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4. Pesquisa empírica e análise argumentativa dos discursos e práticas institucionais sobre o sigilo fiscal: contradições, incoerências e patologias da

4.1. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil

O Manual do Sigilo Fiscal, aprovado pela Portaria RFB n. 3.541/2011, é

... instrumento de observância obrigatória para consulta e orientação dos servidores e unidades administrativas do órgão quando da elaboração de pareceres, notas, respostas e manifestações institucionais quanto a requisições, solicitações, judiciais e administrativas, consultas e demais procedimentos que tratem de informações fiscais, protegidas por sigilo fiscal ou funcional.88

                                                                                                                88

BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita

Na prática, o Manual do Sigilo Fiscal é o principal ato interpretativo existente no Brasil a respeito do sigilo fiscal. Ele orienta a atuação dos servidores da Administração Tributária nos casos em que a questão do sigilo de informações fiscais estiver em pauta. A portaria que o aprovou, no parágrafo único do seu art. 2º, não admite interpretações contrárias àquelas dispostas no Manual:

Art. 3º Os servidores da RFB, no desempenho de suas atribuições, deverão observar as orientações constantes do Manual.

Parágrafo único. São inaplicáveis, no âmbito da RFB, eventuais interpretações que sejam contrárias ou incompatíveis com as do Manual.

Não obstante seja considerado pela própria Administração Tributária o principal ato interpretativo a respeito do sigilo fiscal, o Manual não pode ser encontrado por meio de pesquisas nos sítios eletrônicos da Receita Federal ou de outros órgãos públicos. Tampouco a Portaria 3.541/2011, que o aprovou. No art. 2º da aludida portaria, explicita-se que o Manual estará disponível apenas na intranet da RFB.89

Portanto, o principal ato que orienta os servidores da Administração Tributária a respeito do sigilo fiscal é “sigiloso”.90 Ele cria a peculiar figura do “sigilo do sigilo”, tornando sigiloso o entendimento oficial da RFB a respeito do sigilo de informações fiscais. Seria possível argumentar que os destinatários da norma são os servidores da Administração Tributária e que, portanto, não há necessidade de publicidade do documento. Entretanto, o Manual contém a interpretação oficial da Receita Federal acerca de uma norma que impacta a vida de todos os cidadãos. Ainda que se trate de “recomendação” direcionada unicamente a servidores públicos, o documento trata do sigilo de informações manipuladas pela Administração Tributária, tema que interessa a toda a sociedade e que envolve direitos e garantias dos contribuintes.

Em termos de conteúdo, o Manual não apresenta posições específicas a respeito da publicidade de decisões administrativas, soluções de consulta e outros atos                                                                                                                

89

Art. 2º O Manual estará disponível na intranet da RFB.

90

Inicialmente, este manual chegou ao meu conhecimento por meio do Núcleo de Estudos Fiscais da Direito GV, onde sou pesquisador. Um funcionário da RFB disponibilizou-o ao NEF sob a condição de anonimato. Posteriormente, o NEF fez dois pedidos de informação para obtê-lo por meios oficiais. O pedido de n. 16853000742201367 foi negado com base na justificativa de que seria “desproporcional ou desarrazoado”. O pedido n. 16853001506201368 foi deferido e o Manual foi disponibilizado, sem nenhuma justificativa para a mudança de entendimento. Mas não é possível encontrá-lo em qualquer sítio eletrônico ou veículo oficial de órgãos públicos.

de aplicação do direito, problemas constatados no percurso de pesquisas do NEF. Apresenta uma lista de informações protegidas pelo sigilo, citando expressamente a Portaria RFB 2.344/2011, bem como a lista de exceções ao sigilo, previstas nos incisos do art. 198 do CTN.

Além de reproduzir conceitos existentes em outros instrumentos normativos, como a Portaria 2.344/2011 da RFB, o Manual também cria várias restrições, interpretando extensivamente o sigilo fiscal. Cria, por exemplo, uma divisão aparentemente inexistente na legislação, entre sigilo fiscal e sigilo funcional:

... as administrações tributárias trabalham com informações referentes a pessoas físicas e jurídicas, que não se enquadram na definição disposta no

caput do art. 198, a exemplo das informações cadastrais de contribuintes.

O fato de existirem dados não protegidos por sigilo fiscal não significa que podem ser fornecidos ou franqueados a qualquer pessoa.

(...)

Há, no ordenamento jurídico vigente, a figura do sigilo funcional, com matriz legal no art. 116 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe:

Art. 116. São deveres do servidor:

... VIII − guardar sigilo sobre assunto da repartição;

... As informações não protegidas por sigilo fiscal, via de regra, terão sua divulgação disciplinada por ato de autoridade competente.91

O Manual traz ainda mais restrições em relação ao art. 198 do CTN. No que diz respeito às exceções ao sigilo, elencadas nos incisos do art. 198, dispõe o seguinte:

O dispositivo ora reproduzido permite que as Administrações Tributárias prestem informações referentes a representações fiscais para fins penais, inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública e parcelamento ou moratória. Contudo, não as autoriza a adotarem, indiscriminadamente, iniciativas de divulgação.

A divulgação das informações referentes a representações fiscais para fins penais, inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública e parcelamento ou moratória deve observar as orientações, limites e procedimentos disciplinados em ato de autoridade competente.

(...)

Essas informações, apesar de excepcionadas do dever de sigilo fiscal, são protegidas por sigilo funcional.

O Manual determina que, apesar de o art. 198 excepcionar a divulgação de informações sobre inscrição na Dívida Ativa, parcelamentos e representações fiscais para fins penais, não é admitida a divulgação “indiscriminada” dessas informações:

As informações que não se referem à situação econômica ou financeira do

sujeito passivo ou de terceiros e à natureza e o estado de seus negócios ou atividades não estão sob o pálio do sigilo fiscal.

                                                                                                                91

BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita

Atenção: As informações não protegidas por sigilo fiscal não podem ser divulgadas por iniciativa de servidor da RFB em razão do sigilo funcional.92

Sobre dados agregados, cuja divulgação é permitida pela Portaria 2.344/2011, o Manual utiliza analogia para estabelecer ainda mais restrições, criando a interpretação de que os dados agregados devem se referir a pelo menos quatro contribuintes:

No fornecimento de dados econômico-fiscais de forma agregada, para que não haja possibilidade de identificação de contribuintes, a RFB entende que as informações devem se referir, no mínimo, a quatro sujeitos passivos, a exemplo do que orienta o § 3º do art. 2º da Portaria SRF n. 306, de 22 de março de 2007, que dispõe sobre a divulgação de dados estatísticos de importações.

Da leitura de trechos do (sigiloso) Manual do Sigilo Fiscal, resta evidente que a Receita Federal não segue modelo de racionalidade jurídica algum. No documento, o órgão alcança conclusões a respeito do que deve ser considerado sigiloso ou não como se fossem extraíveis facilmente por meio da leitura dos textos legislativos citados. Não se identificou nenhum esforço argumentativo no sentido de explicitar os critérios interpretativos empregados. Os fatos são subsumidos em normas gerais e abstratas, como se não houvesse outra interpretação possível e não pudessem existir divergências sobre a matéria.

Essa estratégia argumentativa consistente na simples citação de dispositivos legais para sustentar conclusões como se não houvesse outras interpretações cabíveis é curiosa e contraditória. Isso porque, nas situações em que o objetivo da Receita Federal é restringir a divulgação de informações, disposições legais bastante explícitas são solenemente ignoradas. Por exemplo, se um dos incisos do art. 198 autoriza a publicidade de débitos inscritos na Dívida Ativa, como exceção ao caput do dispositivo, não prevendo nenhum tipo de condicionamento para tanto, não poderia a Receita Federal criar restrições inexistentes na legislação, sobretudo sob o argumento de que “isso está previsto na lei”. Se deve prevalecer uma interpretação “gramatical”, de molde a evitar valorações pessoais por parte dos aplicadores, parece mais plausível concluir no sentido de que o CTN autoriza a publicação de informações referentes a inscrições na Dívida Ativa sem os temperamentos defendidos pelo Fisco.

                                                                                                                92

A Receita Federal, quando lhe é conveniente, simplesmente cita o art. 198 para sustentar posições que entende serem corretas e que não são explicitamente extraíveis do texto legislativo. Já quando o dispositivo não lhe convém, cria restrições ou temperamentos na interpretação como se fosse manobra óbvia e casual, e pior, como se estivesse prevista em lei ou fosse depreendida de uma interpretação teleológica do dispositivo.

O Manual, além de não estar disponível para acesso público e dificultar o conhecimento, por parte dos cidadãos, da interpretação do Fisco a respeito do sigilo fiscal, criando a peculiar figura do “sigilo do sigilo”, contém zonas de autarquia, pois intenta esconder a indeterminação do ato de aplicação. Furta-se, portanto, a oferecer justificativas plausíveis para sustentar suas posições, como se houvesse inequívoca correspondência entre as conclusões dispostas no documento e o texto do art. 198 do CTN.

4.2. Respostas da Administração Tributária Federal a Pedidos de Acesso a

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