicidade, serviços que continuaram previstos na nova lista anexa introduzida pela LC 116/03.

Basicamente, as autoridades tributárias procuram argumentar que o serviço de veiculação de material publicitário enquadra-se no conceito de “serviço de comunicação” e, desde sempre, seria hipótese de incidência do ICMS-Comunicação, na linha do veto governamental acima referido.

No entanto, os contribuintes alegam que a expressão “serviço de comunicação” significa a atividade remunerada de colocar à disposição de terceiro meios ou instrumentos para que ocorra a comunicação, como tal entendida a ação bilateral, ou multilateral, em que informações ou dados são enviados de um sujeito a outro, ou a outros, e daquele ou daqueles a este, em verdadeira interação. Assim sendo, no que tange às prestações de serviço de comunicação por meio de veiculação de material publicitário, estaria ausente o elemento volitivo por parte dos receptores da ação comunicativa.

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Há inúmeras discussões nos tribunais administrativos e judiciais a respeito desses e outros conceitos, aparentemente precisos e delimitados.

Além disso, cada vez mais os sistemas jurídicos vêm recebendo o influxo de normas de baixa densidade normativa, ou seja, normas vagas e genéricas, que ampliam ainda mais as possibilidades interpretativas e a indeterminação no momento da aplicação, conferindo maior discricionariedade para os aplicadores. No nosso sistema, merece destaque o parágrafo único do artigo 116 do CTN, que veicula a chamada norma antielisiva geral. De acordo com esta norma, a autoridade administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Esse dispositivo legal deu azo ao surgimento de várias interpretações que pregam a necessidade de que a forma legal utilizada seja compatível com a essência econômica da operação praticada. Com isso, vários planejamentos tributários realizados dentro dos limites “formalmente legais”, e que há algum tempo seriam considerados válidos, têm sido, ultimamente, considerados ineficazes para fins fiscais.

Tal dispositivo implicou a instalação, na última década, de combate ideológico e teórico de duas concepções sobre o planejamento tributário, representadas por renomados juristas: de um lado, a defesa do Estado Liberal, dos princípios da livre- iniciativa, da ampla liberdade negocial e da tipicidade cerrada do fato gerador; de outro, a defesa do Estado Social, a busca da solidariedade e da capacidade contributiva como valores constitucionais, pretendendo oferecer novas alternativas à “teoria do fato gerador” e propondo a requalificação do fato em sintonia com o propósito negocial (“business purpose”).32 Ou seja, o debate sobre planejamento tributário foi “principiologizado”, isto é, em ambos os lados ganhou relevância a utilização de princípios constitucionais para argumentar em prol de uma dada posição, resultado da considerável vagueza do art. 116, parágrafo único, do CTN.

Para lidar com a indeterminação inerente à linguagem, com o crescente número de normas vagas e indeterminadas e com o aumento da complexidade dos sistemas jurídicos contemporâneos, as sociedades modernas passaram a se preocupar em estabelecer o controle da Administração mediante a criação de procedimentos

                                                                                                               

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decisórios. A necessidade de criar caminhos conforme o direito para a tomada de decisões surgiu justamente da necessidade de controlar o momento da aplicação do direito.33

A articulação entre normas substantivas e procedimentais possibilita que estas últimas compensem a indeterminação das primeiras por meio da construção de critérios e procedimentos rígidos para a decisão de casos concretos. No entanto, não se pode olvidar que, mesmo com a criação de procedimentos, sempre haverá um órgão encarregado de aplicar as normas substantivas. Assim, inevitavelmente, por mais constrangimentos institucionais que se criem para compensar a indeterminação das normas gerais e abstratas, e considerando que os órgãos são constituídos por seres humanos, o momento derradeiro da aplicação sempre dependerá, ainda que minimamente, da vontade da pessoa responsável pela tomada de decisão:

todas estas normas precisam ser aplicadas por órgãos de poder. Alguma autoridade, um ser humano ou grupo deles, será competente para seguir as regras do procedimento e utilizar as normas substantivas para solucionar os casos. Esta autoridade é o primeiro juiz, por assim dizer, do sentido que deve ser emprestado a elas. Mesmo que suas ações estejam sujeitas à revisão por outra autoridade, no limite, será sempre uma determinada pessoa ou pessoas o órgão competente para decidir sobre o sentido de uma norma jurídica, seja ela material ou processual.34

Afinal, as normas não são capazes de aplicar a si mesmas. “Mesmo que o ato de aplicação seja simples e aparentemente repetitivo, trata-se sempre de inovar o ordenamento jurídico, acrescentando mais um ato de autoridade a uma série anterior”35. Assim, a racionalidade da aplicação das normas abre uma problemática própria, que não se resolve na descrição em abstrato das normas gerais e abstratas:

O Direito a aplicar forma (...) uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta,

                                                                                                               

33

Para aprofundamentos sobre a mudança de paradigma da segurança jurídica e a utilização de procedimentos para lidar com a crescente indeterminação do Direito, ver: RODRIGUEZ, José Rodrigo.

Fuga do Direito e; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Segurança Jurídica e Desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um Dicionário Crítico de Direito e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. (Coleção Direito, Desenvolvimento e Justiça: Série produção científica).

34

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 109. 35

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